FYI.

This story is over 5 years old.

Música

Fomos lá e vimos: Mark Eitzel

Música que vive da tensão (da dissonância) entre o mau gosto e a corrosão.

No ano passado, Mark Eitzel gravou, com uma banda formada por músicos ingleses, The Konk Sessions, que recupera diversas canções do fundo do catálogo American Music Club (a banda que Eitzel lidera desde os anos 80 e poderá, ou não, ainda existir) e umas poucas dos seus dois últimos discos a solo — o injustamente ignorado Klamath e o mais recente e muito celebrado Don’t Be a Stranger. Foi exactamente este álbum que Mark Eitzel “trouxe” ao Musicbox. Escrevo “exactamente” mesmo nunca o tendo ouvido (não é muito fácil de arranjar, nem ilegalmente), porque, tirando uma canção ou outra (como “Nightwatchman”, que nem por acaso surge de outro álbum de recriações eitzelianas, The Ugly American), o alinhamento do concerto corresponde ao alinhamento de The Konk Sessions — "Decibels and Little Pills" do extraordinário The Golden Age, que Eitzel insiste em chamar pelo refrão “No-one here is going to save you” e teve direito a umas inesperadas palmas litúrgicas (numa espécie de anti-missa mais próxima de Deus); “What Holds the World Together” (o vento a passar pelo cabelo de Gena Rowlands, como é claro) de San Francisco; a catártica “Apology for an Accident” de Mercury; a lindíssima “Why I’m Bullshit” de Klamath; a evocativa “I Love You But You’re Dead” de Don’t Be a Stranger; e a desabrida “Bad Liquor” de California. Mas também porque os músicos — Gareth Huw Davies no contrabaixo eléctrico, Patrick Nicholson nos teclados e Stephen Hiscock na bateria — são os mesmos. E sobretudo porque as diferenças entre as versões conhecidas e as que Eitzel apresentou ao vivo vêm com toda a certeza daí. E é precisamente nessas diferenças que a porca torce o rabo. Como alguém bastante perspicaz escreveu há dias no Facebook “por muito outsider que o queiramos ver ou imaginar [Mark Eitzel] é um crooner na acepção clássica da palavra”. O problema é que quase todas as canções sofreram de uma aceleração perfeitamente desnecessária, rockeira, como se Eitzel quisesse responder à pessoa que inventou a infeliz designação slowcore (criando um novo género, o fastcore) ou apenas despachar aquilo. Essa aceleração retira o que de melhor há na música de Mark Eitzel — a palavra (e Eitzel é um soberbo contador de histórias, um grande contista que resolveu escrever canções) tornou-se inaudível no meio de toda aquela pressa e do som sempre demasiado alto — e cortou a sua veia de lounge lizard de coração nas mãos, sempre à beira de se desmanchar em lágrimas, de cínico romântico, que canta aos seus mortos (e alguns vivos) reprimendas azedas, e se lança numa esperança que só pode advir da assunção da derrota. Apenas a espaços — na arrepiante “We All Have to Find Our Own Way Out”, por exemplo — Mark Eitzel assumiu essa faceta de crooner, largando a guitarra e a imperial, soltando as mãos em apelos e lamentos, caindo sobre os joelhos tal qual um velho cantor soul, pegando no microfone como se este lhe pudesse salvar a vida. A música de Mark Eitzel vive da tensão (da dissonância) entre o mau gosto e a corrosão. Quando cai para um dos lados, entra em perda. Foi o que aconteceu ontem neste concerto. Fotografia por Pedro Almeida @ Tracker