Quando o teu romance de adolescência acaba em violência doméstica

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Relato

Quando o teu romance de adolescência acaba em violência doméstica

Porque é que não me fui embora? Esta não é a pergunta correcta. Há tantas forças que levam as mulheres a permanecer em relações abusivas. Mas acho que é importante dizer que nem sempre são as coisas óbvias

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Austrália.

Theo* sempre teve uma certa intensidade. Nunca percebi muito bem o que era, mas consumiu-me. Conhecemo-nos quando eu tinha 17 anos, sentada à beira de uma piscina, com os pés mergulhados na água. Tinham-me dito que nos íamos dar bem, que éramos muito parecidos. Theo olhou para mim de raspão e enrolou um charro. Senti-me tonta.

Quando ouves falar sobre o que é uma relação "abusiva", as coisas tendem a começar normalmente e depois desenvolvem-se. Mas ninguém se atreveria a considerar o que eu e Theo tínhamos como normal. Ao início achei tudo sedutor. Ninguém nos compreendia tão bem como nós próprios; ninguém percebia.

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Olhava de lado para os meus amigos em relações saudáveis. Aqueles casais pitorescos, tão cheios de amor, pareciam-me repugnantemente superficiais. Achava que eu e Theo partilhávamos um amor tão profundo, tão inegavelmente intenso, que seria insultuoso tentar defini-lo pelos padrões convencionais.


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Mas os sinais de alerta estavam lá: Theo não tinha qualquer pejo em chamar "puta" à mãe se ela de alguma forma o frustrasse. Foi mandado embora de emprego atrás de emprego, porque nunca se conseguia dar bem com quem quer que fosse. Às vezes parecia-me que namorava com uma espécie de divindade cruel e insuportável. E quanto mais cruel se tornava, mais eu ansiava pelo seu amor.

Theo usava frequentemente aquilo a que se referia como "tácticas de medo" - tentativas subtilmente violentas para me assustar. Saltava para cima de mim, pressionava os polegares nos meus ombros, e dizia-me coisas ao ouvido como "cala-te, caralho", ou "quem me dera que te fosse foder e desaparecesses". Mas fazia-o sempre sem gritar, para que os meus pais, que estavam a dormir no quarto ao fundo do corredor, não o pudessem ouvir. Lembro-me de ficar deitada, paralisada, completamente dissociada do meu corpo, a ouvir a minha própria voz ao longe a repetir, "não faças isto, não faças isto", até ele sair de cima de mim.

Esbofeteou-me uma vez. Fiquei chocada a olhar para ele, enquanto se desmanchava a rir. "Adoras isto!", exclamou. "Agora, vais dizer a toda a gente que sou um 'abusador' não é?". Estava enganado. Nunca disse a ninguém.

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A coisa verdadeiramente assustadora na minha relação com Theo, no entanto, não era ficar confinada ao seu peso em cima de mim, ou ao seu mau génio. Era o abuso emocional - o quão bom era ele naquilo, tanta prática para alguém tão jovem. Convenceu-me que eu não era feminina, tinha peso a mais, que me vestia mal e era preguiçosa. Quando cortava o cabelo mais curto, chamava-me um nome masculino. Engoli todas as suas palavras rudes com orgulho e determinação. A minha própria reflexão interior começou a mudar por mim.

Fez com que me inscrevesse num ginásio, perdesse peso e romantizasse a relação conturbada que tinha com a comida. Aos 54 quilos, começou a decidir que eu só podia comprar determinados tipos de comida e bebida. Depois de semanas a fio de cigarros como pequeno-almoço e purgas ao jantar, deu-me os parabéns por conseguir vestir um par de calças de ganga da minha melhor amiga. Na altura, ela estava a ser tratada a anorexia e bulimia severas.

Ainda assim, recusava-se a ter sexo comigo, sob a premissa de que, "simplesmente, não se sentia atraído por mim". Uma vez cuspiu para uma taça depois de uma breve e incrivelmente vergonhosa tentativa de me fazer sexo oral. Senti que estava tomada por doenças. Comecei a cortar-me com um x-acto - uma triste tentativa de lhe subtrair alguma espécie de empatia.

