Crise econômica justifica estupro? Mulheres comentam as declarações do secretário de segurança pública de SP
Foto: Chello Fotógrafo/ SSP-SP

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Crise econômica justifica estupro? Mulheres comentam as declarações do secretário de segurança pública de SP

Mulheres acadêmicas brasileiras se opõem às declarações de Mágino Alves Barbosa Filho, o novo secretário de segurança pública de SP, para quem o desemprego leva ao estupro.

Talvez nunca na história do Brasil tenha se falado tanto sobre estupro, assunto que fere masculinidades a torto e a direito e que predispõe o descortino da falta de conhecimento de autoridades que prezam pela segurança e o bem estar social. Nesta sexta (3), em entrevista concedida à jornalista Sonia Racy, Mágino Alves Barbosa Filho, recém-empossado secretário de segurança pública de São Paulo, aparentemente "mexeu com uma" e "mexeu com todas". Ao falar sobre casos de estupro, o chefe das polícias relativizou: "Esse crime, como outros, é um pouco da consequência dessa crise que estamos vivendo". E completou: "Muita gente cai em depressão porque perdeu emprego e começa a beber. E aí termina perdendo a cabeça e praticando esse tipo de delito."

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Mais uma vez, busca-se a causa. Como em tantas outras vezes busca-se a culpa – que recai sobre a vítima. Assim como no episódio do brutal estupro coletivo que ocorreu contra uma menor de idade no Rio de Janeiro ainda em maio. Será a pobreza o principal fator a levar um homem a estuprar? A crise econômica justifica estupros?

Colhemos as opiniões de algumas mulheres acadêmicas que falam, discutem, vivenciam, estudam, lecionam e levantam dados sobre a violência contra a mulher para comentar as declarações do secretário. Elas foram editadas para melhor compreensão. Leia abaixo:

NADA A VER COM PATOLOGIA OU DESAJUSTE SOCIAL

"Se o desemprego ou a crise econômica pudessem explicar o aumento da incidência de estupro, por que o alvo são as mulheres conhecidas? Apesar de recém-empossado, o secretário de Segurança Pública de São Paulo fala sobre o que desconhece. Qualquer membro de equipe técnica de serviços de atendimento a mulheres em situação de violação dos direitos humanos poderia adverti-lo que 'naturalizar' episódios de violência contra a mulher é descabido. Imputar ao desemprego ou ao alcoolismo é desenraizar a violação de direitos das mulheres. Nada a ver com patologia ou desajuste social. Estas justificativas servem para atenuar crime. Estupro é crime! Se a incidência primordial é de conhecidos e parceiros íntimos, mais um motivo para a política técnica estudar, entender e combater o fenômeno.

Um recado para o Secretário: 1) apure os fatos e puna os infratores e 2) informe-se antes de reproduzir senso comum. Por fim, e não menos importante, fora Temer."
Lilia Guimarães Pougy, docente da escola de Serviço Social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Estudos e Intervenção em Políticas de Gênero do NEPP-DH, também da UFRJ.

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Mulheres foram às ruas para contestar a cultura do estupro. São Paulo, 1º de junho. Foto: Tuane Fernandes

A VIOLÊNCIA ESTÁ PRESENTE EM TODAS AS CAMADAS SOCIAIS

"Sob esta lógica, passa-se a associar o estupro a pobreza, a uma determinada classe social e a um tipo 'específico' de homem (pobre e desempregado). A cultura de estupro é um problema nosso enquanto país. A violência está presente em todas as camadas sociais. Ser ou não um agressor independe de condição financeira, status social, ou situação de trabalho. Precisamos, com urgência, direcionar o foco para as questões de gênero, para o discurso machista e para essa lógica patriarcal que legitima a ocorrência de violência e autoriza tantos 'homens de bem' a se tornarem nossos algozes."
Arielle Sagrillo, doutoranda em psicologia forense pela University of Kent, da Inglaterra.

Leia também: Mulheres em mais de 40 cidades brasileiras tomaram as ruas contra a cultura do estupro

NÃO SE DENUNCIA E NÃO SE EXPÕE HOMENS RICOS, DE ALTOS CARGOS

"Essa relação entre pobreza e violência já foi desmistificada pelas ciências sociais há pelo menos três décadas. A socióloga feminista Helleieth Saffioti bem dizia que a violência contra a mulher é extremamente democrática porque ela atinge a todas as classes sociais.

Um homem que perde o emprego não é um estuprador em potencial. Homens numa sociedade patriarcal são estupradores em potencial porque têm uma certa legitimidade social (ainda que não legal) para violar os direitos de uma mulher, violar sua integridade e sua dignidade, seu corpo e sua vida. O que acontece em geral é que nas classes altas, a violência contra a mulher e o estupro são escondidos sob um manto de hipocrisia e dupla moral, onde não se registra, não se denuncia e não se expõe homens ricos, homens de altos cargos, frente a suas práticas violentas. Existe um silêncio e uma impunidade brutal com um professor universitário, um juiz, um político – o que não acontece com um pedreiro, um motorista de ônibus ou um trabalhador das classes populares, por exemplo."
Izabel Solyszko, feminista, assistente social, professora e doutora em Serviço Social pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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OS 33 HOMENS SÃO FILHOS SAUDÁVEIS DA CULTURA DE ESTUPRO

"Vincular de forma direta 'desemprego' e 'aumento da violência doméstica e sexual' pode levar à reprodução de leituras parciais carregadas de preconceitos de classe que reforçam a criminalização da pobreza. Se a violência contra as mulheres fosse patrimônio exclusivo de quem é demitido ou empobrecido, não teria governantes nem lideranças religiosas ricas e poderosas acusadas de violência doméstica, pedofilia, estupro.

A cultura de estupro está presente na propaganda que nos compara com uma garrafa de cerveja; na visita de Frota ao Ministro de Educação; na nudez que se compra como mercadoria mas se reprime quando se trata de um corpo que resiste e luta; na 'inocente' piada machista; na proibição do 'debate de gênero' nas escolas, na imagem de mulher como 'recatada e do lar'. Os 33 homens são filhos saudáveis da cultura de estupro, tão necessária e funcional à barbárie cotidiana.

Precisaremos por muito tempo das companheiras feministas para fazer esse trabalho de denúncia, educação e organização nas ruas, nas praças, nas escolas, nas igrejas, nos parlamentos e nos lares."
Katia Marro, assistente social, docente do curso de serviço social da UFF (Universidade Federal Fluminense) e integrante do Movimento Chega de Estupros em Rio das Ostras.

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