Fui a uma festa ilegal secreta no deserto iraniano
Ilustrações por Michael Dockery.

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Fui a uma festa ilegal secreta no deserto iraniano

No Irã se reunir com seus amigos para festejar é considerado crime — o que não significa que os jovens do país deixem de fazer isso escondidos.

"Gostamos de você. Você quer ir para o deserto com a gente?", dois caras me perguntam.

Eu tinha acabado de conhecê-los momentos antes num bazar em Yazd, onde eles me recomendaram um restaurante próximo. Nossa breve conversa resultou na oferta de me levar ao deserto. Claro que eu disse sim. Eu não sabia o que esse convite significava exatamente, mas logo iria descobrir.

À noite, oito iranianos vêm me buscar numa grande 4x4. As idades variam entre 25 e 35 anos, as pessoas são atraentes e bem-vestidas. As mulheres usam lenços mais soltos nos cabelos. Metade deles fala em inglês comigo, a outra metade sorri e me dá tapinhas no ombro.

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Me espremo no banco de trás perto da comida e do qalyun – um narguilé iraniano de tabaco. O grupo está empolgado e, enquanto corremos por uma estrada no deserto, eles cantam alto. A música sai do som do carro e há uma sensação de liberdade que não pode ser totalmente apreciada por uma pessoa do meu contexto: vivendo na Austrália, nunca tive meu direito de festejar restringido. Apesar de tudo isso, sinto uma adrenalina nervosa. Não sei se o que estamos prestes a fazer é legal.

Você provavelmente já leu sobre as leis severas da República Islâmica do Irã, onde o governo controla o modo como as pessoas se vestem, socializam com o gênero oposto, a música ao vivo, a arte, a criatividade, o álcool e as festas. Bebida alcoólica de qualquer tipo é proibida. Não há clubes noturnos ou bares oficiais. Em maio de 2014, seis jovens iranianos foram presos depois de postar um vídeo no YouTube onde dançavam a música "Happy" de Pharrell Williams. O vídeo foi condenado pelo governo como um "clipe vulgar que fere a castidade pública", e os criminosos receberam 91 chibatadas e foram presos.

Apesar de histórias de perseguição como essa, eu tinha ouvido falar que alguns jovens iranianos arriscavam serem presos para se libertarem dessas regras por algumas horas. Isso era exatamente o que esse grupo de amigos estava prestes a fazer, comigo junto.

O carro para num ponto aparentemente aleatório ao longo das dunas. Reza, o motorista, olha a inclinação brusca na areia e pisa no acelerador.

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"Cuidado Marc Antony", Sara grita para mim.

O carro sobe a inclinação. Minha cabeça vai para trás enquanto meu corpo segue em frente e escuto meu pescoço estalar. Os iranianos gritam de alegria, medo e adrenalina. O carro ultrapassa o topo da duna e começa a seguir pelo deserto plano. Os iranianos comemoram. A lua está cheia e o céu tem tons de vermelho, laranja e roxo. Chacoalhamos pelo deserto até chegar a um lago com centenas de andorinhas mergulhando. O sol está se pondo e eu me encanto com a mudança da temperatura. O calor está diminuindo, a areia está morna e a brisa é fresca.

Com a luz desaparecendo, fazemos uma fogueira no coração do deserto. As garotas tiram seus chadors e soltam os cabelos bem cuidados. Elas estão usando regata e meia-calça, e parece estranho que eu possa vê-las assim. Arak caseiro e cerveja sem álcool são servidos em copos plásticos. Sara e Reza estão cantando. Os que sentem o efeito do álcool começam a dançar.

Sara e Reza são um casal e falam entusiasmadamente comigo sobre seu país. "Meu pai não permite que eu tenha um namorado", Sara diz. "Conheci Reza através de uma amiga. Ele é primo dela e eu o conheci num encontro de família. É muito difícil conhecer pessoas aqui."

