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ceca

Em terra de cegos, o Vitória é rei!

No futebol, o pior cego é o que só vê a bola.

“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.” O jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, fervoroso adepto do Fluminense, escrevia brilhantes crónicas sobre futebol, onde criticava os idiotas da objectividade e enaltecia a complexidade shakesperiana do mundo da bola. Nos últimos anos, tenho-me esforçado por explicar — geralmente, em vão — a alguns cépticos, convictos e militantemente desconfiados, essa complexa narratividade de um jogo de futebol ou de todo o fenómeno antropológico que o envolve, argumentando com personagens (jogadores, dirigentes, árbitros e adeptos) e situações (polémicas, penalties, foras-de-jogo, transferências, duelos públicos) dignas de um qualquer fresco queirosiano ou de um delírio pessoano. Guimarães e o seu Vitória são dois casos de estudo exemplares, para se compreender esse apaixonante fenómeno sociológico, que serve de terreno privilegiado à afirmação das identidades colectivas e dos antagonismos locais ou regionais. O futebol acentua rivalidades geográficas e clubísticas, posições extremas e, infelizmente, por vezes pode degenerar em violência. Mas insultar adversários e os árbitros é sempre um exercício terapêutico aconselhado para aliviar os problemas da semana de trabalho e alguns desentendimentos conjugais. No entanto, o fenómeno que envolve o futebol é muito mais do que isso, é algo que estimula e motiva o adepto para se superar e para fazer com que o seu clube se exceda sempre.Como o campeonato nacional começou há pouco, parece-me pertinente falar um pouco sobre o clube mais representativo da cidade-berço e da sua influência no quotidiano vimaranense. Em Guimarães, já se nasce com o ADN do Vitória. É algo que está impregnado nas maternidades cá do burgo, desde a anterior do hospital velho de Azurém, nas cercanias do castelo, até à actual do hospital novo de Creixomil, nas cercanias do estádio. É a expressão desportiva desse patriotismo de cidade, que caracteriza os vimaranenses, que se estende ao Vitória e o torna um clube único. O próprio símbolo do clube, que ostenta orgulhosamente o rei-fundador de espada em punho em vez de um qualquer animal, é definidor dessa matriz identitária. Poucas instituições vimaranenses são ou foram tão abrangentes na cidade e no concelho como o Vitória, que agrega seguidores de diversas ideologias políticas e tão distintas raízes sócio-culturais, verdadeiramente interclassista e inclusivo. O Vitória tem uma regularidade mobilizadora ímpar, capaz de gerar consensos ou unir o que parece, por vezes, irreconciliável. Todos os anos, a cidade vive uma espécie de transe vitoriano que se estende de Agosto até Maio seguinte e que atinge picos de entusiasmo ao fim-de-semana, mobilizando milhares de adeptos por esse país fora sempre que o Vitória joga fora de casa. E por algumas horas, cidades como Aveiro, Barcelos, Coimbra, Paços de Ferreira ou Vila do Conde são invadidas por adeptos vitorianos, lembrando os saudosos tempos do rei-fundador, e transformam-se momentaneamente na Quintã ou no Toural, tal a quantidade de vitorianos com quem nos cruzamos. O dia do jogo do Vitória é sempre um dia de festa, faça sol ou faça chuva, particularmente em casa. Por algumas horas, o Estádio Dom Afonso Henriques transforma-se na sala-de-estar dos vimaranenses, que se trajam a rigor para receber, como distintamente merecem, os adeptos do adversário. O jogo tem os seus rituais e cerimónias, uns iniciáticos e outros catárticos. Antes do início do jogo não faltam sequer os hinos: primeiro o da cidade e depois os dois do clube (o mais antigo da autoria de Dino Freitas e um mais moderno interpretado por José Alberto Reis). E é em perfeito uníssono que é cantado e entoado — dos miúdos aos graúdos, dos mais dotados vocalmente aos mais desastrados, dos mais efusivos aos mais emotivos — num prelúdio dramático que acomoda o adepto para as duas horas seguintes. Os excessivos gritos e gestos dos adeptos, de incentivo ou de insulto, acentuam essa dimensão dramática e tornam-nos parte integrante do espectáculo, conferindo-lhes simbolicamente o papel de coro na tragédia grega que vai desenrolando no centro desse anfiteatro dos tempos modernos. O intervalo é o tempo de retemperar a energia e hidratar a garganta para mais uma hora de gritaria e insultos. É também o momento de encontrar alguns amigos da tribo futebolística e pôr a conversa em dia, enquanto nos deliciamos com a actuação das cheerleaders no centro do relvado e tentamos ignorar a última coisa da Rihanna, Lady Gaga ou Katy Perry, que jorra violentamente para gáudio dos adolescentes. Entre a fauna dos adeptos, destacam-se no intervalo as meninas e senhoras que aproveitam o intervalo para mostrar a mais recente aquisição das colecções de Outono-Inverno da H&M ou da Zara, e os Pachecos Pereiras e Miguéis Sousas Tavares de bancada, que destilam as suas teorias macro-económicas e micro-sociológicas sobre o bosão de Higgs ou sobre o off-side mal assinalado que impediu o Soudani de se isolar de facturar. Felizmente, o intervalo é também, finalmente, a única altura do jogo em que se pode ir à casa de banho sem perder pitada do jogo. No final do jogo, mediante o resultado, pode festejar-se a vitória enfiando-se numa qualquer cervejaria repleta de outros vitorianos em êxtase ou, se a coisa não correr bem dentro das quatro linhas, pode esquecer-se a derrota enfiando-se numa qualquer cervejaria repleta de outros vitorianos em consternação. Formalmente fundado em 1922, o Vitória já deu muitos heróis à cidade ao longo da sua história. Para os que, como eu, estão na casa dos 30 e poucos anos, a equipa da mítica campanha de 1986-87, comandada por Paulo Autuori e Marinho Peres, é a que melhores recordações nos traz, como o eterno guardião Jesus, os vimaranenses Costeado, Miguel e Basílio, os brasileiros Ademir, Roldão e Paulinho Cascavel e o trio zairense Basaúla-N’Kama-N’Dinga. Para uma análise mais profunda e detalhada dos ídolos vitorianos de todos os tempos, aconselha-se uma visita ao blogue Glórias do Passado. Nos anos mais recentes, o Vitória tem-se tornado mais eclético e tem conseguido importantes conquistas noutros desportos para além do futebol, mas os títulos são algo menos importante neste clube. Parafraseando uma das mais célebres máximas de Nelson Rodrigues, digo-vos que o melhor clube do mundo é o nosso Vitória. E se me disserem que os factos provam o contrário, eu respondo-vos: que se lixem os factos!