O testemunho perturbador da ex-escrava sexual do ISIS que é candidata ao Nobel

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O testemunho perturbador da ex-escrava sexual do ISIS que é candidata ao Nobel

Nadia Murad tinha apenas 19 anos quando a sua povoação, em Sinjar, no Norte do Iraque, foi tomada pelo auto-proclamado Estado Islâmico.

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma Broadly.

Quando as forças do ISIS irromperam pela aldeia de Nadia Murad, na zona de Sinjar, foi o começo de meses tortuosos de violações, abuso e cativeiro. Agora, já em liberdade, a activista Yazidi está furiosamente empenhada na luta pela sobrevivência de outras pessoas. Nadia Murad tinha apenas 19 anos quando a sua povoação, em Sinjar, no Norte do Iraque, foi tomada pelo auto-proclamado Estado Islâmico. "Chegaram a 3 de Agosto e o líder do grupo disse-nos que se nos convertêssemos poderíamos viver, mas ninguém se converteu", conta Murad.

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"A 5 de Agosto, às 11 da manhã, foi pedido às pessoas na nossa zona para se dirigirem à escola, que tinha dois andares. Levaram mulheres, raparigas e crianças para o primeiro andar e mantiveram os homens no rés-do-chão. Tentámos levar os meus sobrinhos connosco. Obrigaram os rapazes a segurar nas suas armas - se tivessem pêlos debaixo do braço tinham de ficar na parte de baixo, se não tivessem podiam subir".

Nadia, a sua mãe e irmãs, bem como centenas de outras mulheres e crianças da aldeia Yazidi de Kocho, viram a partir das janelas o ISIS a abater os seus homens e rapazes. "Podíamos vê-los a disparar contra os homens e as cortarem-lhes as cabeças. Também os víamos a levá-los em autocarros".

Nadia Murad na sua aldeia, Kosho, antes da invasão do ISIS. Todas as fotografias são da autoria de Christopher Bethell.

Ao entrevistar Murad fica-se rapidamente com a certeza de que se está a gravar um testemunho de horríveis crimes de guerra. Os tradutores são, por diversas vezes, tomados pela emoção e é-lhes difícil continuar. Os que falam kurmanji, o dialecto curdo de Nadia, são, normalmente, da mesma comunidade Yazidi que foi dizimada às mãos do ISIS.

A 3 de Agosto de 2014, as tropas curdas deixaram Sinjar e, nas palavras da Princesa Yazidi Ourub Bayazid Ismail, "deixaram o povo entregue ao seu próprio destino". Ao longo dos últimos dois anos, esse destino incluiu a escravização de aproximadamente seis mil pessoas, execuções em massa de milhares de homens e uma campanha maldita de violações e tráfico de cariz sexual. Um relatório sobre direitos humanos da ONU datado de Março de 2015 revelava que tais actos podiam ser considerados genocídio contra o povo Yazidi.

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Murad estava entre as milhares de mulheres mantidas em cativeiro como escravas sexuais de combatentes jihadistas. Hoje, vive na Alemanha e falou no Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a tortura e abuso que sofreu enquanto prisioneira do ISIS. Em Janeiro último foi nomeada ao Prémio Nobel pelo trabalho que tem desenvolvido para despertar atenções sobre o sofrimento do povo Yazidi.


Vê: "O Estado Islâmico"


Antes da invasão de Kocho, Nadia Murad vivia numa grande casa com a mãe e 12 irmãos e irmãs. O pai morreu em 2003. "Quando eu era muito nova éramos muito pobres, mas depois os meus irmãos começaram a trabalhar e conseguimos que a vida melhorasse. Tínhamos um grande quintal nas traseiras - metade para nós, metade para os animais", recorda.

Como a escola secundária mais próxima ficava noutra localidade e a mãe não queria que ela viajasse sozinha, acabou por perder um ano entre o ciclo e o liceu. Quando uma nova escola abriu em Kocho, regressou aos estudos até completar o 9º ano, quando tinha 17 anos. "História era a minha disciplina favorita - era muito boa a memorizar o que lia. Mas agora a minha memória já não é igual, misturo as coisas na cabeça". A última memória que tem da mãe é de quando estavam dentro da sua antiga escola. "Não sabemos dela, nem das outras 80 mulheres mais velhas desde que as levaram e nos separaram, depois de matarem todos os homens. No ecrã do seu telefone - que está quase sempre colado à mão - vê-se uma fotografia da mãe, vestida para a celebração de um festival Yazidi.

