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Música

Não andei com flores na cabeça durante o Primavera

Mas vi imensos concertos bons.

Foram três dias de coroas de flores, música, pessoal a relaxar na zona dos baloiços, danças estranhas até às tantas da manhã, mais coroas de flores, comida boa, pessoal que curte música e de pessoal que finge curtir música. O Primavera Sound voltou a marcar pontos e já deixa saudades. E este ano nem choveu.

30 DE MAIO “Es aquí, Guadalupe?” Pergunta feita de imediato na língua irmã quando se chega ao palco Super Bock e, sob o vento forte que se fazia soprar, os Guadalupe Plata abrem o festival quase desconhecidos — mas que ninguém diga menos bons. O trio espanhol, com muitos conterrâneos na audiência, e composto por uma bateria, uma guitarra e um barreño, abriu da melhor forma com o seu rock garageiro e gingante. Se Bo Diddley tivesse nascido no deserto andaluz, muito provavelmente seria como Perico de Dios, vocalista cool cheio de amor por Ray-Bans e feedback. O mote era o disco novo, homónimo, e não só não desiludiram quem já os conhecia, como também terão angariado uma nova legião de fãs. Houvesse mais aberturas assim. Breeders. As Breeders vieram para tocar Last Splash na íntegra e foi precisamente isso o que fizeram. Após uma introdução em português arranhado, rematada com um “motherfuckers!”, engataram nos anos 90 e enloqueceram a audiência composta por jovens e quarentões anteriormente jovens, para quem a chama do rock ainda não morreu. “Cannonball” e “Divine Hammer” foram, claro está, das faixas melhor recebidas, mas crê-se sobretudo — embora mais não fosse exigível considerando as vicissitudes da idade — que faltou alguma faísca à banda de Kim Deal. Talvez tivessem obrigação de fazer um pouco melhor. De Nick Cave poder-se-ia escrever muitas coisas, mas uma soa mais verdadeira do que as restantes: tem tanta classe, este cabrão. Descendo até às primeiras filas como um Deus desce do céu perante os seus acólitos, o australiano deixou desde logo todos os olhos postos em si, fosse pela pujança da sua voz, fosse pelos sensuais movimentos de anca que Warren Ellis lhe ia permitindo pela força da guitarra, ou fosse pela suavidade de “We No Who U R”, canção que abre o mais recente disco (já sem Mick Harvey), Push The Sky Away. Mas não faltaram clássicos: “Red Right Hand”, “The Weeping Song”, uma brilhante “Jack The Ripper” e uma versão mais curta de “The Mercy Seat”, entoadas por tudo quanto era garganta ou língua, antes de se entregar por completo ao público e lhes dar o ponto mais alto do concerto durante a canção-faca que é “Stagger Lee”, onde houve espaço para invectivas contra a praga que é um iPhone num concerto no século XXI. Termina com a bonita “Push The Sky Away” e despede-se sem encore para tristeza de todos — deu-se aqui um dos concertos do ano. Quando o disco de estreia de James Blake saiu em 2011 vaticinou-se um caso de sucesso tão grande quanto o dos compatriotas The xx e, a julgar pela quantidade de pessoas que resistiu no recinto após Cave ter saído, dir-se-ia que essas premonições estavam correctas. Muito público a assistir ao terceiro concerto português de Blake, sendo que desta vez havia um novo disco para ser explorado, apesar de terem sido as canções “antigas” que mais puxaram pela audiência: “I Never Learnt To Share” teve direito a coro, “CMYK” foi dançada por praticamente todas as cabeças e “Limit To Your Love” permitiu momentos bonitos entre casais. Em pouco mais de uma hora, Blake mostrou que merece o estatuto de artista de culto — mais do que isso, só o futuro o dirá. Para já fica o tremor de terra causado pelos graves. 31 DE MAIO Já os Dear Telephone tinham abandonado o Palco Super Bock quando os Memória de Peixe, perante uma plateia que se foi compondo, desfilaram os temas do seu disco homónimo, editado no ano passado. Canções como “7/4”, a imprescindível “Estrela Morena” ou “Fishtank” juntaram o útil (as canções em torno de loops) ao agradável (o sol de fim de tarde). O duo, que não teve medo do tamanho do palco, deu um óptimo concerto, tendo havido ainda espaço para uma canção nova, ainda sem título. Consta que os Local Natives, que tocariam de seguida, ficaram bastante surpreendidos (no bom sentido). Local Natives. Quinze minutos do peso dos OM não chegou para desenvolver uma análise concreta daquilo que foi a sua actuação no palco ATP, mas de Daniel Johnston diga-se isto: não haverá ninguém mais genuíno — esse termo tão em voga entre a facção indie— do que ele. Sofrendo infelizmente do som de fundo (à mesma hora os Local Natives actuavam no palco principal), Johnston não deixou por isso de dar um belíssimo concerto, tendo-se apresentado com banda e, sempre na mesma onda outsider, ouviu-se rock a rasgar, algum pó funk e, como não podia deixar de ser, “True Love Will Find You In The End”, canção maior do que esta vida. Naquela que foi provavelmente a única oportunidade de o vermos por cá, não defraudou expectativas. Mão Morta. Os Mão Morta são os Mão Morta, cometa girando em torno de si mesmo, raio trespassando a neblina, ou o mofo, que ofusca o rock português da geração de 80. Olhos