"Uma noite, a medo, gravei no iPhone uma discussão enquanto estava bêbado. Na gravação, ouvi-o a tentar convencer-me que eu é que era a abusadora".

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Porque é que não me fui embora? Esta não é a pergunta correcta. Há tantas forças que levam as mulheres a permanecer em relações abusivas. Mas acho que é importante dizer que nem sempre são as coisas óbvias - como os filhos, ou a casa, ou os anos de uma história partilhada.

Estar numa relação abusiva convenceu-me lentamente que, apesar da crueldade indiscutível de Theo, eu era absolutamente incapaz de ser amada. Dizia-me frequentemente o quão frustrante era para ele que a sua família e amigos gostassem de mim, que não conseguissem ver o quão horrível era na realidade. Acreditei que era este o amor que eu merecia.

O fundo do poço foi atingido quando fui ter com ele à Europa no final de um intercâmbio de seis meses que fez. Uma noite, a medo, gravei no iPhone uma discussão enquanto estava bêbado. Na gravação, ouvi-o a tentar convencer-me que eu é que era a abusadora. Lembro-me de ele me segurar e dizer-me "Nunca mais me chames cabrão". Como se essa expressão violenta pudesse explicar e justificar a nossa tentativa falhada de nos amarmos.

Um dia de manhã atirou-me 500 dólares para cima e disse-me que tinha oito horas para me ir embora, senão… Em desespero pedi dinheiro emprestado a uma amiga próxima e dirigi-me para o terminal do Aeroporto de Heathrow, pronta para apanhar um avião de volta a Melbourne. Theo estava ao meu lado, a agarrar-me a mão. Mesmo depois de três anos de medo, dor e exaustão - e a saber que seria a última vez que ele ia viver dentro da minha cabeça - implorei-lhe que não me deixasse. Senti-me tão pequena. Passei pela zona de alfândega a chorar compulsivamente e já a bordo pedi à hospedeira de bordo para por favor pararem o avião.

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Colagem por Madison Griffiths

Dez dias depois de ter regressado a casa, Theo ligou e disse que tinha saudades minhas. Disse que não havia ninguém como eu. Deslizei para o chão do quarto e chorei. Senti que ia ceder. No entanto, ao invés, decidi mostrar a gravação aos meus amigos e família. O choque e a tristeza deles travou-me e, finalmente, foi como se fosse afastada definitivamente dele.

Penso várias vezes no que poderia ter acontecido se tivesse cedido. Estaria a mentir se dissesse que não há momentos bons que perduram, espalhados entre a dor. Não o odeio, nem quero odiá-lo. Ele dizia-me que eu tocava bem piano. Dormir ao seu lado era a minha coisa favorita. Não havia qualquer ressentimento nele quando tinha os olhos fechados, mas sim um instinto caloroso de abraçar alguém e eu era a pessoa escolhida.

"Agora como o que quero. Rio-me sem me preocupar se é muito alto. O meu cabelo está curto. Cancelei o ginásio".

Uma grande parte da motivação por trás do facto de não o deixar era o não saber como podia existir sem ele. Ao entrar naquele avião em Heathrow senti-me entorpecida, como se não restasse nada de mim. dEmorei meses a perceber os efeitos do abuso. Todas as minhas inseguranças - os restos da difamação, da dor e da humilhação - marcaram a minha relação seguinte. Mas desta vez, o meu parceiro era um homem disposto e capaz de amar. E as coisas melhoraram.

Agora como o que quero. Rio-me sem me preocupar se é muito alto. O meu cabelo está curto. Cancelei o ginásio. Aceitei o amor de outra pessoa e volta e meia até acho mesmo que o mereço. Comecei a desenhar outra vez. E escrevo honestamente, com as palavras a purgarem todos os insultos de Theo e a deixarem-nos a apodrecer na página. A minha humanidade é agora desavergonhadamente real, honesta e, se calhar, até por vezes bonita.

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