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A história esquecida da egiptóloga e feminista que inventou o wicca

Em 1921, Margaret Murray descobriu a existência de clãs de bruxas. Só havia um problema: ela estava errada.

Esta matéria foi originalmente publicada no Broadly

Margaret Murray desembrulhando uma múmia. Foto cortesia do Manchester Museum.

Margaret Murray descobriu a existência de clãs e sabás de bruxas em 1921. Só tinha um problema: ela estava errada.

Margaret Murray é a mãe das bruxas que nunca existiram. Egiptóloga, arqueóloga, antropóloga, folclorista e feminista da primeira onda, ela é mais conhecida por um livro sobre bruxaria que moldou profundamente a fé wicca moderna. Hoje seu trabalho foi quase que completamente desacreditado e refutado, ainda que Margareth Murray tenha sido uma das autoridades mais importantes do mundo em bruxaria — para citar apenas uma nota de rodapé em sua história —, e não sabemos por que ninguém mais fala sobre o trabalho dela.

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Murray acreditava que a bruxaria realmente existiu, e que isso era uma religião organizada — um culto da fertilidade que adorava um deus com chifres. Em 1921, ela expandiu a teoria do culto de bruxas em seu livro The Witch-Cult in Western Europe (que você pode ler grátis no Projeto Gutenberg, em inglês). Baseado inteiramente em documentos de julgamentos de bruxas do século 16 e 17, a hipótese de Murray era que a bruxaria tinha surgido antes do cristianismo e foi eventualmente absorvida por ele, com o deus de chifres se tornando o avatar do Satanás. Murray foi a primeira a usar a palavra "coven" como significado de um encontro de bruxas; ela dizia que esses encontros aconteciam sempre entre 13 pessoas, escrevendo em detalhes sobre os "sabás", encontros de bruxas específicos que envolviam rituais elaborados (incluindo sexo grupal e ocasionalmente sacrifício de sangue). E isso era informação revolucionária na época.

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O livro foi recebido com elogios da crítica ainda que com alguma incredulidade. Em 1929, ela escreveu na Enciclopédia Britânica o verbete para "bruxaria", que continuou na versão impressa por 40 anos. Por muito tempo ela foi considerada a única autoridade sobre o assunto. Aldous Huxley era um fã seu. Apesar de ser uma ateia que só queria escrever sobre bruxaria para derrubar sua reputação sobrenatural, The Witch-Cult in Western Europe se tornaria a base de uma nova religião emergente, quando o livro foi escolhido pelo fundador Gerald Gardner e embutido em seu próprio texto de 1954, Witchcraft Today. Garner pegou a teoria do culto de bruxas de Murray e usou isso como um enquadramento para suas outras influências — os textos de Aleister Crowley, suas experiências pessoais com o oculto, maçonaria — para formular uma religião pagã contemporânea. O resultado é o que hoje conhecemos por Wicca.

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Só tinha um problema. Margaret Murray estava errada.

Margaret Murray em 1933. Imagem cortesia do Petrie Museum, University College London.

Hoje, os wiccas ainda debatem a importância do trabalho dela. O diretor do Centro de Estudos Pagãos , Ashley Mortimer, também é membro da Doreen Valiente Foundation (Valiente foi iniciada por Gardner, e uma figura poderosa por si mesma). Ele também é porta-voz e representante de várias outras organizações pagãs. "Acho que temos que aceitar isso pelo que é: simplesmente não podemos aceitar, diante das evidências, que o culto das bruxas sobreviveu intacto pelos séculos e foi passado para Gerald Gardner, que meramente soprou vida nova nisso durante o século 20", ele diz. "Mas também não podemos aceitar que isso nunca existiu em primeiro lugar, ou que algumas ramificações disso não sobreviveram".

A história de Murray foi extensivamente documentada pela Dra. Kathleen L. Sheppard na biografia de 2013 The Life of Margaret Alice Murray: A Woman's Work in Archaeology . Murray nasceu em 1863 em Calcutá, Índia, numa família de classe média de descendência britânica. Na época, a Índia ainda era uma colônia britânica, e as perspectivas de carreira para mulheres como ela eram poucas: trabalho voluntário de caridade ou religioso. Sua mãe, também chamada Margaret, tinha atuado como missionária antes de casar, viajando pelo país sozinha numa época em que era muito incomum uma mulher fazer isso. Isso seria uma influência importante na formação de Murray.

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"Murray não se preocupava com a ideia de que as confissões e documentos dos julgamentos que formavam a base de sua teoria, podiam ter sido feitos sob ameaça de tortura."

Quando tinha sete anos, Murray e a irmã foram mandadas para a Inglaterra para ficar com seu tio John, que era vigário. Ele acreditava que as mulheres eram naturalmente inferiores e deviam ser moral e fisicamente impecáveis. As visões de John Murray eram bastante normais na Inglaterra vitoriana, e ele achava que era uma boa ideia citar versos da Bíblia para sua sobrinha pré-adolescente. Em suas memórias, Murray chama o tio de um "Macho Dominante", provavelmente uma versão mais educada dela para "Sexista Furioso". Mas o tio realmente a influenciou em um aspecto. Ele a introduziu à arqueologia.

