FYI.

This story is over 5 years old.

O guia VICE da saúde mental

Quando a crise não é só económica: a depressão em Portugal

Em 2014 foram vendidas 8 milhões de embalagens de anti-depressivos, segundo dados divulgados pela Ordem dos Psicólogos. O que traduz uma média diária de mais de 23 mil embalagens por dia.

Ilustração de Nick Scott

Os sintomas começaram a dar de si aos 15 ou 16 anos. Mas Inês, nome fictício, não tinha a noção do que era. Só aos 19 soube que se tratava uma depressão. Desde aí, mesmo quando o ânimo é bom, nunca é garantido que a doença não volte. No último Verão esteve mal. Em 2011, com a crise instalada e o namorado desempregado, sentiu a vulnerabilidade a bater à porta. Agora, com a vida estabilizada, sente-se bem.

Publicidade

A vida, para um deprimido, é sempre uma imprevisibilidade. A dor aparece, muitas vezes, sem bater à porta e não dá explicações. Para atenuar essa dor, Inês chegou a recorrer ao álcool e a drogas como a heroína. "No início, além da doença, fui consumindo uma ou outra coisa. Fazia-o, porque sentia-me uma sombra de mim própria. Senti que estava num estado vegetativo em termos mentais. Não tinha qualquer ânimo para fazer qualquer tipo de coisa útil na vida. Queria livrar-me da dor", conta. Inês tem, hoje, 30 anos.

Desde a primeira vez que entrou no consultório de um psiquiatra, Inês perdeu a conta aos médicos que consultou ao longo dos anos. "Nunca senti que me fizessem nada", assegura, referindo-se à medicação.

Recorreu a um psiquiatra, pela última vez, em 2014, depois de ter passado alguns anos sem tomar medicação. "Fiz questão de dizer que não queria uma medicação muito forte. Quando me apercebi, os medicamentos que o médico receitou eram dos mais fortes. Durante duas semanas senti-me pior. Os efeitos da adição são muito grandes", relata.

Em Portugal, 17% da população sofre de depressão ao longo da vida.

Depressão, fobia social e ansiedade foi o diagnóstico traçado pelos psiquiatras. Um psicólogo, mais tarde, sentenciou personalidade borderline. Está, de momento, a ser tratada com Sedoxil (medicamento indicado para o tratamento da ansiedade).

Inês está entre os muitos portugueses que ingerem medicamentos indicados para o tratamento de doenças psicológicas. Em Portugal, 17% da população sofre de depressão ao longo da vida. Em 2014 foram vendidas 8 milhões de embalagens de anti-depressivos, segundo dados divulgados pela Ordem dos Psicólogos. O que traduz uma média diária de mais de 23 mil embalagens por dia.

Publicidade

O mal já lá está. A crise só veio potenciar.

Inês, hoje, está bem. Mas a crise, o desemprego e a diminuição do rendimento real de alguns portugueses contribuíram para fazer emergir um mal-estar já instalado em algumas pessoas. "A crise fez despoletar o pedido de ajuda. Veio intensificar sintomas que já existiam. Para além dos sintomas já existentes, surgiram novos, como uma maior sensação de desamparo", explica a psicóloga clínica Marta Valongo. O discurso "é de pessimismo e de grande revolta. As pessoas têm mais dificuldade em pensar que o que as faz realmente sofrer são questões internas. Sinto que estão mais inseguras, paranóides e com medo de confiar nos outros", acrescenta a terapeuta. "Os dados europeus dizem que, em situações de crise, as repercussões são muito rápidas em doenças como depressão e a ansiedade", explica Álvaro de Carvalho.

Embora Portugal não tenha ainda números sobre o impacto da crise na saúde mental dos portugueses, vários estudos internacionais até agora realizados apontam para a existência de uma relação entre a crise e o aumento do número de episódios de depressão e de ansiedade. O director do Programa Nacional para a Saúde Mental, Álvaro de Carvalho, adianta que está em marcha uma estudo epidemiológico da saúde mental em Portugal depois da crise. Os estudos existentes a nível internacional deixam, no entanto, algumas pistas sobre o fenómeno nos países ocidentais. "Os dados europeus dizem que, em situações de crise, as repercussões são muito rápidas em doenças como depressão e a ansiedade", explica Álvaro de Carvalho.

Os últimos números disponíveis indicam que as perturbações psiquiátricas afectam mais de um quinto dos portugueses. Segundo o relatório Saúde Mental em Números – 2014, do Programa Nacional para a Saúde Mental, 22,9% dos adultos portugueses sofrem de perturbações psicológicas. Estes números, referentes a 2013, indicam que as perturbações de ansiedade (16,5%) e as perturbações depressivas (7,9%) são os distúrbios psicológicos que afectam mais os portugueses. Números que são mais acentuados do que em países como a Alemanha, a França, a Espanha, a Itália ou a Holanda.

Numa situação limite, a depressão pode também conduzir ao suicídio. Inês tentou-o duas vezes. Na primeira, através da ingestão de comprimidos com álcool. Depois, recorreu à mutilação. Esta era, aliás, uma prática recorrente. Nos seus braços notam-se as cicatrizes, todo um mapa de dor marcado no corpo. "A dor era tão forte. Quando não tinha drogas ou álcool para aliviar esses sentimentos, o desespero era tão grande que, ao fazer aquilo, acabava por desviar o sofrimento", relata.

De acordo com os valores do Saúde Mental em Números – 2014, o número de suicídios em 2012 (últimos dados) foi de 1.015, em comparação com os 951 registados no ano anterior. "Há um grau de resiliência de país para país. Temos a presunção de que a crise em Portugal e Espanha tem vindo a ter repercussões menores das que teve na Grécia", exemplifica Álvaro de Carvalho.

A crise está também a ter impacto nas crianças e adolescentes. No caso de Inês, a vida foi desde a infância rodeada de dor. "Foi pautada pelos maus tratos, não a mim, mas à minha mãe. O ambiente era muito triste. Esquecer nunca se esquece. Perdoar, perdoa-se, mas nunca passa completamente, nunca consigo estar completamente descontraída". Inês guarda a mágoa de não ter prosseguido os estudos. Deixou a escola no 11º ano. "Tinha capacidades para continuar, mas isto não me deixou", desabafa. Ainda assim, Marta Valongo diz que "actualmente os jovens estão muito mais perdidos". "Prolonga-se a dependência financeira, o que mexe com a componente emocional e impede que se tornem autónomos", descreve a psicóloga. "Tem havido mais casos de crise na infância e na adolescência em jovens com uma situação económica diferenciada. Também porque houve um aumento de casos de violência familiar", conclui Álvaro de Carvalho.