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Crooked Men

As Misses e as Mafiosas do Crime Organizado

O mundo da máfia não é só dos homens. O escritor Roberto Saviano descreve as complexas relações das mulheres gangsters que estão sujeitas a regras enigmáticas, rituais rigorosos e comprometimentos irreversíveis.

Quando digo para as pessoas o que faço, elas geralmente assumem que escrevo apenas sobre homens, mas mulheres têm um papel importante, e complexo, nas organizações criminosas italianas, um papel que o reality Esposas da Máfia não chega nem perto de mostrar. Mulheres gangsteres estão sujeitas a regras enigmáticas, rituais rigorosos e comprometimentos irreversíveis. Presas num ponto confuso entre a modernidade e a tradição, elas podem ordenar assassinatos, mas não ter amantes ou deixar seus maridos. Elas podem decidir investir em setores inteiros do mercado, mas não usar maquiagem quando seus homens estão na prisão – isso equivale a uma traição, como se elas estivessem querendo ter um caso.

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Fora poucas exceções, a mafiosa existe apenas em relação a seu homem. Sem ele, ela é como um objeto inanimado – apenas meia pessoa. Por isso as esposas da máfia parecem tão desleixadas quando acompanham seus homens no tribunal – é uma aparência cultivada para destacar fidelidade. Quando elas estão bem-vestidas e arrumadas, seus maridos estão por perto ou em liberdade. O homem comanda, e quando ele comanda, seu poder se reflete em sua mulher e se comunica através da imagem dela. Esse é o caso na Camorra Napolitana, nos 'Ndrangheta da Calábria e em algumas famílias da Cosa Nostra.

É assim também nos cartéis mexicanos, que consideram a mulher um tipo de troféu do traficante, um reflexo de sua virilidade e poder. Quando mais impressionante é a mulher ao seu lado, mais força ele suscita. A popularidade das misses em alguns estados do México, e na América Latina em geral, não é coincidência. Não há jeito melhor para uma mulher exibir sua boa aparência e conseguir um traficante – o que, para algumas, podem significar escapar de uma vida de pobreza para um mundo de luxo. Em alguns estados, como Sinaloa, por exemplo, uma garota tem pouquíssimas chance de ter um gostinho da riqueza e do poder além de se tornar a esposa de um narco. A troca é clara: os traficantes dão dinheiro e uma vida confortável a essas garotas, enquanto elas, através de sua beleza, dão aos narcos prazer e prestígio. A mulher é como um trunfo para o currículo do traficante, e alguns narcos chegam até a comprar os concursos de beleza de que sua garota participa. Com ajuda do cartel, ela traz o título para casa, e o traficante ganha eminência tendo a miss ao seu lado. Por isso tantas mulheres em Sinaloa investem em estética logo cedo: elas fazem implantes nos seios e bumbum na esperança de se tornarem mais atraentes para os membros do cartel, o que pode mudar suas vidas.

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Apesar de terem uma mentalidade similar, as mulheres dos cartéis mexicanos tendem a ser mais modernas e desinibidas que as mulheres da máfia italiana. Mas a expectativa de que as esposas da máfia devem ser apagadas e quase invisíveis, não significa que elas não tenham alguma liberdade – na verdade, são elas que frequentemente ficam no comando no lugar dos maridos presos.

Independente do lugar de onde vieram, as mulheres do crime organizado costumam ter histórias de vida bem parecidas. Marido e mulher quase sempre se conhecem desde adolescentes, e se casam entre os 20 e 25 anos. É habitual se casar com a "garota da casa ao lado", alguém que o homem conhece desde a infância e que pode ter certeza de que é virgem. O homem, por outro lado, geralmente pode ter amantes – antes e depois do casamento. Mas recentemente, as esposas dos mafiosos têm exigido que as amantes sejam estrangeiras – russas, polonesas, romenas, moldavas – mulheres que elas consideram socialmente inferiores e incapazes de construir uma família e educar os filhos. Ter uma amante italiana ou, pior, da mesma cidade é prejudicial porque desestabiliza o equilíbrio da família – não só no sentido do relacionamento da família nuclear, mas também nas relações do clã. Um homem não pode arriscar ter um caso com a esposa de outro chefe, trair a irmã de um membro do clã ou fazer a esposa de idiota na frente da cidade inteira. Esses atos criariam desentendimentos e brigas, e poderiam comprometer a vida do clã. É um comportamento que viola o código de honra sobre o qual a máfia é fundada, e que pode ser punido com a morte.