Apesar de não ter uma educação formal, e depois de voltar para Calcutá e trabalhar como enfermeira por vários anos, Murray decidiu, aos 30 e poucos anos, investir em sua paixão da infância. Encorajada pela mãe, ela se mudou para Londres e começou a estudar egiptologia com o arqueólogo pioneiro Flinders Petrie. Sua ascensão foi impressionante — em 1889 ela se tornou a primeira professora de arqueologia do Reino Unido. Ela participou de várias escavações arqueológicas no Egito e publicou muitos trabalhos e livros sobre o assunto. Sheppard conta que Murray desembrulhou uma múmia na frente de um público de mais de 500 pessoas em 1908 — novamente, a primeira mulher a fazer isso.

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Murray era respeitada por seus colegas. Ela era membro da WSPU (Woman's Social and Political Union) de Emmeline Pankhurst, e marchou para garantir o direito das mulheres ao voto. Foi aí que aconteceu a Primeira Guerra Mundial.

Murray desembrulha uma múmia para um auditório lotado. Foto cortesia do Manchester Museum.

Em 1914, Murray e seus colegas não puderam retornar ao Egito para continuar suas escavações arqueológicas. Ela então se voluntariou como enfermeira nos esforços de guerra, mas ficou doente e foi mandada para a pequena cidade de Sumerset, em Glastonbury, para se recuperar. Glastonbury era a casa lendária do Santo Graal do Rei Artur, e um ponto folclórico conhecido sobre o oculto. Murray, vendo paralelos entre o seu trabalho em egiptologia, começou a desenterrar documentos, e em 1917 publicou "Organization of Witches in Great Britain" no Folklore Journal. Esse trabalho sisudo se tornou seu livro, The Witch-Cult in Western Europe, e iniciou uma veia de pesquisa que mudaria fundamentalmente a face da bruxaria como conhecemos.

Na época, trabalhos acadêmicos sobre bruxas na Europa Ocidental eram quase inexistentes, e havia duas escolas de pensamento. Bruxas existiram, independente de poderem lançar feitiços ou não, e eram adoradoras de Satanás, comedoras de bebê e vilãs montadas em vassouras, ou seriam elas simplesmente mulheres vítimas inocentes da histeria pública, que teriam confessado sob ameaça de tortura. Murray, vendo espaço para um meio termo, propôs a teoria do culto das bruxas que ocupou a cisma desses dois polos.

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"Quando o trabalho de Murray caiu em desgraça, ele não foi gentilmente abandonado como obsoleto, mas ridicularizado e denunciado como uma farsa do estudo da história."

As metodologias de Murray, porém, eram falhas. "Muitas pessoas correm para criticar o trabalho de Margaret Murray, em alguns pontos de maneira justificada", diz Mortimer, "e também criticam a ingenuidade de Gerald ao ser levado por ela, citando seu desejo de que suas descobertas fossem verdade como um ponto cego". Mortimer está sendo generoso. Não há evidência escrita sugerindo que a bruxaria era um movimento religioso organizado, e nada que ligasse bruxaria e a ideia dos sabás. Mesmo a origem de "coven" é suspeita (Murray achava que isso se referia especificamente a um encontro de bruxas, mas provavelmente veio da palavra "covent" e se referia a qualquer tipo de encontro, não só os sobrenaturais.) Ela encontrou apenas um relato dizendo que covens eram formados por 13 membros, de um testemunho num julgamento de bruxa na Escócia.

Murray não se preocupava com a ideia de que as confissões e documentos, que formavam a base de sua teoria, poderiam ter sido feitos sob ameaça de tortura. Ela postulava que tortura era proibida na época, então não teria acontecido — uma posição bastante ingênua para os padrões contemporâneos. No entanto, nenhuma pesquisa existia para contradizê-la. Ela era uma especialista por padrão.

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Nos anos 90, novas evidências históricas e diversas escolas de estudos pagão desacreditaram o trabalho de Murray quase que inteiramente. Escrevendo em 2004 para The Pomegranate, um jornal acadêmico de estudos pagãos, Catherine Noble apontou: "Mas quando seu trabalho caiu em desgraça, isso não foi gentilmente abandonado como obsoleto, mas ridicularizado e denunciado como uma farsa de estudo da história, um abuso das evidências combinado à sua ignorância acadêmica sobre o assunto". Apesar de viver até os 100 anos, Margaret caiu na obscuridade logo antes de sua morte em 1963. Tudo o que resta de seu legado são dois bustos no University College London.

Independentemente de suas opiniões sobre Murray, a maioria dos wiccas concorda que o trabalho dela pode não ser correto, mas facilitou a popularidade e legitimidade de seu sistema de crenças. The Witch-Cult of Western Europe teve um efeito catalisador na esfera pública. Como alguns cristãos, que leem a Bíblia como um mito de criação, não como fatos históricos, muitos wiccas agora abraçam o espírito das descobertas de Murray, não a falácia.

"Realmente não importa se Murray estava certa ou errada ou se Gerald Gardner inventou isso ou não", diz Mortimer. "O sistema que se desenvolveu serve para esse propósito, que é desenvolvimento religioso e espiritual. E isso, em si, é o suficiente".

Tradução: Marina Schnoor

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