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cenas

A baixa resolução da mentira

Há galáxias que desconhecemos.

No outro dia, vi no jornal uma fotografia da galáxia mais remota do universo. Nessa fotografia, estava desenhado um quadrado à volta de uma mancha vermelha pixelizada que ostentava a seguinte legenda: “A galáxia agora descoberta é o punhado de pixéis vermelhos.” Quando olhamos para o céu, numa noite estrelada, de preferência num local onde haja pouca poluição luminosa, aquela espantosa multitude de estrelas que nunca conseguiremos contar não é o universo. É o fundo das calças da nossa rua. É uma ínfima parte da galáxia na qual nos encontramos, à qual chamamos Via Láctea. O nosso sistema solar localiza-se perto do fim de uma das duas caudas desta galáxia em dupla espiral, e encontra-se virado para dentro, para o centro dessa espiral. Por isso, aquilo que vemos quando olhamos o firmamento é a parte exterior de um dos braços médios interiores da nossa galáxia. A nossa galáxia é uma entre milhares de galáxias do nosso grupo local de galáxias e cada uma dessas galáxias contém biliões de sistemas solares. Mas há muitos outros grupos locais de galáxias nesta zona do universo que, juntos, compõem um superfeixe de grupos locais de galáxias, apenas um dos inúmeros superfeixes de galáxias do universo conhecido, falando apenas do universo conhecido. Este universo, apesar do número de estrelas que se podem, ou não, imaginar, é essencialmente composto de nada. Não se trata de ar, trata-se de nada, absolutamente nada, nem sequer é detectável, apenas nominável como energia negra e matéria negra. Uma das coisas que não existe neste universo profundo é a cor. A cor, essa vibração entre os 4000 e os 7000 Angstroms, é uma ínfima parte da radiação do universo, aquela que os nossos olhos, pouco mais do que cegos, conseguem captar. Por isso, quando nos mostram imagens fantásticas do universo com galáxias, supernovas, quasares e nebulosas ostentando cores tão apelativas que fazem com que nos apeteça colocá-las na lapela, essas imagens são completamente falsas. Não são criadas por verdadeiros artistas, são criadas por artistas tout court, que emprestam imaginação àquilo que é apenas preto sobre preto. Para se saber que existem ali estrelas não se recorre a telescópios ópticos, daqueles com lentes que aumentam milhões de vezes aquilo que fixam, pois tal seria completamente inútil dada a distância em causa. Para este objectivo são usados radiotelescópios, que não têm lentes, apenas emitem e captam sinais de rádio (quase tudo o que existe no universo emite sinais de rádio). A frequência e a largura de banda desses sinais indicam a distância, mas também a composição dos objectos que os emitem. É também assim que são detectados os planetas, que não têm luz própria, sendo por isso completamente invisíveis, mas que também emitem esses mesmos sinais.

Até aqui tudo pacífico, pois já aceitámos que vivemos num mundo debordiano. Faz-me lembrar o advento da televisão a cores, quando apareceram uns plásticos coloridos para colocar à frente dos monitores a preto e branco para parecer que eram televisores a cores. Mentiras inocentes e inofensivas. Mas aqui trata-se de algo diverso. Não é apenas recorrer à brincadeira infantil de colorir desenhos monocromáticos, mas usar da verdadeira mentira. Encontrando-nos nós na era da imagem digital, em que um dos códigos que revela a distância nas fotografias é a evidenciação dos seus pixéis, esse efeito é replicado nesta imagem, para reforçar a ideia de que a dita galáxia se encontra mesmo longe. É assim que se constroem os heróis. E também o cilatu. O cilatu é uma palavra como outras, que se escreve, se lê, tem ritmo e som, que inclusivamente inspira algo, mas que não contém conhecimento pois nada significa. Tal como os heróis da informação também são vazios de conhecimento. Este Second Life em que os humanos se penitenciam já é tão real que ele próprio inclui a falsidade, o que nem era necessário, pois num mundo de mentira pode ser apagada a própria mentira. Mas é esta imprecisão que humaniza a própria mentira, até a mentira tem baixa resolução.