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Onda de assassinatos em Londrina é a maior chacina brasileira de 2016

No interior paranaense, uma cidade testemunhou, amedrontada, a escalada excepcional da violência urbana, com direito até a “toque de recolher” em pleno sábado à noite – e, mesmo assim, tem quem peça mais sangue.

No lugar de gente nas filas dos bares, carros e motos; vazio e silêncio. No lugar de compaixão às 17 vítimas fatais da matança, o ódio dos comentaristas de internet. Foto por Murilo Pajolla.

Neste fim de semana, um sentimento paralisou a maior cidade do interior do Paraná: medo. Na madrugada deste domingo (31), Londrina em nada se parecia com a cidade de 550 mil habitantes, palco de uma agitada vida noturna. Boa parte da população obedeceu ao toque de recolher supostamente conclamado por policiais e criminosos divulgado por meio do WhatsApp. Os textos e áudios alertavam para o iminente confronto nas ruas entre PCC e Polícia Militar (PM), com previsão de "tiroteio, blitz e sangue". Os boatos, apesar de negados pela PM, foram suficientes para deixar a cidade praticamente deserta.

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Os rumores começaram a circular ao final de uma semana sangrenta que entrará para a história da cidade, com 17 mortos e pelo menos 15 feridos. Todas as vítimas de armas de fogo foram alvejadas em regiões vitais enquanto estavam em locais públicos – e sem chance de defesa. O número representa 30% do total de homicídios registrados na cidade em 2015. "Dá a impressão de estarmos em uma terra sem lei, um verdadeiro faroeste", disse, enquanto fechava as portas de seu estabelecimento três horas antes do previsto, o gerente de uma pizzaria que preferiu não se identificar.

O secretário de Segurança Pública do Paraná, Wagner Mesquita, esteve em Londrina na tarde deste domingo (31) para anunciar a criação de uma força tarefa formada por 80 policiais militares e Polícia Civil para "cumprir mandatos de prisão, fazer abordagens, cercos, blitz e apreender armas e drogas" durante 10 dias com o objetivo de devolver à cidade os índices de criminalidade "de costume".

A primeira sequência de mortes teve início na madrugada da terça-feira (26), quando um PM que saía de uma farmácia na região norte foi atingido por disparos e levado ao hospital. Aí começou a carnificina: em 24 horas, sete pessoas seriam mortas. O mesmo aconteceu a partir da noite de sexta-feira (29), quando outro PM foi baleado e morto. À sua morte, seguiram-se outras dez em diversos bairros.

Apesar do intervalo de tempo entre as duas sequências de crimes, Mesquita afirmou que não houve falha das forças de segurança. "Não se pode estar preparado para uma situação anômala. Não houve omissão", justificou.

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A matança ganhou contornos de acerto de contas entre policiais e crime organizado, hipótese reforçada pelos áudios atribuídos a membros do PCC (Primeiro Comando da Capital) que circularam pelo WhatsApp de centenas de londrinenses.O PCC atua no Estado desde 1998, quando seus líderes foram transferidos para penitenciárias locais. O Ministério Público de São Paulo já apontou que o Paraná é o segundo Estado em que a facção é mais ativa.

Mesmo assim, o governo paranaense não demorou a negar o envolvimento do PCC. "O que se sabe neste momento em relação às facções é que não há uma grande ordem nesse sentido. Se houver algum tipo de investidura, é por questões de quadrilhas locais", afirmou o secretário, que também não descartou o envolvimento de policias militares nos crimes. Mesquita afastou a possibilidade de ligação entre os crimes em Londrina e na região metropolitana de Curitiba, onde dois PMs foram executados no fim de janeiro.

A "limpeza dos marginais" e as redes sociais

O medo geral deixou as ruas vazias, mas não a internet. Uma observação apurada da repercussão do caso nas redes sociais revela que a sensação de insegurança generalizada foi diretamente proporcional à virulência dos comentários de internautas. Páginas de notícias policiais, acostumadas a publicar fotos de cadáveres ensanguentados, receberam centenas de comentários elogiando os autores da carnificina. Assim, legitimou-se o rumor de que a Polícia Militar convocaria o toque de recolher, cujo ônus, a privação temporária do direito de ir e vir, seria superado pelo bônus, a "limpeza" da cidade de "marginais".

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Nesse ambiente de clamor pela execução sumária de "bandidos", o que fere as premissas básicas dos direitos humanos, o número de mortos em confronto com a PM paranaense impressiona. De acordo com números levantados pelo jornal Gazeta do Povo, perderam a vida entre janeiro e novembro do ano passado 196 pessoas, 20% a mais do que o registrado em 2012. O índice de letalidade – número de mortes dividido pelo efetivo policial do Estado, cerca de 16 mil homens e mulheres – é de 0,012, o dobro do índice registrado no Estado de São Paulo, que é de 0,005, com 469 mortes (entre janeiro e setembro de 2015) para 90 mil militares.

Uma das vítimas fatais cujas imagens foram divulgadas no Facebook foi Ícaro Araújo, 19 anos, morto a tiros em uma residência na zona oeste de Londrina na madrugada de sábado (30), onde entrou para fugir.A imagem mostra o cadáver franzino vestindo camiseta, bermuda e tênis deitado no chão do quarto com os olhos sem vida mirando o teto. Pode-se ver um rastro de sangue que ia de baixo da cama até Ícaro, sugerindo que ele fora alvejado enquanto se escondia dos atiradores para depois se arrastar ou ser arrastado para fora do esconderijo. "Não acredito que vão entrar dentro da sua casa para te matar sem você dever nada. Estranho", sentenciou um internauta diante da imagem brutal.

Uma das 17 vítimas da matança em Londrina, Ícaro foi julgado e condenado culpado por usuários do Facebook. Foto retirada do perfil do Ícaro no Facebook.

Versão da família e dos amigos

"Sobre as pessoas que dizem que ele é bandido, estão totalmente enganadas. Jamais deveriam julgar uma pessoa sem antes conhecer sua história." O autor da frase é Everton Cruise, que conversou com a reportagem da VICE sobre sua amizade com Ícaro. "Convivi com ele uns seis anos. Sou inspetor da escola onde ele estudava. Ele tinha uma vida simples, assim como a minha, uma família maravilhosa e sempre foi rodeado de amigos. A última vez que conversei com ele foi no final do ano passado, quando jogamos bola juntos. Ele estava alegre, sorridente… estava feliz", lembrou, emocionado.

O tio de Ícaro, José Sartor, afirma que ele e a mãe do jovem suspeitam que o homicídio foi cometido por policiais. "Ele trabalhava de padeiro em um supermercado e estava em Londrina há menos de três meses. Morava em Indaiatuba (SP) com os avós e veio para cá a pedido da mãe, que nasceu e cresceu aqui (em Londrina)."

Nesta segunda-feira (1), a cidade está quase de volta ao seu ritmo normal. A força-tarefa composta pelas polícias Militar e Civil em resposta às execuções da semana passada iniciou as atividades de blitz em locais e horários de pico e policiamento ostensivo. Segundo a Secretaria de Segurança do Estado, dois delegados de Curitiba também foram destacados para ajudar na investigação.