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cenas

Amigos, rabos e tatuagens caseiras

A receita perfeita para marcar o corpo.

Um isqueiro, um carro telecomandado, uma caneta de gel, um carregador de telemóvel e uma colher. Não, não vamos falar de lojas dos chineses, se bem que podem ir lá buscar estas coisas se quiserem que a vossa próxima tatuagem nasça das vossas próprias mãos. É o caso das pessoas de que vos vou falar hoje, que apesar de não serem tatuadores profissionais, vão marcando o corpo (o deles e o dos outros) fora dos estúdios. Só tatua há seis meses, mas se perguntarem pelas ruas do Porto por alguém que faça tatuagens baratas, é o Nelson Reis que toda a gente vos vai indicar. Começou por tatuar amigos, mas o talento foi passando de boca em boca, e agora tem marcações quase todos os dias. A máquina profissional é a única coisa que nos tira do ambiente humilde, familiar. Foi na sua própria casa que me recebeu. Mandou-me entrar para a sala, que acumulou a lugar de lazer e convívio familiar, a função de local de trabalho. O irmão estava sentado com a namorada num sofá junto à porta, enquanto ao fundo da sala os bancos compridos e a mesa cheia de frascos coloridos marcavam o espaço destinado às tatuagens. Quando lhe perguntei se a mãe não tripava com ele por trazer desconhecidos para casa, o Nelson riu-se. “O meu lema é: eu tenho a máquina na mão, se alguém faz alguma coisa à minha casa eu tatuo-lhe a testa”. Mesmo assim, confessou que muitas vezes a mãe acaba por chegar a casa e ter de lidar com o cheiro a tabaco, que detesta, e que sacrificou a perna do irmão como cobaia para os primeiros riscos. Apesar de um estúdio a sério lhe trazer melhores condições de trabalho, a situação actual parece proporcionar-lhe sempre momentos caricatos. “É diferente tatuar aqui. Pára-se a meio, faz-se as cenas de casa, e só depois é que se acaba a tatuagem”, explicou o Nelson, lembrando um episódio em que interrompeu o trabalho para poderem jantar. Também o Zé Né sofreu a maldição de tatuar entre os gritos da mãe a chamar para comer. Isso foi há cinco anos atrás, quando a máquina de tatuar não passava de uma série de tralha velha colada com fita-cola, um método usado por reclusos e que lhe foi ensinado pelo pai de um amigo, acabado de sair da prisão. Mal montou a máquina, começou logo a primeira tatuagem, uma tribal que lhe ocupa a anca toda e demorou quatro horas a acabar. “Nestas máquinas nunca se sabe a que profundidade é que a agulha vai entrar na pele. Às vezes entrava de mais e ficava presa. Eu puxava, a pele vinha atrás. E é que numa máquina normal tens um pedal que se tirares o pé faz parar a máquina, esta só se desligar da corrente. Tinha a máquina presa a mim e ela sempre a trabalhar”, recordou Zé Né, enquanto levantava a camisola e mostrava as marcas — uns pontos negros sobre o traço da tatuagem. Ficar com um implante não foi, contudo, o único perigo a que esteve sujeito e, por muitas vezes, arriscou-se a perder um olho, quando a agulha aquecia, depois de um estalido, saltava. Agora, o Zé Né tem uma máquina profissional e um cantinho que lhe vai servindo de estúdio, uma espécie de cave com as paredes mal acabadas e portas com um metro e meio de altura, onde quase imagino arcas cheias de brinquedos velhos e livros a cheirar a mofo. Mesmo não pegando numa máquina artesanal há muito tempo, pedi-lhe para reconstruirmos uma. Garanto que não se esqueceu da fórmula: 1- Estica-se uma mola de um isqueiro com fogo e um alicate, e faz-se um aro numa das pontas. É isso que vai servir de agulha. 2- Prende-se o motor de um carro telecomandado a um dos lados de uma colher dobrada. 3- Prende-se uma caneta de gel sem carga à outra ponta da colher. Tira-se a peça do isqueiro que faz ligação ao gás na ponta da caneta. Esta peça serve para a agulha não ter folga e ficar bem presa. 4- Passa-se a agulha por dentro da caneta, e prende-se o aro ao motor. O motor vai fazer a agulha subir e descer. 5- Puxa-se a agulha para cima, rodando o manípulo do motor, e corta-se rente à caneta, para não deixar que entre muito fundo na pele. 6- Corta-se a ponta do carregador do telemóvel que não liga à corrente. Une-se os fios de cobre aos pólos do motor, para gerar energia. 7- Ferve-se a tinta da caneta de gel, onde se vai depois molhar a agulha para fazer a tatuagem. Em opção pode usar-se uma carga de uma caneta BIC sem a bolinha da ponta — a tinta vai passar directamente da carga para a agulha. Este método é menos aconselhável porque acaba sempre por passar sangue para a carga. Mas se não se dão bem com construção, há outro método para vos propor. É, segundo a Alexandra Silva, o método mais antigo de tatuar, e desta vez quase que só precisam de ir à caixa de costura da vossa mãe. Escolham uma agulha e enrolem-lhe linha na ponta, com o cuidado de deixar o bico de fora. Depois molha-se a agulha em tinta-da-china, de maneira a que a linha a absorva, e pica-se na pele, pontinho a pontinho, até fazer uma linha. Não imaginem já desenhos de caveiras com sangue na boca ou dragões chineses. “É um método muito simplificado, não dá para fazer sombreados, não dá fazer pormenores”, explicou a Alexandra, ao mesmo tempo que mostrou o coração que marcou na pele. Também a máquina artesanal do Zé Né é imperfeita. Treme muito, e o traço não fica rigoroso. “Ainda hoje ando a corrigir coisas que fiz com isto”, confessou, e em questões de higiene os métodos também não satisfazem. Quando lhe perguntei sobre a possibilidade que existe em desinfectar a agulha, ele não hesitou, “a 100%, nenhuma”. No entanto, como diz um amigo meu, não há nada melhor que ter uma máquina de tatuar em casa, para fazer o que nos passar pela cegueira e quando nos perguntarem o que aquilo é, poder responder: “Uma ganda moca!”. O Nelson sabe bem o que isto é. Tanto ele como o irmão têm o rabo marcado por uma bebedeira. “Estávamos a jogar póquer, bebemos bastante, e o meu irmão lembrou-se de pedir a toda a gente que escrevesse uma frase para tatuar no rabo. Éramos cinco ou seis, mas depois de eu lhe fazer duas frases ele foi gregar, que já não aguentava mais…”. A dele, é mais misteriosa. Um número um, resultado de uma aposta de que não quis falar: “Nisso aí não posso entrar em detalhes.” Coincidência ou não, também foi o rabo que o Zé Né escolheu para marcar a palavra “descombola” que ele e um amigo inventaram, entre copos de uísque. “Depois de o tatuar dei-lhe a máquina para a mão para me tatuar a mim. Ele nunca tinha pegado numa, ficou tudo tremido”. Sobre o significado da palavra também não se descoseu. “Não quer dizer nada”. Deixei a casa do Nelson e a cave do Zé Né com uma nova perspectiva desta forma de fazer tatuagens. Marcar o corpo tornou-se numa espécie de ritual. Cada tatuagem conta uma aventura, um momento partilhado com outra pessoa. Olhei para o meu braço nu, tão despido de cor, tão vazio de histórias. Se calhar, um destes dias, ainda passo pelos chineses. Fotografias cedidas pelos tatuadores