Eles são apaixonados pela história persa e se orgulham de que o Irã tenha mantido uma cultura persa apesar de séculos de diferentes regimes, religiões e etnias no comando do país. Nenhum deles está feliz com o Irã moderno. Sara despreza o tratamento dado às mulheres, incluindo os chadors.

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"É muito quente usar isso no verão", ela me diz, apontando seu lenço ao longe. Reza fala dos dois anos de serviço militar obrigatório que os homens enfrentam no Irã quando completam 18 anos: "Todo mundo tenta escapar. Sou doente. Tenho um médico que diz isso". Ele bate na cabeça, implicando que fingiu uma doença mental, e me mostra as cicatrizes em seu braço que eram parte da história.

"Queremos sair do Irã e ir para a Europa ou EUA", me diz Sara. "Só há oportunidades no Irã para quem segue o governo e a religião. Parece que estamos voltando no tempo."

Reza concorda. "Gostaríamos de viajar, mas estamos na lista de países cujos cidadãos tendem a tentar ficar no país", ele diz. "Não conseguimos vistos em lugar nenhum."

Não é a primeira vez que ouço isso no Irã. Muitos iranianos que conheci disseram ter vontade de viajar para outros países, e se sentiam frustrados por não poder fazer isso. Sara e Reza estudam engenharia e alemão na esperança de que a educação possa levá-los ao exterior.

Mas não foi sempre assim. Sara e Reza só precisam conversar com os pais para ouvir histórias de um Irã muito mais liberal, antes da revolução de 1979. Hoje em dia, no Irã, ainda há muitos que apoiam a teocracia islâmica conservadora, mas também há porções da sociedade que querem reformas. No entanto, o modo violento como o movimento pela liberdade de 2009 foi reprimido, deixou os reformistas iranianos convencidos de que nunca haverá mudança no Irã.

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Fico com a impressão de que Sara e Reza se sentem presos em seu próprio país. Eles querem reformas mas não sabem como conseguir isso, e querem ser livres mas não podem sair daqui.

Faróis emergem de uma duna escura e eu tenho certeza que é a polícia religiosa. Na verdade são apenas mais convidados. Um dos carros tem um som potente e começamos a dançar versões eletrônicas de músicas iranianas. A maioria das pessoas não tem muita experiência com bebida, então não demora muito para que estejam bêbadas.

Essa noite não seria minha única chance de festejar com os iranianos. Durante minha viagem, fui convidado para dois casamentos, segregados por gênero, onde vi os homens ficarem bêbados de arak fornecido pelo anfitrião. Me ofereceram haxixe e ópio, e fiquei bêbado com álcool trazido por "traficantes". Aprendi que no Irã há várias etnias e religiões, e que as atitudes em relação às leis e costumes geralmente são definidas por esses grupos sociais diferentes. A vida dos iranianos é governada tanto pelo julgamento de sua família e da sociedade quanto pelo medo da polícia e do governo. No entanto, em toda cidade onde estive, havia oportunidades de escapar dessas leis e tradições. Logo ficou claro para mim que muitos cidadãos iranianos levam uma vida dupla: a pública e a privada.

Conforme a festa vai acabando, sentamos ao redor da fogueira e bebemos café. Sara está deitada com a cabeça no colo de Reza e ele acaricia os cabelos dela. Penso em como a sociedade tenta restringir liberdades e como as pessoas sempre encontram um jeito de contornar as leis e tradições que as impedem de ser feliz. Penso nessas pessoas, no desejo delas de serem sociais e estar em contato umas com as outras; a afeição delas entre si e por mim. Sou beijado no pescoço, tocado, abraçado. Todo mundo está feliz de estar livre, no deserto e longe do que consideram uma sociedade opressora. Penso no risco que eles correm para estarem juntos hoje à noite e como isso deve enriquecer a apreciação deles pelas pequenas alegrias da vida.

Mark Isaacs é o autor de The Undesirables, que conta seu tempo trabalhando num centro de processamento de refugiados em Nauru. Veja mais do trabalho dele aqui.

Ilustrações por Michael Dockery.

Tradução: Marina Schnoor.

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