Dia 26: O triunfo do riff e o espaço sideral conquistaram o segundo dia do Milhões

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Milhões de Festa

Dia 26: O triunfo do riff e o espaço sideral conquistaram o segundo dia do Milhões

Rendidos à "prata da casa".

A noite extremamente sóbria de sexta-feira (a sério, juro, mãe) deu lugar a uma madrugada coberta pelo refrescante manto do nevoeiro, de tal forma espesso que é possível que D. Sebastião tenha pulseira do festival. Felizmente confirma-se apenas o mimo para um almoço à fresca numa esplanada barcelense, pois o dissipar da névoa revela um novo dia de sol e calor, qual flautista encantado que nos puxa para os palcos mais frescos.

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A piscina afigurava-se como a resposta mais óbvia às quentes temperaturas, onde trocámos umas bolas com um cavalo e um coelho (isto há de fazer sentido com as fotos, espero), e porque as coisas boas nunca vêm sós, o palco trouxe-nos belos momentos auditivos e dançantes, mesmo com as duas substituições de última hora — o Mdou Moctar e a sua banda substituíam os Jack Shits, e La Flama Blanca trocava a sua posição nos horários com Awesome Tapes From Africa. E para cada um dos três concertos que vimos, estados de espírito diferentes: se os ritmos tribais de Mdou Moctar aqueceram ainda mais o ambiente, as guitarras refrescantes dos Memória de Peixe reuniram cada vez mais olhares atentos, quer em frente do palco, quer nas bordas da piscina. Coube a La Flama Blanca aproveitar a disposição festiva dos banhistas, e bastou apenas um par de versões latinas de hinos de eurodance (segundo festival seguido em que cantei "What is Love" do fundo dos pulmões — que se passa comigo?) para meter ao rubro todos aqueles que dançavam à sua frente. A caminho da Casazul somos brindados com a visita do Gonçalo ao parque de campismo, para um pequeno registo intimista que lhe assenta tão melhor que qualquer céu aberto e disperso. Outra das inesperadas pérolas que justifica algum atraso prende-se com a aula de aeróbica a acontecer em pleno centro da cidade, à qual, sendo nós uns completos alarves à mesa, não pudemos deixar passar. Ainda suadões, com as fitas aberrantes na cabeça e com menos cinco quilos, apertámo-nos para caber no concerto que os Black Bombaim, filhos desta terra, deram juntamente com Isaiah Mitchell, monstro da guitarra que sustenta os enormes Earthless. Num encontro cheio de oportunidade e de harmonia instrumental, ensamble bonito a que se juntaram também o Rodrigo Amado no saxofone e o Shela nas teclas, o norte-americano emprestou à actuação exímia e pujante da banda uma tão maior amplitude e envolvência sonora, praticamente sem tropeços nem interrupções, salvo pela Polícia, que quis fazer parte do espectáculo e mandou toda a gente jantar já perto do final. Noite caída, e no palco secundário aguardava-nos uma sequência impiedosa de três óptimas bandas portuguesas. Coube a inauguração aos Killimanjaro, e não tardou muito para que o headbang conquistasse seguidores por esse público fora, junto ao qual já se encontravam alguns seguidores dos High on Fire vestidos a preceito. Se não o sabem já, Hook, disco de estreia destes rapazes, é uma formidável colecção de riffs pujantes e cheios de garra, e o seu concerto neste Milhões de Festa acabou por ser a reflexão disso mesmo: rock pesado, aqui e acolá a puxar para o stoner, sem medo de carregar bem fundo no acelerador e de o gritar a todas as caras. Bastaram-lhes dez malhas apenas — incluindo a tão-do-caralho “Shortie” e uma novíssima canção, mesmo a fechar o concerto — para elevar a fasquia e deixar toda a gente bem aquecida. Bom trabalho, rapazes. Se nesse palco a festa se fazia de “prata da casa”, no Palco Milhões acontecia a festa do pijama. Mdou Moctar toca pela segunda vez em apenas algumas horas, fruto de mudanças horárias, depois de terem agitado os seus longos robes brancos nas margens da piscina. De aspecto afável e, nota do público, tez caramelizada, o trio liderado pelo nigeriano dedilha um kraut inocente e cru regado com especiarias africanas, as sandálias dançando alegremente pelo palco. Mote em que pegaram os Flamingods, os seus robes bem mais floridos e a sua música bem mais ecléctica. Se os moctares ocupavam timidamente um quadrado com quatro ou cinco m2, os flamingos encheram o palco, de energia e da instrumentalização mais variada, correndo-o de lés a lés como se de uma maratona musical se tratasse. A dar tudo pela festa, num dos maiores concertos do festival, vimo-los a tirar a roupa (e esta é a frase com mais internet dentro deste artigo). Entre as duas actuações houve espaço para a mudança de registo dos Equations. Longe estão as actuações caóticas, as time signatures estonteantes e as vozes estridentes. Os Equations estão tão diferentes que é improvável que quem os tenha visto ao vivo há cerca de um ano acredite sequer que é a mesma banda a que subiu ontem ao palco. Mas sentimo-nos mal com isso? É que nunca na vida. O math rock deu lugar a um prog cósmico e sideral, onde os sintetizadores conquistaram o seu espaço juntamente com as guitarras e o baixo que quase nos levaram a gravitar para outra dimensão, à semelhança do drone que sobrevoava as nossas cabeças. Tornaram-se mais acessíveis, é certo — e as canções de Frozen Caravels já nem fazem parte do alinhamento — mas também mais sofisticados, com maior certeza do que fazem e sabem fazer. Conquistaram quem os foi ver, e a nós também, e não poderíamos estar mais ansiosos pela chegada do segundo disco.

