Apologia da Marijuana
Foto por Jaime Saldarriaga/Reuters (publicada originalmente na nossa plataforma VICE News)

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Drogas

Apologia da Marijuana

"Quando esta discussão chega às linhas editoriais dos noticiários também se sente um cheirinho a mofo. Quer dizer, a mensagem não está no que se diz, mas no que não é dito. Aquilo que o Hitchcock fazia em ficção para o espectador se sentir inteligente..."

_"Did we know we were lying about the drugs? Of course we did" - _John Ehrlichman (US__ Domestic Affairs Advisor 1969-1973)

Quando o tema da canábis ressurge no panorama mediático, há sempre um esforço em apresentar provas dos benefícios da planta. Parece-me que tem sido este o erro recorrente. Já não é uma questão de falta de informação. Uma vez que isto é sabido, quem deve fazer o esforço argumentativo são as pessoas a quem lhes é dada uma plataforma para se oporem a que adultos usem e comercializem uma planta que é benéfica para tanta gente. Porque, das duas umas, ou essas pessoas são um pouco "distraídas", ou estão a usar a plataforma para empurrar uma ideologia contra todas as evidências.

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Enfim, há-de existir sempre gente disposta a dar a cara por outras, que não querem fazer figura de pateta. Parece-me ser esta a chave. Estes que dão a cara podem ser usados como ferramenta, no sentido em que, quanto mais falarem e mais justificarem a proibição, mais os argumentos se vão revelar pelo que são: intelectualmente desonestos, no melhor dos casos, ou directamente palermas.

A ideia aqui é, ao contrário do que se tem feito sempre nestes debates, passar o ónus de prova para quem está a condenar a legalização da planta, em vez de o dirigir a quem beneficia com o seu cultivo, comercialização ou uso. A estratégia é o reductio ad absurdum. Os argumentos sob escrutínio são verdadeiros ou falsos e os falsos, inevitavelmente, caem pelo seu próprio peso.

Tem sempre graça ver alguém a negar o óbvio. Vamos rir-nos e a Internet agradece. No mínimo, vamos assistir a um desfile de mercenários de opinião a defender interesses de outros, sabujos assalariados e imbecis. É no formato televisivo que estes Meletus profissionais florescem. É o seu habitat natural, uma vez que é uma plataforma que chega a muita gente (felizmente, cada vez menos) e, também, por ser um meio que é tudo menos um espaço onde se confrontam e debatem ideias. É ideal, porque ninguém ouve ninguém. É um sprint de slogans, um concurso para ver quem consegue atirar mais vezes o "soundbite" que pensam ter maior ressonância com o público e, entretanto, vendem-se champôs anti-caspa e iphones.

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Quando esta discussão chega às linhas editoriais dos noticiários também se sente um cheirinho a mofo. Quer dizer, a mensagem não está no que se diz, mas no que não é dito. Aquilo que o Hitchcock fazia em ficção para o espectador se sentir inteligente. De manhã dizem-nos que o consumo de canábis aumentou entre os jovens e, à noite, mostram imagens de desdentados que não conseguem articular uma frase, a tocar djembé na marcha da marijuana.

É estranho, porque conheço tanta gente que usa esta planta e nenhum deles é o analfabeto que passa o dia na rua a medicar-se. Todos são adultos responsáveis… contribuintes portanto e, os benefícios que tiram desta planta variam tanto como as ideias políticas de cada um. A marijuana não é o factor determinante, são as pessoas. Assim como no caso dos acidentes nas auto-estradas não são os carros, ou a violência nos estádios não é o futebol.


VÊ também: "Marijuana medicinal e as crianças que a tomam"


Um dos argumentos contra a legalização é o caso do Uruguai que, em 2012, legalizou a comercialização da canábis e está agora, aparentemente, a enfrentar problemas judiciais com as redes de tráfico. Este argumento não é válido por vários motivos. Em primeiro lugar, e o mais óbvio, é que os problemas judicias que possam estar a ter, inerentes à legalização da canábis, não serão com certeza piores daqueles que tinham quando o negócio estava no mercado negro, tal como os custos. Em segundo lugar, o exemplo usado ser respeitante a um país da América Latina, toda uma realidade bastante distante da nossa, tanto a nível social, como cultural.

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E a prova disto é que existe realmente um modelo que é um caso de sucesso numa sociedade que nos é bem mais próxima. Refiro-me ao modelo do Estado do Colorado, nos Estados Unidos. Com uma população de cinco milhões de habitantes, o Colorado legalizou o comércio de Canábis a 1 de janeiro de 2014. Um ano depois os benefícios são óbvios. Para além de se registar uma diminuição significativa dos índices de criminalidade e sinistros rodoviários, o que realmente superou as expectativas foi o aumento da receita fiscal, do desempenho económico, e da criação de emprego. São números que não se podem ignorar.

