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Música

O diário de Paredes de Coura - parte 5

Chuva, Manel Cruz e bocejos: o rescaldo de um festival.

Lisboa, 19 de Agosto de 2012
22h56 “Mas nada indica que eu vá por fim dar paz à minha mão, […] eu não te traí, foi masturbação em três dimensões." Quem assim canta é Manel Cruz, primeiro nos Ornatos Violeta, depois em Foge Foge Bandido. Aquele que é provavelmente o melhor português a cantar a auto-satisfação é do tipo de homem que se consola à mão quando precisa para depois não ter de fazer punhetas intelectuais. Foi esse homem que vi na última noite de Paredes de Coura perante uma enchente histórica no recinto. A encosta relvada descia até ao palco em forma de língua desdobrável, carregadinha de gente a cantar em uníssono as músicas de O Monstro Precisa de Amigos o álbum que foi o último prego discográfico no caixão dos Ornatos Violeta. Uma década depois do fim, eles estão de volta com o mundo a seus pés e num festival que nunca os quis receber. Fez-se justiça e a justiça fora da área de influência de Putin até consegue ser poética. Manel Cruz gosta de ser amado e, por vezes, prefere ser amado de tronco nu enquanto fuma um cigarro. Paredes de Coura 2012 foi dele e dos outros Ornatos e ainda bem que assim foi. Nessa noite, o festival andou a perder demasiado tempo com alguma da mais enfadonha música da actualidade: Best Youth, Youthless e Capitão Fausto capitanearam o lento naufrágio da nova música portuguesa. Da selecção nacional só se safaram os Dead Combo e os Ornatos Violeta, claro. Mas nem tudo foi mau: o concerto dos Capitão Fausto serviu para fazer uma curta sesta na relva e ganhar balanço para espreitar o vestidinho azul da miúda-boneca de Memoryhouse no palco Vodafone FM, um palco que, tirando um ou outro caso, serviu as melhores febras aos comensais festivaleiros. Na noite anterior, soprei de aborrecimento com o concerto feel good do festival: Whitest Boy Alive e aquela popzinha maricas com espasmos de bossanova e que só não se tornou rock de estádio porque esse título viria a pertencer aos Kasabian poucas horas depois. Uma passeata pela língua de público devolveu uma imagem de pessoas felizes, o que, não deixando de ser importante, é efémero como a tusa matinal. Desta última semana guardo a memória de cinco noites frias, duas delas a gotejar a fúria dos céus, um cartaz sem grandes nomes mas com muitos pequenos grandes artistas, um bilhete que incluía o pagamento obrigatório de cinco euros por uma porra de causa social que nunca entendi qual era — juro que não percebo a caridade forçada! —, algumas refeições de cuscuz, vários litros de álcool e pequenos cursos de água e merda na zona dos lavabos. Depois da última noite de música e de regresso ao retiro medieval, uma das miúdas do grupo curto-circuitou a mansão da própria família e ficámos sem electricidade numa madrugada nublada e fria. Entregámo-nos a pequenas histórias de terror e pele de galinha até cairmos para o lado. No dia seguinte, bastou descer a rua de carro para termos a viagem de regresso a Lisboa empatada pela volta de bicicleta, um casamento e um acidente. Pelo menos na nossa caravana do rock, não houve mortos nem feridos, nem camisolas amarelas nem alianças de noivado.