fixos, sempre, na figura messiânica de Adolfo Luxúria Canibal, que acompanhava as guitarras e o groove na cadência louca e na ginga frenética que tão bem lhe conhecemos. A banda de Braga, que substituiu o veterano Rodriguez à última da hora, apresentou-se em formato best of naquele que terá sido seguramente um dos concertos do festival, sendo que uma verdadeira legião de admiradores, indiferentes aos Swans (seus pais de sangue) que à mesma hora tocavam, marcaram presença no recinto. De “Aum” a “E Se Depois”, passando por “Novelos da Paixão” e “Arrastando o Seu Cadáver”, até à saudosa “Barcelona” e terminando com “Anarquista Duval”, os Mão Morta deram o concerto habitual: excelente. Swans. Já na Galeria Zé dos Bois e no Plano B havíamos tido a noção daquilo que os Metz são capazes de fazer: de Toronto para o mundo, com a raiva punk na ponta dos dedos e dos acordes, o trio rasgou por completo o palco Pitchfork perante uma plateia mais preocupada em fazer crowdsurf do que em propriamente disfrutar do concerto — mas tudo isto faz também parte do espectáculo, claro. Com o seu disco homónimo ainda bem presente na memória, não estranhou que “Wasted”, “Get Off” e “Headache” tivessem honras de acompanhamento coral vinda da audiência. Pecou por escasso, mas não esqueçamos que o disco não chega aos trinta minutos de duração. Mais tensão e a tenda partia-se ao meio. Gigantes. Blur. Ressuscitados e longe já das (supostas) guerras abertas com os Oasis nos idos 90, os Blur apresentaram-se perante um recinto cheio que não deixou de entoar cada frase saída da garganta de Damon Albarn, o que se iniciou logo com “Girls & Boys”, canção retirada do velhinho Parklife — aliás, como não pensar que, no meio desta moldura humana e composta por gente de todas as idades e famílias, não tenha existido alguém concebido ao som desta canção? Embora, tal como no caso das Breeders, faltasse ali qualquer coisa, os britânicos não deixaram de dar um óptimo concerto, destaque feito para a melodia bonita de “Caramel”, para “Coffee & TV” — cujo vídeo alguém na plateia fez questão de nos relembrar, erguendo uma montagem da mítica personagem do pacote de leite — e para o encore de quatro canções terminando, claro, com “Song 2”. Está cumprido o desejo de muitos: ver Albarn novamente num palco português. Agora falta chamar os Gorillaz. Meat Puppets. 1 DE JUNHO Já o cansaço do último dia se fazia sentir nas pernas e nas cabeças de toda a gente quando os Glockenwise iniciaram a sua actuação no palco Super Bock perante um público demasiado escasso para uma banda deste calibre — não que isso os tenha impedido de subir ao palco para fazer o que lhes competia: divertirem-se e divertirem-nos. Não faltaram os clássicos (“Scumbag”, “Bardamu Girls”) nem as canções do mais recente Leeches ( “Napoleon”, “Time to Go”) num grande concerto dos auto-intitulados, pelo menos para o público estrangeiro, Xutos & Pontapés, “the greatest Portuguese rock band ever”. Os The Drones são da Austrália, por isso é justo que o vocalista Gareth Liddiard se sinta tão à vontade para encarnar na sua voz os melhores fantasmas de Nick Cave, acompanhado, ainda assim, por uma banda mais preocupada em imitar os Swans. Não que isto seja de todo mau. O quinteto deu um magnífico concerto que não passou despercebido nem às mais altas divindades — Adolfo Luxúria Canibal, por exemplo, não saiu das grades. Já os Dinosaur Jr. provocaram uma das maiores enchentes do último dia, arrancando a uma plateia de gente alternativa e simpática enormes ovações. Gente que cresceu a ouvir Bug e nunca se fartou. Falávamos de divindades? Kevin Shields, dos My Bloody Valentine, estava em cima do palco, observando tudo com atenção. Muito aguardados por todos quantos choraram no ano passado com o seu cancelamento, os Explosions In The Sky não fizeram grande jus ao seu nome (faltaram, sobretudo, explosões), mas deram um concerto agradável. Muito ovacionados, ofereceram ao público o seu pós-rock morninho ao qual só faltou o cliché do isqueiro no ar — só alguns braços, aqui e ali, superavam a expectável letargia do público, visto que falamos de rock instrumental e não de hardcore fodido. Mas os corações, tanto em palco como no público, estiveram sempre ao alto, e essa empatia culminou na despedida final dos EitS do palco, a apoteose com o “obrigado” da praxe. Dos My Bloody Valentine era esperado sobretudo ruído — para quem viu o concerto no Algarve há quatro anos, foi bastante menos ensurdecedor — mas não deixaram de ser os gigantes que são. Entre canções de Loveless (“When You Sleep”), do seu EP mais conhecido (“Thorn” e “Cigarette In Your Bed”) e do saudoso Isn't Anything (“Feed Me With Your Kiss”), para além das canções que compõem o seu mais recente disco, parcamente intitulado m b v. Para o final, claro, estava reservada a loucura de “You Made Me Realize” e da mítica Holocaust Section, que ainda chegou a render uma sessão de crowdsurf nas filas mais em frente, bem como a canção que faz do seu disco de 2013 algo a ter em conta, “Wonder 2”. Nem foi preciso colocar tampões nos ouvidos — o que é chato — mas foi um concerto estupidamente genial. Fotografia por Helena Granjo