Só em 2015 o estado do Colorado teve uma receita fiscal de 135 milhões de dólares sobre a venda de canábis, e um volume de vendas de 996 milhões. Actualmente, o Colorado é o estado norte-americano com um maior crescimento económico e com a taxa de desemprego mais baixa dos últimos seis anos.

No último Congresso do PS, em Junho de 2016, o tema da canábis foi posto em cima da mesa pela Juventude Socialista, com a intenção de que seja feita uma proposta de lei para a legalização. Os cínicos com quem falo, justificam o reaparecimento desta conversa no espaço público, não por coragem política, mas por interesse económico. A opinião pública em relação à canábis está muito mais aberta, quer dizer, não há um risco político significativo, uma vez que grande parte do eleitorado está informado sobre o que a planta é e o que faz.

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O eleitor na casa dos 50, por exemplo, é muito diferente do eleitor na mesma faixa etária há 15 ou 20 anos atrás. Esta é a abertura que há agora e não havia antes. Se dividirmos o Mundo entre os que mandam, os estúpidos e os cínicos, no meu tempo de vida adulta, os cínicos têm acertado quase sempre e é por isso que é difícil não pensar que o Governo está a testar as águas da opinião pública para não deixar fugir a oportunidade de controlar este negócio.

Apesar de tudo isto, tenho cada vez mais a sensação de que, neste assunto, não lidamos apenas com a hipocrisia a nível dos interesses económicos. É importante também tentar ter uma visão holística da coisa. Talvez seja a menos prática, mas é, seguramente, a mais interessante e a que explica mais coisas. O facto de as drogas terem estado sempre associadas à contra-cultura não é uma coincidência, parece quase um mecanismo orgânico, que a própria sociedade cria para se adaptar e sobreviver, para dar pulso e direcção à vida, para se renovar e expulsar da cultura o que estiver a desvirtuar, ou a prejudicar a sociedade.

Este processo é essencial para a sociedade não se auto-destruir. É por isso que a contra-cultura que interessa passa, inevitavelmente, a ser a cultura vigente e a que não interessa desaparece. Todos nós - e também os que viveram antes de nós - estamos confinados a uma programação mental inerente ao contexto e ao tempo em que vivemos. A uma interpretação da realidade que é imposta por todos, a todos, sem nos darmos conta. O que o canábis faz e, em geral, as drogas, é abrir esse espectro de realidade e olhar para essa programação mental pelo que é: um software utilitário de processamento de realidade, que serve para podermos funcionar em conjunto eficientemente.

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Este exercício de desmontar as estórias que contamos a nós próprios é uma função que sempre existiu. Está enraizada na nossa cultura desde que o homem tem consciência de si próprio e da sua mortalidade. Podíamos varrer quase toda a história da humanidade. Dos xamãs (que tinham a função de intuir o futuro, curar, melhorar e guiar a tribo) à ciência actual, passando pelos oráculos de Delfos na Grécia antiga que, segundo alguns filólogos clássicos, foram quem influenciou Sócrates a ensinar e a perseguir o conhecimento. Sócrates o filósofo, não o outro gajo.

Por outras palavras: O importante não é a marijuana, é tudo o resto.

Não há interesse em que estejas em casa a ver um filme e, ao entrar em cena um mau actor, contorceres-te de incómodo. Porque esta amplificação da sensibilidade vai transbordar para tudo o resto. Vais olhar para o lado e ver que, o que está a guiar a tua cultura é um espetáculo circense de narcisistas, animadores de campos de férias e vivaços a tratar da sua vida. No segundo a seguir, vais-te perguntar: estes são os melhores que temos? Não. Porque é que não temos os melhores nestas funções? Porque não querem. O castigo que temos para os melhores que não se querem envolver é terem que ser governados por alguém pior que eles mas, na verdade, todos sabemos que quem se fode somos nós.

Tentando terminar numa nota positiva. Aceitar na vida comum uma substância que nos obriga a olhar para nós próprios e para o nosso redor de uma maneira mais próxima e honesta, é uma virtude que só vai trazer resultados mais racionais. Voltando aos gregos, que inventaram esta argamassa toda na qual a realidade que vivemos está sustentada, "a virtude não nasce da riqueza, mas da virtude vêm, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto públicos como privados".

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