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Se os Equations levaram um makeover gigante, já os Glockenwise não mudaram nadinha — e isso é óptimo. Os filhos da terra, de regresso à cidade-mãe e a um festival que também é seu, estão cada vez melhores e o seu rock saltitante também. Regressaram ao Milhões de Festa com o tipo de estaleca que a experiência de inúmeros concertos por esse país fora lhes transmitiram — um pouco como um clube que na Liga dos Campeões adquire maior andamento para o campeonato nacional — o que se nota bastante no à-vontade e na confiança que emana no quarteto. As canções altamente eficazes de Building Waves e Leeches contagiaram sem dificuldade a multidão que por lá se juntou e os Glockenwise deram — mais um — excelente concerto. Aos virtuosos High on Fire coube a responsabilidade de guiar o festival pelo pesado caminho dos riffs stoner acelerados sobre o metal opulento de força tal que todo o recinto abalou. À falta de intérprete que desmitificasse os gritos ociosos do enorme Matt Pike, a plateia responde com uma moldura humana que se contorce violentamente sobre si mesma e eleva nadadores de gente e peças de roupa pelo ar. Encerrado que estava o palco Milhões pelo dia, as atenções voltavam-se de novo para o palco secundário, onde os Teeth of the Sea enfrentavam uma noite bastante mais fria do que a anterior. Mas apenas em temperatura, já que a psychadelia celestial dos londrinos, em conjugação com um jogo de luzes bastante certeiro se traduziu num concerto onde as canções de Master ganharam um renovado — e mais interessante — significado face às suas versões de estúdio. Pouco depois – naquele que será um dos nomes de projecto mais auto-descritivos de sempre — Brian Shimkovitz apresentava Awesome Tapes From Africa, um showcase de cassettes encontradas por esse continente africano fora, cujas actuações ao vivo se desenvolveram a partir do blog criado pelo próprio Shimkovitz que documenta as novas e singulares adições ao seu acervo. À descoberta dos ritmos africanos — servindo-se de leitores de cassettes para o efeito — sentimo-nos num daqueles documentários da National Geographic relatados pelo David Attenborough, e até arriscámos um pézinho de dança malandro perante o batuque dos tambores, tal como tantos festivaleiros o fizeram naquele recinto, numa noite que terminou novamente com a névoa, em todos os sentidos.

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