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"Quando Sinjar foi libertada encontraram uma vala comum, com 80 mulheres, mas ainda não houve qualquer investigação sobre quem podem ser, por isso não temos certezas". Até agora, investigadores de Yazda, um grupo de advocacia constituído por membros da diáspora Yazidi e alguns apoiantes, encontraram 19 valas comuns em Sinjar, de um total de 35 que se suspeita existirem. Estima-se que, até ao momento, apenas 1.500 dos cerca de 6.000 restos humanos encontrados tenham sido identificados, ou estejam a ser devidamente preservados para que o possam ser.

Encontrei-me com Nadia Murad pela primeira vez em Julho de 2015, quatro meses depois de ter conseguido escapar dos seus captores em Mossul. Ela estava a visitar o Reino Unido juntamente com outras duas antigas prisioneiras e pela antiga deputada iraquiana Ameena Hasan Saeed, que a ajudou a fugir ao auto-proclamado Estado Islâmico. Sob anonimato, descreveu com pormenores perturbadores a forma como tinha sido abusada, violada e vendida entre as tropas do ISIS, aguentando três meses de cativeiro e 13 donos que a mantiveram fechada, a passar fome e completamente desorientada.

Na altura, mostrou-me as cicatrizes das queimaduras de cigarros causadas pelos soldados que trabalhavam para o seu primeiro dono, um comandante chamado Salman. Ele ordenou aos seus homens que a violassem em conjunto, depois de uma primeira tentativa de fuga frustrada. "Encontrei uma pequena janela, subi e saltei de um segundo andar, mas um dos homens de Salman encontrou-me e levou-me de volta. Podia ter morrido ao saltar e depois de ter sido apanhada desejei mesmo ter morrido".

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Murad conseguiu finalmente escapar quando o seu último dono, um condutor de autocarros do ISIS, lhe foi comprar um abaya [vestido comprido que cobre praticamente todo o corpo] para que a pudesse levar para a sua casa, nos arredores de Mossul. Ao perceber que tinha ali uma hipótese, começou a correr e a bater às portas, até encontrar uma família que a deixou entrar. Permaneceu com eles cerca de 15 dias, antes de ser levada para fora do país com recurso ao bilhete de identidade da filha do casal para passar os primeiros postos de controlo. Foi depois transportada para lá da linha da frente do ISIS e encontrou-se com um dos seus irmãos em Tel Afar, no noroeste do Iraque.

Depois da fuga, viveu num dos inúmeros e sobrelotados campos de refugiados na periferia de Duhok, no Curdistão. Ao abrigo de um projecto especial de cotas, levado a cabo pelo governo federal de Baden-Wurtember, na Alemanha, foi-lhe concedido um visto de residência em Setembro de 2015. Hoje, vive com uma das suas irmãs, numa residência confortável, em localização secreta, próximo de Estugarda. O programa inclui aconselhamento psiocológico para situações de trauma decorrentes de períodos em cativeiro, mas Murad só fez duas sessões.

"Falar sozinha numa sala não vai ajudar-me. Nem a mim, nem à minha família", salienta. "A minha outra irmã e os meus três irmãos que restam ainda estão naquele campo. As condições ainda são terríveis - comida estragada, falta de água, sem electricidade. Quatro esposas dos meus irmãos ainda estão com o ISIS, juntamente com os seus filhos. Falar com alguém em privado não ajuda a que isto mude".

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Murad Ismael, co-fundadora e directora do Yazda, passou os últimos três meses em digressão pelo Médio Oriente, Estados Unidos da América e Europa, a contar a sua história a líderes políticos e a tentar conquistar o seu apoio. Ao fazê-lo tornou-se na porta-voz do genocídio Yazidi, e figura de proa de um movimento que quer libertar as cerca de 3.500 mulheres e crianças que se estima ainda estarem a viver como escravas do ISIS.

