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O que aprendi a trabalhar num call center

Passei três anos da minha vida a atender 100 telefonemas por dia.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.

Cheguei ao mundo da assistência telefónica por acaso. Não é que tenha acordado um dia e decidido tirar um curso de telemarketing de quatro anos, devido a um ardente desejo de atender telefones o resto da vida. Foi pura necessidade vital. Era isto, ou deitar o bebé para o contentor do lixo e sair em todos os jornais na manhã seguinte.

Quando renuncias aos filtros na hora de ir à procura de trabalho, dás por ti e estás numa entrevista para ser telefonista - é o tipo de oferta que mais abunda. A ideia inicial era estar ali meia dúzia de meses "até encontrar uma coisa melhor, que eu gostasse mais de fazer", mas, já se sabe o que a casa gasta. Foda-se, nos primeiros dias tinha a certeza de que não ia aguentar. Comia as sandes que comprava numa máquina e repetia para mim próprio, uma e outra vez, "amanhã nem voltes". Fiquei lá uns três anos. É o temível "bicho" da inércia e do conformismo.

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Fui contratado por uma empresa que trabalhava para um banco catalão. O meu trabalho consistia em realizar consultas e operações por telefone para os clientes desse banco. Curiosamente, o meu salário não era o de um empregado de uma entidade financeira. Embora também manobrasse informação sensível e dinheiro humano, o ordenado assemelhava-se mais ao de um músico de rua, ou menos até. Imagino que a maioria dos leitores tenha interagido, alguma vez na vida, com este tipo de serviços para anular cartões multibanco perdidos. Sim? Eu conheço-vos bem, com as vossas vozes delicadas e deprimidas quando ligavam ao domingo de manhã.


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Há um dado muito importante a ter em conta: eu dedicava-me ao que se chama "recepção de chamadas", ou seja, as pessoas ligavam-me, não tinha que perseguir ninguém para lhes vender coisas (a isso chama-se "emissão de chamadas"). Só tinha que estar sentado numa cadeira confortável, daquelas de escritório, a atender telefonemas durante oito horas por dia - a média eram umas 100. Era uma actividade constante, quase não havia descanso. Terminavas uma chamada e tinhas logo mais 12 à espera de serem atendidas. Tentar ir a todas era missão impossível, por isso, muitos trabalhadores até levavam a coisa tranquilamente. Não vias o fim. Era o túnel eterno.

Passávamos o dia a falar e usávamos quase sempre as mesmas frases, as mesmas palavras. Esta repetição de construções gramaticais acarreta consequências. Às vezes, quando os meus amigos me ligavam para o telemóvel, respondia com as mesmas frases que usava para atender os clientes e, claro, eles tinham pena de mim. É nesse momento que entendes que o trabalho se apoderou da tua vida, que tens de fazer reset. É nesse momento que um telefonista decide, de uma vez por todas, abandonar. Quando chegou o momento, abandonei.

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Ser telefonista de um serviço de atendimento telefónico de uma entidade bancária não é um trabalho propriamente simples, porque, ao fim e ao cabo, interagir com seres humanos é absolutamente complicado. E, mais ainda, se falamos do seu dinheiro e se esta gente se encontra em situações extremas, nas quais tu és a sua única esperança, a sua única opção de sobrevivência. Foda-se, só de pensar, que às vezes esta malta estava de férias em lugares longínquos do Planeta e ligava porque o cartão não funcionava exactamente no momento em que era preciso pagar um jantar extravagante em Banguecoque.

"Mas, nem tudo era um inferno, visto que o telefonista tem um poder secreto e por muitos desconhecido: o mute".

Às vezes podia ajudá-los… e outras não. Nesta segunda versão era quando ficavam realmente nervosos e agressivos. Um adulto não pode tolerar a impossibilidade de pagar o jantar à família e, por isso, decide insultar-te. É a sua única saída. Agora que falo nisso, os insultos eram uma parte importante deste trabalho. Às vezes, no caminho para o trabalho pensava: vamos lá ver quantas vezes me chamam cabrão e filho da puta hoje. Fazia parte do jogo e até tinha um ponto divertido.

A verdade é que, por muito que me insultasse, era um prazer ver como esse idiota que pedia para "falar com o teu superior imediatamente" ficava apeado num país qualquer, sem um tusto. Era o karma. Uma vez, a um colega disseram-lhe por telefone "eu rebento-te essas fuças". Ai sim? E como é que pensas fazê-lo?

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Mas, nem tudo era um inferno, visto que o telefonista tem um poder secreto e por muitos desconhecido: o mute. Há aquelas melodias que ouves quando estás à espera, mas também há o mute, que te permite criar pequenos momentos de silêncio durante as conversas. Instantes chave em que podes fazer DE TUDO UM POUCO. O mute é a diferença entre dares um tiro nos cornos e… sobreviveres. É um oásis de tranquilidade. É o que define o telefonista, é por isso que ele existe.

Tens de saber - querido leitor - que as pessoas que te atendem por telefone te odeiam e te insultam enquanto falas. Quantas vezes terei chamado a alguém "grande filho da puta" enquanto me perguntava quanto dinheiro tinha na conta? É tudo uma questão de educação. Se te tratam com respeito, trabalhas com gosto, mas se começam a falar-te mal, fazes o possível para eternizar a chamada, arranjar-lhe problemas e insultá-lo… com o mute ligado.

Era divertido estar a trabalhar e ouvir os meus colegas insultar esta gente, pressionando com extrema precisão o botão do mute no momento certo: "Sim, claro, o cartão está operacional - sua puta de merda - devia estar a funcionar, senhora Alcina". Não é preciso dizer que esta ferramenta, quando mal utilizada, pode resultar num dos teus piores pesadelos. Vários colegas tiveram que explicar porque disseram ao seu interlocutor "paga o que deves, cabrão", entre outras pérolas do género. O mute leva-te pertinho do céu, mas pode fazer-te descer aos infernos. Há que utilizar este poder de forma responsável e nunca perder o respeito ao botão.

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Quando finalmente decidi bazar escrevi "O Pol Rodellar esteve aqui" numa das paredes do escritório. Precisava de evidenciar que deixava uma parte de mim nesse espaço. Oferecer três anos da tua vida a algo, ou a alguém, é uma coisa séria, porque, afinal, tudo o que somos é tempo. Durante esses anos lidei com clientes de todo o tipo. Havia gente que passava as passas do Algarve para chegar ao fim do mês e gente com somas astronómicas de dinheiro. Dígitos e dígitos de riqueza, uma coisa fora do normal. Parece incrível que num mesmo Planeta se conviva com isto. Como é que pode haver tanto e tão pouco dinheiro?

Há algo muito errado com este Mundo, algo que me faz olhar para o Homem e ter vontade de bater-lhe. Apesar de tudo, tinha colegas completamente encantadores, muitos deles mais sinceros e humanos que muita da escória que fui conhecendo e na qual, lamentavelmente, me vou convertendo eu próprio, pouco a pouco. Lembro-me que, um dia, um colega leu em voz alta uma notícia num jornal, desses gratuitos. Falava de um bebé que tinha morrido de cancro não sei onde. O tipo deixou o jornal em cima da mesa e enquanto se sentava disse: "Quem devia ter ido era eu". Depois atendeu chamadas o dia todo. Um herói.


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