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Interviews

Um Papo com Frei Betto, Amigo dos Castro, Sobre o Degelo entre Cuba e os EUA

O frei, que está de malas prontas para Havana para dar continuidade a um trabalho de mais de 20 anos de aproximação entre o Estado cubano e a Igreja Católica, garante que o anúncio do que parece ser o fim do embargo é uma vitória cubana.

Crédito: Cubadebate.

Soubemos ontem que a Guerra Fria tinha acabado. Depois de 53 anos de gelo, Washington e Havana estavam reatando as amizades. Como o Papa Bento 16 teve um papel-chave na reaproximação entre cubanos e norte-americanos, nos pareceu que Frei Betto, frade dominicano e socialista que vai com frequência à ilha e foi ministro do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, poderia dar uma luz. Frei Betto está de malas prontas para Havana, onde desembarca em janeiro para dar continuidade a um trabalho de mais de 20 anos de aproximação entre o Estado cubano e a Igreja Católica.

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O frei garante que o anúncio do que parece ser o fim do embargo é uma vitória cubana. Checamos essa percepção com outros dois peixes grandes da esquerda brasileira. Ex-candidato do PSOL ao governo de São Paulo, Gilberto Maringoni concordou que "a vitória de Cuba é inegável" e representa "a queda do último muro da Guerra Fria, a queda de um tabu de meio século".

Breno Altman, braço direito de José Dirceu (PT), disse que isso "é um fato histórico". E mais: "O governo norte-americano finalmente reconhece que o bloqueio de 53 anos, com suas pavorosas consequências humanas e econômicas, foi incapaz de derrotar a revolução cubana".

"Mantenho relação muito próxima com os irmãos Castro", nos contou Frei Betto por telefone, do Rio de Janeiro. Quantas pessoas poderiam formular uma frase assim?

VICE: Essa é mais uma vitória de Cuba ou dos EUA?
Frei Betto: É mais uma vitória cubana do que americana, porque o próprio Obama declarou que o isolamento não funcionou. Essa frase demonstra que os EUA admitem que o bloqueio – que ainda permanece, infelizmente, porque ainda depende do Legislativo – foi inútil, uma vez que Cuba resistiu a mais de 50 anos de bloqueio. Fidel Castro, aos 88 anos, viu passar oito presidentes dos EUA, sendo que quatro deles ele enterrou, e mais de 20 diretores da CIA, sendo que todos eles tiveram o projeto de assassiná-lo. Cuba, nas últimas décadas, sobretudo nos últimos 20 anos, depois da queda do Muro de Berlim, vem se abrindo a investimentos estrangeiros com negociações muito favoráveis com a União Europeia, a China, o Brasil, e tudo isso seguramente deixou os americanos de barbas de molho. Eles raciocinam em cifrões: "É melhor a gente se adiantar do que permanecer com esse esdrúxulo bloqueio", condenado por quase toda a Assembleia Geral das Nações Unidas, com exceção de Israel, Sudão e mais dois ou três países. Então, realmente, foi uma vitória de Cuba, principalmente pela libertação dos cinco agentes cubanos antiterroristas que atuavam em Miami e receberam pesadíssimas penas. Dois já tinham sido libertados (René González e Fernando González), e agora sairão outros três (Gerardo Henández, Ramón Labañino e Antonio Guerrero), sendo que um deles (Hernández) tinha duas condenações à prisão perpétua. Ele precisaria nascer de novo para cumprir a segunda pena.

Estão claros quais são os ganhos norte-americanos, com oportunidades de negócio na área de telefonia, no turismo e em outros setores. Mas quais são os ganhos cubanos nessa história?
A vantagem comercial também é de Cuba, porque, dos cerca de três milhões de turistas que chegam hoje à ilha, um milhão deles é de canadenses. Isso acontece principalmente no inverno, porque os canadenses trocam uma temperatura de – 20° por 35°. No momento em que for permitida a viagem de turistas dos EUA, como a proximidade é grande –Miami e Havana têm a mesma distância do que Rio e São Paulo, uma hora de voo –, isso vai trazer um afluxo muito grande de turistas. Basta dizer que, em 2013, entraram em Cuba 600 mil norte-americanos de origem cubana. Então, isso realmente trará um afluxo turístico muito grande. Além disso, os EUA sempre foram o principal mercado do charuto cubano. O presidente John Kennedy – todo mundo sabe disso, isso não é uma lenda –, antes de decretar o bloqueio a Cuba, mandou comprar todos os charutos cubanos que havia em Washington e retardou a assinatura do decreto, porque o sujeito que saiu pra fazer essa compra passou a manhã inteira na rua e só chegou por volta da hora do almoço. Só então, depois disso, é que foi feito o decreto. Tem também a famosa pergunta da imprensa de lá cuja resposta ninguém obteve até hoje: qual era a marca do charuto do Bill Clinton quando ele teve o escândalo com a Mônica Lewinsky. Parece piada, mas é verdade. Isso nunca foi revelado. É claro que ele nunca fumaria um charuto da República Dominicana ou da Jamaica.

O anúncio de ontem é um Muro de Berlim ao contrário?
Cuba não vai para o capitalismo. Há uma decisão muito arraigada no governo cubano, no povo cubano, de não perder as conquistas da revolução. Cuba não vai entrar na órbita capitalista como todo o Leste Europeu entrou. Eu pressinto que isso não vai acontecer. Depois do que aconteceu com os países da ex-URSS, Cuba ficou com muito temor desse processo, porque esses países do Leste Europeu pioraram do ponto de vista dos índices sociais quando voltaram ao capitalismo. Cuba teme esse futuro. Eles manterão uma sociedade na qual os direitos sociais são garantidos acima dos direitos pessoais.

Por isso, falo de um Muro de Berlim ao contrário, porque eles não iriam para a órbita capitalista.
Nesse ponto, sim. É verdade. Só que esse conceito só seria bem adequado se os EUA estivessem também evoluindo para uma sociedade de partilha de bens, e esse não é o caso. Se Cuba estivesse arrastando os EUA para um projeto social mais abrangente, seria, sim, um Muro de Berlim ao contrário.

E o que o Brasil ganha com isso?
Cuba é o porto mais próximo dos EUA, e, nesse ponto, o Brasil deu uma cartada genial, financiando o Porto de Mariel (para o qual o BNDES liberou US$ 765 milhões em financiamentos desde 2009). Esse será o grande entreposto para as relações comerciais com os EUA. O Brasil é um dos quatro maiores parceiros comerciais de Cuba, junto com a China, a União Europeia e a Venezuela, com investimentos importantes nos portos e aeroportos de Cuba, e isso vai facilitar muito quando o bloqueio terminar. Esses pontos serão utilizados a custo mais barato. Além disso, Brasil e Cuba se parecem muito. O Ignácio de Loyola Brandão diz que "Cuba é uma Bahia que deu certo". São os dois únicos países que têm mulata, os dois únicos países que têm candomblé, chamado santeria; então, essa afinidade cria uma aproximação muito grande. Essa semelhança é ainda mais estreitada com esse processo. Havia uma certa restrição por parte dos EUA às empresas brasileiras que investiam em Cuba, como, por exemplo, a paralização de algumas obras da Odebrecht na Flórida, porque a Odebrecht passou a construir o Porto de Mariel, em Cuba. Com esse acordo, haverá um degelo e esse procedimento não ocorrerá mais.