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Falei com um português que está a morar nas ruas de São Paulo

Porque não consegue ser extraditado.

Fotografia por Matheus Chiaratti Luís Felipe Gomes tem 28 anos. Em 2009, enquanto se debatia com o desemprego e com a doença da mãe viúva, Luís decidiu aceitar uma proposta de um amigo e ser mula de droga, entre o Brasil e Portugal. Foi apanhado e condenado a seis anos e três meses de prisão na Penitenciária Cabo PM Marcelo Pires da Silva, em São Paulo, mais conhecida como Torre de Babel, devido à convergência de reclusos provenientes de diversos países. Aí trabalhou a dar aulas de português e de história. Três dias de trabalho na prisão davam-lhe direito a um dia de redução da sua pena, pelo menos em teoria. No mês passado, foi-lhe concedida a liberdade condicional. Contudo, Luís está impedido de sair do Brasil até 2014. Sem poder trabalhar, por não ter consigo os documentos (que estão na posse da polícia federal), este palmelense vive do apoio dos amigos e de um centro de apoio a cidadãos portugueses. Queixa-se de ter sido abandonado e tem passado por inúmeras dificuldades. Tentei falar com o Consulado Português em São Paulo e com a Casa de Portugal para tentar obter algumas respostas. Ninguém pode ajudar — Luís não pode ser reencaminhado para Portugal. O processo está, novamente, a ser revisto, mas, para já, não há respostas. Quis saber como é que ele estava, desde a nossa última conversa, e perceber toda a questão. Por isso, liguei-lhe e conversámos um bocado. VICE: Olá Luís. Onde estás agora?
Luís Gomes: Estou em Guaianases, uma favela aqui no centro de São Paulo. Agora estás fora, mas quando estavas dentro trabalhavas na prisão. Davas aulas e sei que cada três dias de trabalho equivaliam a menos um dia de pena, certo?
Não é bem assim que funciona, porque trabalhei três anos, mas apenas me deram sete meses [de redução da pena]. Só fico livre em 2014. Como é que foi estar na tal Torre de Babel, com tantas culturas. Sei que havia presos de todas nacionalidades.
Para já, aquilo é só para estrangeiros. Só há lá gente de fora. Só por aí, dá para ver como é que é a diferença de culturas entre cada um. Não é fácil conviver com tantas culturas diferentes, porque cada povo tem a sua maneira de pensar, as suas tradições, as suas opiniões, as suas formas de ver as coisas. É difícil. Temos de fazer com que toda a gente conviva mais ou menos bem, fazer com que as coisas corram, tentar levar para a frente e superar a situação. Como é que foi dar aulas?
Posso dizer que foi agradável. Deu para trocar muitas experiências com eles. Senti que os ajudei. Havia lá muitos portugueses que tiveram o mesmo problema que tu, de transportar droga?
Muitos. E estão a passar as mesmas dificuldades que eu passei quando lá cheguei. Alguns até já estão em Portugal. Como é que está a tua mãe? Sei que aceitaste este trabalho porque o teu pai tinha falecido e a tua mãe não se encontrava bem de saúde.
Por agora, sim. Está tudo bem, graças a Deus. Ouvi dizer que começaste a fumar na prisão. Já te deixaste disso?
Já! [risos] Acho bem. E olha, quem te levou para o Brasil foi um amigo teu, o que é que lhe aconteceu?
Nunca mais ouvi falar dele. Não passaste o contacto dele às autoridades quando foste preso?
Não. A tua pena vai até 2014 e neste momento estás em liberdade condicional. Quando é que foste libertado e o que fizeste depois?
No dia 4 de Dezembro de 2012. Andei por aqui, a tentar fazer-me à vida. Foste ao consulado?
Fui à Casa de Portugal, o consulado reencaminha-nos para um centro de apoio aos portugueses. Mas eles não podem fazer nada, porque o consulado não lhes dá rédeas para isso. A única coisa que eles fazem é dar uma carta, que tem um envelope com uma recomendação e mandam-te para um albergue. Ou seja, chegas lá e, em vez de ser um albergue para portugueses — seria muito mais fácil, acho que é uma coisa que eles podiam muito bem fazer: arranjar uma casa, alugar uma casa para todos os portugueses que estivessem a passar por dificuldades, que estivessem nestas condições) —, chego lá e mandam-me para um sítio debaixo da ponte. Para debaixo da ponte. Para viver debaixo da ponte. Mas então não te tinham encaminhado para um albergue, para um sítio onde podias dormir?
Pois, é isso. Quando lá cheguei, o albergue era debaixo de uma ponte. Isso, basicamente, é morar na rua.
Sim, é como encaro as coisas. E, para eles, sou considerado um morador de rua. O consulado não quer fazer nada. Só para veres, para eu ir ao consulado, para entrar dentro do consulado do meu país, tenho de marcar hora. Onde é que já se viu isto? Nem sei o que te diga.