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O espectro da morte assombra constantemente os casamentos da máfia, e em terras controlados por certos clãs, as mulheres usam exclusivamente preto. É um sinal de luto. Luto por um marido ou filho assassinado. Luto por um irmão, sobrinho ou vizinho morto. Luto pelo marido de uma colega de trabalho que desapareceu ou pelo filho assassinado de uma parente distante. Há sempre uma razão para usar preto. E por baixo do preto, elas usam vermelho. No passado, as mulheres usavam uma combinação vermelha para lembrar todo o sangue a ser vingado; hoje elas geralmente usam lingerie vermelha, especialmente quando jovens. É um lembrete constante do sangue que sua própria dor não vai permitir esquecer, e o contraste com o preto realmente destaca a cor terrivelmente íntima da vingança. Ser uma viúva num território criminoso significa perder a identidade como mulher quase que inteiramente, e reter apenas a identidade de mãe. Como viúvas, elas só podem voltar a se casar sob várias condições: seus filhos precisam concordar com o casamento, o homem precisa ser do mesmo escalão que o falecido e, acima de tudo, elas têm que cumprir o período de luto imposto pelo clã, permanecendo em abstinência.

Uma chefe da máfia que me lembro bem, já que vi sua ascensão ao poder na área onde cresci, é Immacolata Capone. Ela era uma mulher de negócios, mas, de acordo com a Direção Distrital Antimáfia de Nápoles, também foi uma chefe da Camorra. Membro do clã Moccia, Capone tinha um papel fundamental na gestão de trabalhos públicos para o clã Zagaria, de Casal di Principe – uma das famílias mais poderosas da área. Ela tinha o trabalho importante e delicado de obter o "certificado antimáfia" (o documento que garante que o negócio está livre de associações criminosas) para os projetos do clã. Sem esse certificado, os camorristi não podiam conseguir contratos públicos.

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Um dia no começo dos anos 2000, ela encontrou o camorrista Michele Fontana, conhecido como "o Xerife", que disse que tinha uma surpresa para ela. Ele a colocou no banco do carona de seu carro, e ela imediatamente ouviu barulhos vindo do porta-malas. Quando Capone pediu uma explicação, o Xerife disse que ela não precisava se preocupar. Eles foram até uma vila palaciana na área rural de Caserta, cerca de 32 km ao norte de Nápoles. Chegando lá, Michele Zagaria – um dos chefões mais poderosos do clã Casalese, condenado à prisão perpétua e finalmente preso em dezembro de 2011, depois de 16 anos foragido da justiça – saiu do porta-malas do carro e entrou na casa. Chocada com a presença do chefe, Capone não pode falar com ele, mesmo eles tendo trabalhado em negócios juntos há anos. De acordo com algumas fontes, o chefe entrou na construção e ocupou um assento no meio do salão, todo de mármore raro, apenas uma de suas muitas vilas, e começou a falar de contratos, concreto, construção e terras – enquanto acariciava um tigre numa coleira. Uma cena cinematográfica e quase mítica, pensada no tipo de imagem que as famílias criminosas usam para cimentar seu poder.

Criada no ambiente da Camorra, Capone era uma mulher baixinha de personalidade forte, capaz de intimidar qualquer um quando estava discutindo negócios. Ela cresceu sob a orientação de Anna Mazza, mulher do chefe do clã Moccia e a primeira mulher na Itália a ser condenada por crimes relacionados à máfia, por seu papel como chefe de uma das associações de negócio e crime mais poderosas do Sul da Itália. Mazza – inicialmente tirando vantagem da reputação do marido, Gennaro Moccia, morto nos anos 70 – logo assumiu o papel de liderança do clã. Conhecida como a viúva da Camorra, ela foi o cérebro da família Moccia por mais de 20 anos. Mazza instituiu um tipo de matriarcado na Camorra. Ela queria apenas mulheres em posições de prestígio porque, segundo ela, elas eram menos obcecadas pelo poder militar e melhores mediadoras. Esse era o jeito dela de comandar a organização.

Tendo aprendido com Mazza, Capone conseguiu construir uma rede empresarial e política de grande importância. Muitos camorristi a cortejavam para se tornar consortes de chefes de alto escalão, compartilhando sua cama e acordos de negócio. Mas os talentos de Capone trouxeram sua própria morte. Em novembro de 2004, alguns meses depois da máfia ter eliminado seu marido, Capone foi morta num açougue em Sant'Antimo, na província de Nápoles. Ela tinha apenas 37 anos. A polícia nunca descobriu o motivo do assassinato, mas os clãs podem não ter gostado de suas tentativas de ascender nos escalões. Sua ambição feroz pode ter assustado outros chefes, e dado seu tino comercial, ela pode até ter tentando fechar um negócio para si, independente da família Casalese. A única coisa que sabemos com certeza, é que Capone conseguiu navegar entre as pressões, limitações e expectativas colocadas sob as mulheres, e deixar sua marca na história da máfia.

Traduzido do Italiano por Kim Ziegler e para o português por Marina Schnoor.