No final de Fevereiro acompanhei-a enquanto contava a sua história em Westminster, Londres, perante um grupo de deputados, visivelmente atordoados e em lágrimas. "Decidi falar publicamente sobre isto, porque quero contra a minha história e quero falar sobre o que me aconteceu e ainda está a acontecer a outras mulheres às mãos do ISIS", diz-me depois da sessão. "Isto aconteceu-me. Fui sujeita a estas atrocidades e onde quer que vá as pessoas mostram simpatia por mim, mas ainda não houve mais salvamentos, ou qualquer outro tipo de progresso".

"Ela tornou-se bastante conhecida e as pessoas apoiam-na em todo o lado", diz Maher Nawaf, activista do Yazda, sediada no Reino Unido. E acrescenta: "Ela passou por muito do que nós Yazidis tivemos de enfrentar nos últimos tempos. Não sei como consegue manter-se tão forte, mas está nos nossos corações e estamos muito orgulhosos dela".

Murad transformou-se numa espécie de heroína do povo, com artistas a prestarem-lhe homenagem online e até em graffitis nos sítios mais improváveis, um pouco por todo o Iraque. Centenas de milhares de pessoas viram o vídeo do seu discurso no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Na comunidade Yazidi, há a consciência de que ela enfrentou várias facetas do trauma que a minoria religiosa vive neste momento.

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"O seu sobrinho - mostrou-me uma fotografia dele - tem oito anos", diz Nawaf. "E eles [ISIS] já lhe fizeram uma lavagem cerebral, como fazem a todas as nossas crianças nos seus campos de treino. Ele ameaçou matar o próprio pai. Por isso entendo que ela passou por tudo o que nos está a acontecer - a sua mãe e irmãos mortos, as suas cunhadas ainda em cativeiro e as crianças a serem treinadas para se transformarem em assassinos do ISIS".

Apesar de os activistas providenciarem informação detalhada sobre a localização de muitos reféns, que ainda conseguem manter contacto esporádico através de telemóveis, não têm sido feitas quaisquer tentativas de salvamento por parte das forças internacionais, ou pelas tropas iraquianas e Peshmerga.

Neste vazio, os activistas têm tentado desenvolver esforços no sentido de criarem as suas próprias redes de ajuda à fuga, trabalhando com taxistas sob disfarce, que correm riscos pessoais (e são bastante caros) para conseguirem tirar mulheres e crianças de território do ISIS. Salvar o sobrinho de Murad é pouco provável que aconteça, mas há muita gente dentro do seu círculo familiar que pode ser libertada, insiste ela.

O que a mantém esperançosa são as fotografias de prova de vida daqueles em cativeiro, fornecidas pelo ISIS às famílias. "Ainda ontem foi-me mostrada uma fotografia de uma menina de 13 anos", disse aos deputados no Parlamento britânico, "e vestiram-na de uma maneira que a evidenciava sexualmente". "Eu vivo um dia de cada vez", sublinha Nadia no dia seguinte, enquanto comemos kebabs em pleno centro de Londres e ela vai olhando para as imagens dos familiares no seu telefone.

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Garante que adora escrever os discursos, mas ainda luta para encontrar as palavras adequadas para descrever tudo aquilo por que passou. Rimo-nos ao vermos a imensidão de pinturas que os fãs lhe dedicam na internet. "Sinto-me bastante velha neste momento. Tenho 21 anos - eu sei que sou nova. Mas sinto que todo o meu ser mudou nas suas mãos: cada fio de cabelo, cada parte do meu corpo envelheceu. Fui esgotada pelo que eles me fizeram e agora sou uma pessoa completamente diferente, em todos os sentidos. Nunca imaginei que estas coisas pudessem acontecer, e na verdade, não as consigo descrever de uma forma totalmente compreensível.

Ao Prémio Nobel concorre com o Papa Francisco, a equipa de ciclismo feminino afegã e economista do desenvolvimento sustentado Herman Daly. Não se imagina a vencer, mas está muito agradecida pela nomeação e fica até um pouco envergonhada quando a cumprimento pelo feito. "Tenho imenso apoio em todo o mundo. E sei que ser nomeada ao Nobel pode ser bom para muita gente. E, claro, ajuda a que um dia possa conseguir libertar todos os que estão ainda cativos. Mas, mesmo que receba o Nobel, vou recebê-lo de coração partido".


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