Três anos na "caverna" artística de David Lynch
Retrato de David Lynch, cortesia de David Lynch: The Art Life.

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cinema

Três anos na "caverna" artística de David Lynch

"David Lynch: The Art Life" é um novo documentário que mergulha no quotidiano do realizador, mas também no seu passado e na sua intimidade.
Hannah Ewens
London, GB

Este artigo foi originalmente publicado na VICE UK.

É certinho que, neste exacto momento, David Lynch está a beber café, a fumar um cigarro e a pintar um quadro. São as três únicas actividades que o conseguimos visualizar a fazer, mesmo que não tenhamos qualquer prova concreta. Mas, no novo documentário David Lynch: The Art Life , descobrimos que é exactamente isto que ele faz, todos os dias, trancado no seu estúdio.

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The Art of Life é um documentário que, provavelmente, só vai agradar aos fãs mais hardcore de Lynch (que são a maioria, claro). É um filme de ritmo lento, mas rico, que segue Lynch enquanto ele pinta, esculpe e entalha, que nos dá uma visão tipo "mosca na sala" do seu quotidiano - "a vida artística" como o próprio refere.

Apesar de ter sido entrevistado muitas vezes durante a sua carreira, os responsáveis por este documentário conseguiram encontrar novas anedotas estranhas sobre a infância de Lynch que parecem ter influenciado a sua visão artística. Se gostaste do livro Catching the Big Fish, de Lynch, então vais adorar a forma como o filme preenche as lacunas do que se conhece dos primeiros tempos de vida do cineasta norte-americano.

Falei com o realizador do documentário, Jon Nguyen, que anteriormente trabalhou em Lynch (2007), um filme que acompanha David durante as filmagens de Inland Empire.

VICE: Olá Jon. Em 2006, David Lynch era uma pessoa relutante em dar entrevistas. Como é que conseguiste fazer com que mudasse de ideias?
Jon Nguyen: Queríamos fazer-lhe muitas perguntas. Mas dava para ver na linguagem corporal dele que não estava realmente confortável, ou interessado em responder. A determinada altura, ele disse simplesmente: "Segue-me e vais saber sobre o que é o filme no final das filmagens". E foi mesmo só aí que percebemos. Ele foi sempre cauteloso. Quando acabámos lembro-me de o Jason, um amigo dele, dizer: "Sinto que o David está a chegar a uma idade em que provavelmente vai querer partilhar algumas histórias. Talvez daqui a alguns anos possam voltar e ver o que ele sente a esse respeito". Quando teve a filha, que hoje tem três anos e meio, abordámo-lo outra vez e dissemos que este novo projecto era uma oportunidade de lhe contar todas as histórias da infância e ele achou uma grande ideia.

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Acesso à vida íntima de Lynch é algo muito raro. Estavas literalmente no seu santuário pessoal, enquanto a sua filha andava por lá a correr.
David é uma pessoa muito reservada e tem apenas alguns amigos próximos. Acho que se Jason não estivesse lá a ajudar a fazer o filme, se não tivéssemos a confiança dele e essa amizade próxima com o David, o documentário não seria possível. Não podes bater à porta de David Lynch assim do nada e esperares que ele abra. Não é, definitivamente, a pessoa mais fácil de entrevistar. Geralmente é ele que conduz a conversa.

Foram cerca de 25 entrevistas em três anos, quase todas em fins-de-semana. Jason estava a morar no complexo de David, por isso recebíamos um telefonema no fim-de-semana e David dizia: "Tenho uma hora, porque é que vocês não aparecem?". Sentávamo-nos com ele no estúdio, Jason arranjava um microfone e era como estar a conversar com um velho amigo.

Fiquei surpreendido ao ver como a vida artística dele é solitária.
Há algumas cenas onde ele aparece a escrever, porque estava, na altura, a fazer o guião de Twin Peaks. Mas, quase sempre, está no estúdio a pintar. Eu revia aquele material todo e pensava para mim próprio, "Meu, só estás a mostrá-lo a pintar". Mas o Jason disse-me: "Jon, tudo o que David faz é pintar, desde que acorda até ir para a cama". Claro que essa não é a rotina quando está a filmar. Mas fora os filmes, ele não faz mais nada. Nem sequer faz o seu próprio café, só aos fins-de-semana. Eu dizia: "É possível filmar um plano dele a regar as plantas ou algo assim?". E Jason respondia: "Vou perguntar". Mas David só podia ser apanhado a fazer coisas mundanas, quando realmente estava a fazê-las. Nunca interpretava para a câmera. Acontece que, de manhã até a noite, ele está no estúdio e é assim desde jovem, sempre a trabalhar. É o que ele faz. É um artista hardcore, que realmente vive a vida artística.

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Tendo em conta o quão reservado ele é, como é que surgiu o formato para as entrevistas?
Cada entrevista foi diferente. Ele falava sobre os avós e as histórias deles, sobre a família inteira. Mas notámos que havia um fio a conduzir essa narrativa: a forma como ele descobriu a arte. Tinha aulas de pintura a dedo e quando se formou, passou por seis ou sete estúdios particulares de pintura.

E os seus pais apoiavam-no muito. Adorei a história de como a mãe dava livros de colorir aos irmãos, mas não a ele, porque via que a paixão dele por arte era real.
Ela sem dúvida viu algo único nele, algum tipo de potencial. Não sou a mãe dele, não sei o que ela viu, talvez desenhos ou algo que as outras crianças não estavam a fazer. O pai também teve uma grande influência. David conta como o pai lhe mostrou o mundo por debaixo de um tronco de árvore cheio de insectos. Ele acabou por mais ou menos se apropriar dessa ideia. Mas o que me surpreendeu foi aquela cena do documentário onde ele leva o pai para à cave para ver as estranhas experiências que estava a desenvolver [Estava a apodrecer frutas e animais mortos para ver como eles mudavam e, infelizmente, o seu pai ficou tão horrorizado que disse que o David não deveria ter filhos]. Não sei se o pai percebeu que isso era uma influência directa dele sobre David.

