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Nicole Puzzi Lança Livro sobre sua Carreira: “A Mulher da Pornochanchada foi uma Vítima Cultural”

Apresentadora do Pornolândia, do Canal Brasil, a eterna musa da Boca paulista lança seu primeiro livro.

Foto: divulgação.

Nicole Puzzi não para. A eterna musa da Boca paulista é apresentadora do programa Pornolândia, do Canal Brasil, e ensaia uma peça de teatro sobre os tempos da Rua do Triunfo. "Eu era a rainha da pornochanchada e agora sou a rainha do curta-metragem", brinca. A atriz é constantemente convidada para trabalhar com jovens que realizam filmes nesse formato. "Adoro esse pessoal da nova geração. Eles não têm preconceitos babacas."

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Mas o novo rolê de Nicole é o lançamento de seu livro A Boca de São Paulo, que acontece hoje na capital paulista. Publicada pela Editora Laços, a obra aborda a trajetória profissional da vestal que participou de mais de 20 longas-metragens nacionais. Neles, Nicole pôde trabalhar com diversos realizadores consagrados, como Walter Hugo Khouri, Ody Fraga e Ivan Cardoso. Ela falou sobre o livro e sobre sua carreira com a VICE.

VICE: Como surgiu a ideia do livro?
Nicole Puzzi: A Boca de São Paulo é o primeiro e único livro escrito por mim. E muito bem escrito, porque o revisor ortográfico teve pouquíssimo trabalho. Mas eu tenho dois cursos: sou bacharel em direito e tenho um curso incompleto de serviço social. Isso me dá a capacidade de escrever. Esse livro sempre esteve na minha mente. Esse novo trabalho é a minha verdade. Então, eu sempre quis escrever um livro sobre a pornochanchada, porque eu vivi aquilo. Sobre a rua onde eu andei, sobre as pessoas que eu conheci. Se a minha opinião é a melhor ou a pior, não sei. É uma biografia minha na Boca. É um documento, um documento histórico do cinema nacional, onde as pessoas que gostam de cinema vão ler e encontrar informações de uma visão natural, uma visão verdadeira daquele ambiente. Não é um livro de palpites e opiniões. É o livro de uma atriz que está inserida nos anos 1970 e meados dos 1980 no ambiente do cinema nacional. Eu vivi aquilo.

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É verdade que você teve propostas de outras editoras para fazer um livro mais picante?
Eles queriam que eu abordasse a minha vida sexual no livro. Tem gente louca no mundo todo, né? Imagina se, nesse momento, eu fosse falar sobre as minhas aventuras sexuais. Eu não tenho [o] menor interesse em falar sobre as minhas experiências amorosas, românticas e sexuais com ninguém. Esse livro só não foi editado antes porque, sempre que eu apresentava para alguma editora, eles queriam que eu colocasse histórias picantes. A minha vida íntima é extremamente restrita.

Como surgiu a oportunidade de você trabalhar com cinema?
Eu fui modelo e comecei a trabalhar em programas de humor na TV Tupi. Foi o David Cardoso (ator, diretor e produtor) que me convidou numa tarde em que eu estava numa padaria que ficava do lado da emissora. Na época, eu namorava o Dedé Santana (ator dos Trapalhões). O David conversou com o Dedé e me chamou para fazer um teste para o filme Possuídas pelo Pecado. Esse teste foram [sic] fazer algumas fotos com o Jean Garrett. Mas nem era teste, o David sabia que eu ia fazer o filme. A primeira coisa que ele me pediu foi para eu trazer meus documentos. Mas eu tinha apenas dezessete anos.

Como foi feita a sua emancipação?
Na Praça da Sé, tinham aqueles homens-placas que tiravam documentos. Para tirar documento de maioridade, bastava pagar. Eu podia pagar, sabe? Era modelo, não precisava dar dinheiro na minha casa. Meu pai nunca precisou do meu dinheiro. Paguei, tirei e entreguei para o David. Eu fiz o filme, e foi um dos melhores que fiz na minha carreira. O nome inicial daquele trabalho era Possuídas, mas foi lançado como Possuídas pelo Pecado.

