Will Self: O Ataque ao Charlie Hebdo e as Verdades Incômodas Sobre Nosso Fetiche pela ‘Liberdade de Expressão’

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Will Self: O Ataque ao Charlie Hebdo e as Verdades Incômodas Sobre Nosso Fetiche pela ‘Liberdade de Expressão’

O escritor inglês Will Self opina sobre o atentado em Paris.

Ilustrações por Nick Scott. Retrato de Will Self por Valerie Bennett.

Vou deixar claro: as pessoas responsáveis pelo assassinato de jornalistas na sede do Charlie Hebdo no dia 7 de janeiro foram os homens que apertaram os gatilhos das Kalashnikovs apontadas para eles. Além disso, não precisamos sortear entre nossos epítetos éticos um que se encaixe no caráter desses homens. Não precisamos falar de "barbárie" ou de "uma ausência completa de valores civilizados", nem nos afligir sobre como eles se radicalizaram – porque já sabemos a resposta. Mas o que podemos afirmar inequivocamente é que esses homens, naqueles momentos caóticos de tosse e cheiro de cordite, eram maus. Se por "mal" entende-se isto: um egotismo que cresce como um câncer, um apetite por status e poder e "importância" que entrou em metástase nos cérebros desses assassinos. O problema para os dedicados defensores dos valores ocidentais é que cada um de nós possui essa capacidade para o mal – está implícito na simples existência do ego. Então quando os manifestantes foram à Place de la Republique levantar cartazes onde se lia "JE SUIS CHARLIE", poderiam muito bem ter outros dizendo: "NOUS SOMMES LES TERRORISTES".

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O pensador político francês Alexis de Tocqueville observou que a lei existe para reprimir nossos piores impulsos, e não para encorajar nossos melhores. Os políticos, líderes religiosos e comentaristas que, nas horas e dias que se seguiram a essa atrocidade, falaram sobre liberdade de expressão como um sine qua non desse direito, que por sua vez é essencial para a civilização, teriam feito bem se lembrassem disso e da sua própria história: o nascimento da república francesa teve a presença da justiça – de olhos vendados e ouvidos tapados: chamava-se Terror. Quando os sans-culottes invadiram a Bastilha, encontraram um punhado de prisioneiros na antiga fortaleza, entre os quais, o Marquês de Sade, que logo se viu elevado à posição de juiz revolucionário, despachando "aristos" e outros reacionários para a guilhotina. Foi um belo exemplo de libertação – se com isso entende-se a liberdade de matar para fins políticos.

A ideia que os laicistas franceses possuem sobre seu próprio sistema político (e, a propósito, os laicistas britânicos, sobre o deles; os americanos, o deles; e assim por diante) é que ele não só estimula seus melhores impulsos, mas que, se aperfeiçoado, trará a toda a população uma liberdade suprema e uma bondade absoluta. Este é um processo que tanto direita quanto esquerda parecem achar irreversível – seja impelido por algum tipo de "seleção natural" moral ou pelo determinismo histórico. Para esses paladinos, o projeto da Iluminação de se aperfeiçoar a natureza moral do homem ainda está em curso e só vai terminar quando um céu (ateu) for estabelecido na Terra. Mas tal progresso tão cabalístico é exatamente o que se desmoraliza, não só pelo assassinato dos jornalistas parisienses, mas pelos ataques de drones na Síria, no Iraque e no Waziristão, que também são conduzidos para fins político-religiosos. É desmoralizado também pelo clamor que se segue a toda atrocidade terrorista, em que se pede a suspensão exatamente desses aspectos da lei que existem para reprimir nossos piores impulsos. Em particular, os piores impulsos dos nossos governantes, ou seja: devido processo legal, julgamentos justos, habeas corpus e liberdade contra tortura ordenada pelo Estado e assassinatos extrajudiciais.

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A edição especial em memória das vítimas do Charlie Hebdoterá tiragem de um milhão de cópias e será financiada pelo governo francês. Então agora os satiristas foram cooptados pelo Estado, exatamente a instituição que você imagina que eles não poderiam jamais deixar de atacar. Mas a pergunta precisa ser feita: os cartunistas do Charlie Hebdo eram realmente satiristas, se por sátira entende-se o uso do humor, da ridicularização, do sarcasmo e da ironia para atingir uma reforma moral? Bem, quando saiu a edição com as charges dinamarquesas, observei que o teste que aplico para verificar se alguma coisa é de fato sátira vem da definição de HL Mencken sobre o que é o bom jornalismo: ele deve "afligir os confortáveis e confortar os aflitos". O problema com muito do que se chama "sátira" dirigida contra extremistas motivados pela religião é que não fica claro quem se está afligindo ou quem se está confortando.

A última charge feita por Charb, o editor do Charlie Hebdo, mostrava um pictograma grosseiro de um jihadista usando um chapéu chamado pakol – isso marcaria o soldado como sendo afegão e, portanto, alguém com improvável envolvimento com ataques terroristas no Ocidente. A legenda de Charb contradiz isso – sobre o jihadista afegão está escrito: "Ainda nenhum ataque na França", enquanto no balão que sai da boca dele se lê: "Espera, tem até o fim de janeiro para dar presente".

Colocando de lado o caráter premonitório da charge e o inusitado de um editor de revista que estava pronto para morrer por suas convicções (pelo menos foi o que Charb afirmou depois que a sede do Charlie Hebdo foi atacada por uma bomba incendiária em 2011), mas não acertava fatos básicos sobre seus alvos, seria correto considerar isso como uma sátira? Independente do que mais acreditarmos sobre pessoas tão dominadas por sua natureza má que estejam prontas para privar outros de suas vidas em nome de um conjunto ilusório de ideias, uma coisa da qual podemos ter certeza é que elas não estão confortáveis. Além disso, embora a charge de Charb pudesse ter provocado um sorriso irônico nos leitores do Charlie Hebdo, não está claro para mim que essas pessoas sejam as "aflitas" que, na definição de HL Mencken, precisam de "conforto" – a menos que sua "aflição" seja o simples fato de existir uma população muçulmana considerável na França e o seu "conforto" consista em representar no papel todos esses cidadãos sob uma luz terrorista.

Isso de forma alguma serve para consentir com o assassinato de Charb e dos outros jornalistas – um ato que, como destaquei inicialmente, é mau, pura e simplesmente. Mas a nossa sociedade transforma o "direito à liberdade de expressão" em fetiche sem nunca se questionar que tipos de responsabilidade estão implícitos neste direito. Mas também transforma em fetiche a "liberdade" concebida como uma agência digna de um Übermensch nietzschiano – enquanto que a realidade é que, como muitos de nós compreendem muito bem, somos na verdade grosseiramente cerceados em quase tudo que fazemos, na maior parte do tempo – e uma grande parte do que nos cerceia são nossos instintos animais assassinos.