Há várias histórias estranhas que ele conta da infância que podem ser directamente ligadas ao seu estilo e obra. Especialmente aquela vez em que estava a brincar na rua até tarde e uma mulher nua passou por ele a deambular.
Quando ouvi essa história, uau, lembrei-me logo de uma cena de Blue Velvet. E depois ele conta uma história sobre um concerto de Bob Dylan e diz "ele era tão pequeno no palco", e isso lembrou-me o casal idoso de Mulholland Drive. Muitos dos seus trabalhos incorporam um rádio e, no documentário, ele conta que quando foi para a faculdade, depois de se despedir do pai, sentou-se no quarto onde estava alojado e não saiu de lá durante duas semanas. Ficou a ouvir rádio até as pilhas acabarem. Esse episódio é muito poderoso para mim.

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Ele sugere que, desde que viveu essa solidão no quarto enquanto jovem adulto, sempre foi assim.
Sim. Imagino que ele tenha algum tipo de agorafobia. Isso definitivamente tornou-se mais definido. Ele era de uma cidade pequena dos Estados Unidos e, do nada, estava em Filadélfia. Isto aconteceu duas semanas depois daquelas manifestações raciais que aconteceram na cidade durante a guerra. Ele sempre disse que mais que tudo, Filadélfia sempre foi uma grande influência na sua arte e na sua vida.

Não sabia que ele tinha espasmos intestinais ou estomacais quando era mais novo. Esses episódios estavam ligados a alguma coisa?
Não sei o que esses espasmos eram, mas imagino que vinham do stress e da ansiedade. Imagino que eram uma manifestação do modo como pensava na época, porque ele fala muito sobre querer manter a família separada dos amigos de escola e os amigos de escola separados dos amigos da arte. Vivia em três mundos e nunca deixava que se misturassem, o que, para mim, tem ligação com filmes como Mulholland Drive ou Lost Highway, em que os personagens têm diferentes papéis, papéis separados. Ele não diz isso, mas acho que esses temas fantasma vêm da sua infância.

Bob Finds Himself In A World – David Lynch

Ele ainda precisa de viver essas vidas separadas, ou finalmente encontrou a paz na vida artística?
Quando está em Los Angeles, não frequenta muitas festas, jantares ou eventos de Hollywood. Tem uma vida calma em casa. Acho que isso tem a ver com a ansiedade e a agorafobia. Acho que amadureceu e desenvolveu-se muito, mas ainda lida com esses problemas.

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Pelo documentário dá para entender as lutas pelas quais ele passou para ser reconhecido.
David trabalhou muito para chegar onde está agora. Tinha dúvidas, teve que trabalhar e aperfeiçoar todas as pinturas horríveis que fez. E aquela história que colocámos no final, de quando o pai dele disse que ele deveria parar de fazer Eraserhead e David disse-lhe que não e acabou a chorar à frente da irmã. Isso foi uma revelação para mim, porque achava que produzir os seus filmes tinha sido fácil, mas ele tinha muita oposição, tinha uma família para sustentar e os pais dele não queriam que ele fosse um artista pobre. E se não fosse pelos subsídios que recebeu, hoje não seria o David Lynch que conhecemos.

Quando tentámos conseguir algumas fotos de David desse período, entrei em contacto com um amigo que tinha estudado com ele na mesma época em Filadélfia, um fotógrafo. E ele disse: "Fico tão feliz que David seja grande agora, toda a gente sabe quem ele é. Acompanhei a carreira dele porque, nos anos 60, também tentei ganhar a vida como artista, mas depois de alguns anos desisti e investi noutra carreira. Bem, de qualquer forma, vou tentar encontrar algumas fotos". Esse gajo ainda vive em Filadélfia e está a começar a ser reconhecido pelas suas fotos daquele período, mas eu sempre penso: "Ele poderia ter sido o David".

Houve alguma pergunta que tenha ficado sem resposta depois de terminares as filmagens?
Há uma história no filme que ficou sem resposta. Ele lembra-se de se ir embora de Montana quando era miúdo e dizer adeus a um homem chamado Mr. Smith. Não sei se dá para perceber, mas ele está muito emotivo, quase a chorar. Voltámos a essa história muitas vezes, mas David engasgava-se sempre e dizia que não podia entrar mais fundo nesse assunto. Foi estranho porque pensámos: "Não conhecias o tal Mr. Smith assim tão bem, então porque é que essa cena do adeus à família Smith tem esse efeito em ti?". Acho que isso marcou o final dos seus anos felizes, porque quando a sua família se mudou para a Virginia, ele entrou num período complicado por causa da ansiedade. Ele fala da infância como Sol e alegria, mas a Virgina era sempre sombria. Portanto acho que ele sente que foi aí que perdeu a sua inocência infantil. Provavelmente sente falta dos anos 50 e de ser feliz com a família.

E ele gostou do filme?
Sim, gostou. Acontece que fizemos o filme com todas as partes que ele nos deu. Ele deu-nos acesso a álbuns de família e a todos os seus quadros, também pudemos entrar no seu estúdio de pintura e em sua casa, além de fazermos as entrevistas. Não entrevistámos terceiros, não colocámos nenhuma foto que ele realmente não nos tenha dado. Ele até escolheu o nome. Portanto, este filme é quase que um puro David Lynch.

Obrigada, Jon.

@hannahrosewens