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Naqueles filmes, tinham várias musas. Isso não criava algum clima de concorrência entre vocês?
Nunca. O Possuídas, por exemplo, foi também o primeiro filme da Zilda (Mayo) e um dos primeiros da Helena (Ramos). Sempre era assim: uma atriz tinha um papel, outra tinha outro e assim por diante. Não tinha essa concorrência. Diferente[mente] do que muitos catedráticos falam: que, na época, existia isso. E as atrizes tiveram mais importância, até mais que todos os diretores e produtores. Por quê? Tira a mulher da pornochanchada, [e] esse gênero acabou. Você pode falar: "Vamos fazer pornochanchada sem mulher". Daria errado. Vamos fazer pornochanchada só com mulheres? Daria certo. Eu falo isso no meu livro e na minha peça. A mulher da pornochanchada foi uma vítima cultural.

Fale um pouco da Boca. Como era para a mulher frequentar aquele ambiente?
Era maravilhoso. Era como se você estivesse num barzinho próximo da sua casa, onde todo mundo se conhecia. Não existia sacanagem. Se falava de tudo, e não existia diferença entre homens e mulheres.

Como você conheceu o Walter Hugo Khouri?
Foi pelo Toninho (Meliande, diretor de fotografia). Eu tinha terminado de fazer o Damas do Prazer com o Toninho e tinha decidido parar com a minha carreira. Eu namorava um inglês que era mecânico de Fórmula 1. Estava decidida a [me] mudar para Southampton, Inglaterra. Um dia, veio o Walter Hugo Khouri com o Toninho na minha casa, em São Judas (bairro da zona sul de São Paulo). O Walter [foi] todo delicado, mas eu estava decidida a não fazer mais cinema. Nesse dia, o meu pai estava na minha casa. O Walter se interessou pela história do meu pai. Meu pai era um homem inteligente, mas muito simples, uma pessoa do interior. E eles ficaram conversando durante horas.

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Eu amei aquilo de ele perceber a sensibilidade numa pessoa simples. Em vários filmes, ele colocou frases do meu pai em diversos personagens. Um homem tão intelectual como o Walter reconhecer a inteligência numa pessoa simples foi algo incrível. Aí ele me ofereceu um bom cachê, e acabei fazendo O Prisioneiro. Foi uma participação, mas o filme termina com o meu rosto. E a bunda do cartaz não é da Sandra Bréa, é a minha.

O que você via de diferente no Khouri?
O Khouri tinha uma coisa de Bergman, uma inteligência europeia. Tinha muita cultura, e eu aprendi demais com ele. A diferença entre jazz, blues, soul, tudo isso foi com ele. Mas, no set, o Walter jamais levantava a voz com nenhum ator, nenhuma atriz. Ele era um gentleman, conversava com você em voz baixa e extraía tudo que queria. O Khouri dizia que eu era a Anna Magnani dele, e eu nem sabia quem era a Anna Magnani.

No set, ele colocava jazz mesmo? É verdade isso?
Eu tinha duas músicas. Quando eu chegava no set, estava tocando "I Love Paris", com Ella Fitzgerald, ou "My heart belongs to daddy", com Billie Holiday. E, quando eu ia fazer as cenas, era assim: ele falava "Coloquem a música da Nicole. A música da minha estrela". Cada atriz tinha as suas músicas. Eu sempre adorei morango com chantilly. Mesmo não sendo época de morango, ele sempre conseguia morango para mim. Ele chegava e dizia: "É da minha estrela. Cadê o morango com chantilly da minha estrela?". Ele fazia com que cada atriz se sentisse especial. O Khouri não te desrespeitava. Fizemos quatro filmes juntos. Mas nunca namoramos. Foi uma pena, porque eu gostaria que tivesse tido algo. Foi um privilégio ter trabalhado com ele.

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Seu maior sucesso como atriz foi o filme Ariella, do John Herbert. Como surgiu a oportunidade de você fazer esse trabalho?
O John Herbert veio atrás de mim na minha casa. Eu disse: "Johnny, eu não quero. Encerrei a minha carreira". Eu estava terminando o meu curso de serviço social. Ia casar com meu namorado e ir morar na Inglaterra. Por isso, acabei sendo sincera com o John Herbert: "Não vou fazer, inclusive porque tem nudez frontal". Mas o Johnny deu o golpe fatal. Ele chamou a (escritora) Cassandra Rios para falar comigo. Ela era a autora do livro em que o roteiro do filme era baseado. Até então, a Cassandra tinha uma imagem maldita naquela época. Eu criei uma admiração por essa mulher. O primeiro livro dela sobre a sexualidade feminina, sobre a relação mulher com mulher, foi publicado em 1938. As obras dela eram proibidíssimas pela Ditadura.