Pois. Que consulado é este? Não é nada. Sinto-me desprezado pelo meu próprio país. Como português, e eles como portugueses que dizem ser, deviam arranjar alguma maneira de me tentar ajudar, de fazer um termo de responsabilidade para eu assinar. Eles são a autoridade máxima de Portugal aqui. Não há o mínimo apoio. Se não fosse a Suede, que trabalha no centro de apoio e que é cinco estrelas, ficava aqui abandonado. E depois dizem o quê? Não cometam crimes? Como é que não se faz isso, se há tanta gente a passar fome aqui, a viver na rua? Esse é o problema daqui. Liguei ao consulado e falei com a chanceler Maria Fernanda Dias, que me disse que ninguém sabe que tu lá foste. Aparentemente, não há dados que digam que lá foste.
Claro. O que é que vou fazer ao consulado? Vou é ao centro de apoio, que é onde me ajudam. Onde me dão algum apoio, por mínimo que seja. Mas também falei com a Suede e ela disse que tinhas lá estado e que foste levantar uma encomenda. E que, entretanto, arranjaste a casa de um amigo para ficar e que recebias dinheiro da tua mãe, que não quiseste ficar no albergue.
A minha sorte foi a minha mãe ter-me enviado esse dinheiro, porque senão tinha de lá ficar. Fala-me mais sobre o albergue. É, literalmente, ao ar livre?
O albergue para onde nos encaminham é para onde vai toda a gente. Qualquer tipo de pessoa. Desde moradores de rua, drogados, tudo o que possas imaginar. Vão  todos para lá. O albergue é debaixo de uma ponte, de um viaduto. Tem umas paredes, mas depois entras lá dentro e é à lá garder. Há uma sala grande com duzentas e tal camas, beliches. Durante a noite, não tens onde guardar as coisas quando estás a dormir. E sentes as pessoas a mexerem-te nos bolsos, a mexerem-te no corpo, na camisola. Percebes? Sim. E comida?
Davam-me uma refeição. Tens alguns amigos no Brasil?
Se não fossem eles… A minha sorte são eles, têm-me arranjado coisas. Tenho andado com eles. Consegues arranjar trabalho?
Arranjar trabalho até consigo. Mas tens de ver uma coisa: eu não tenho documentos. Por que é que a polícia tem os teus documentos?
Não sei, não faço ideia. Nem lá, no centro de apoio, me sabem dizer. Vamos lá recapitular. Foste libertado em Dezembro pelo bom comportamento, como benesse. Mas por que é que tens de cumprir o resto da pena aí, no Brasil?
É a lei deles. Quando me dão o benefício, pela lei, não me posso ausentar do país, sem ter a autorização deles, uma autorização prévia da justiça. Já tentaste pedir essa alteração?
Já, fui à central da polícia federal aqui. A resposta é que eles têm um recurso especial em Brasília e que, enquanto não sair, não podem dar seguimento à expulsão. Ou seja, sem essa acção protocolar, eles não podem dar encaminhamento para a minha saída. Com a expulsão ficarias impedido de regressar ao país para o resto da tua vida. Queres isso?
Pá, se for a única maneira, claro que quero. Pensas que seria possível seres extraditado e cumprires o resto da pena cá, se o Ministério dos Negócios Estrangeiros, aqui em Portugal, fosse envolvido?
Acho que sim. Por que não? São dois países-irmãos, é o que eles dizem. Acho que deviam dar esse apoio aos portugueses. Se somos dois países irmãos, como dizem que somos, não consigo entender por que não o fazem. Em Portugal, não se tratam os brasileiros como nós, portugueses, somos tratados no Brasil. E estás disposto a cumprir a pena, mesmo que isso envolva ficares numa prisão portuguesa?
Sem dúvida nenhuma. Imagina que conseguias vir para Portugal, estavas ligado à área da electrónica…
Sim, em Palmela, na Autoeuropa. Gostava de continuar aí. Achas que, se voltares, não serás prejudicado por causa deste tempo no Brasil?
Acho que não, por que haveria de ser? Se não fores extraditado, o que mais querias que te acontecesse aí?
Os meus documentos, sem dúvida. Porque, com eles, já posso fazer aquilo que quero. Que é…
Passei nas universidades de São Paulo. Podia acabar o vestibular aqui [exame de acesso ao ensino superior] e tentar estudar no Brasil. Mas, para isso, preciso dos meus documentos. Como é que sobreviverias a estudar?
Podia concorrer a bolsas de estudo. Pelo menos, estaria a estudar, teria uma formação e como aqui é um mercado aberto, talvez pudesse ter uma boa profissão, um bom emprego e deixava-me ficar. Quem sabe? Arrependes-te daquilo que fizeste?
Arrependo, claro que sim. Conseguiste ficar com o dinheiro do trabalho?
Não. Não tenho nada que me ajude a sobreviver aqui. Quando foste libertado sentiste que era uma prenda envenenada? Do género “estás livre, mas agora safa-te, estamos a cagar-nos para ti”.
Senti. Foi como se me tirassem do poço dos leões para me enfiar no das cobras. Como é que estás, física e psicologicamente?
Estou bem, graças a Deus. Tenho muito que agradecer por isso. Essa favela onde estás agora é tranquila?
Felizmente, sim. Aqui é calmo, só há pessoas humildes. Claro que há muitos bandidos, mas onde estou, não. Como é que foste parar aí?
Foi o meu amigo, estou a morar numa espécie de casa. Boa sorte, Luís. Espero que tudo se resolva.