A Cassandra foi a primeira mulher homossexual que eu identifiquei, e percebi que ela era uma pessoa muito especial. Vi que ela era completamente diferente de todas as mulheres que conheci na minha vida. Ela foi me cativando, e acabei fazendo esse filme.

Mas você esperava que o filme tivesse toda essa repercussão?
Não. Da noite para o dia, virei uma grande estrela. Era chamada para fazer o programa da Hebe Camargo. Tudo isso incomodou muito, e acabei sendo perseguida pela cota dos brasileiros invejosos, hipócritas e incompetentes.

Esse filme tem aquela cena polêmica sua de sexo com a Christiane Torloni. Foi difícil fazer a cena?
Nem tanto. Isso porque ela é uma grande atriz. Fizemos com a maior tranquilidade possível. Mas o Pedro Carlos Rovai (produtor) e o John Herbert acabaram colocando uma inserção de sexo nessa cena. O enxerto consistia na mão da Torloni no meu sexo. Nem o sexo é meu, e nem a mão é dela. É uma montagem, eles tiveram essa ideia. Eu podia ter barrado, mas não barrei. Achei o filme excelente. A única coisa que denigre foi esse enxerto.

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Como foi para você fazer As Sete Vampiras, do Ivan Cardoso?
Eu amei fazer esse trabalho. Gostei muito de ter conhecido o (Rubens) Lucchetti (roteirista), acima de qualquer coisa nesse filme. Me realizei fazendo o gênero terror, e o meu personagem era um monstro. Tinha o fato de eu ter de esconder a minha beleza em determinado momento. Para fazer esse personagem, eu assisti a muitos filmes americanos B dos anos 1940. E o Ivan (Cardoso, diretor) tem um mérito: ele resgatou muitos atores antigos, das chanchadas, deu trabalho a todos eles. Foi um filme brilhante, um clássico mesmo.

Esse filme foi para o festival de Gramado, e você foi indicada para o prêmio de melhor atriz, certo?
Eu ia ser premiada. O Toninho Meliande estava no júri, e ele me contou que quiseram premiar a Maitê (Proença), porque, no [filme] Sete Vampiras, tiveram muitas cenas minhas que foram cortadas. Não sei o motivo. A Andréa Beltrão não era tão famosa e acabou aparecendo mais que eu naquele filme. Mas eu acho que é aquela coisa da TV Globo: eles sempre paparicam as pessoas da Globo. Mas não ter ganhado não é algo representativo. Era mais uma coisa pra ficar em casa pegando poeira. Eu recebi muito troféu disso, troféu daquilo, essas bobagens. Joguei tudo fora: não gosto, não sou apegada a nada. Para mim, troféu é ter trabalhado na pornochanchada, ter trabalhado com o Khouri, com o Ody (Fraga, diretor), sabe?

Fala um pouco do Ody.
Ele me dirigiu num único filme (Reformatório das Depravadas), só lembro que o meu personagem morre enforcada. O Ody era um intelectual, um homem fino. Ele poderia ter seguido carreira em televisão, mas preferiu ficar na Boca. Toda vez que eu chegava na rua do Triunfo, ele estava lá fumando o cigarrinho dele. Encostado na porta do bar Soberano e me olhando de longe. Ele me olhava, observava, não sei o que ele pensava. Mas o Ody estava ligado nas coisas que aconteciam durante a Ditadura. Ele colocou algumas cenas de tortura nos filmes dele, repetindo o que acontecia nos porões. A primeira pessoa que me falou sobre Nietzsche foi o Ody. Ele foi uma das pessoas mais generosas que eu conheci.

Do que você mais sente falta da Rua do Triunfo?
De tudo. Sinto falta de chegar lá, ver aquele sol que parecia um sol diferente. Sinto falta daquela movimentação alegre. Era um corre-corre de muita gente rindo, todo mundo correndo para fazer uma nova produção. Sinto muita falta de pessoas boas, como o Gaúcho (Virgílio Roveda, diretor de fotografia), sabe? Do Toninho (Meliande), do próprio Tony Vieira, com quem eu nunca trabalhei.

O lançamento de A Boca de São Paulo pela editora Laços acontece hoje em São Paulo, a partir das 19h, no Centro Universitário Belas Artes, que fica na Rua Doutor Álvaro Alvim, 90.