FYI.

This story is over 5 years old.

Música

A Ascensão e Queda do Turbofolk Sérvio

Um estilo musical que mais parece uma celebração cheirada e sintetizada de sexo, dinheiro e peitos de silicone.

A estrela do turbofolk, Goga, se apresentando numa balada para a elite criminal de Belgrado. Foto por Ana Kraš.

Depois de libertar a Iugoslávia no fim da Segunda Guerra Mundial, o Marechal Tito embarcou o país no programa padrão de modernização comunista. Em parte por necessidade mesmo. Os Bálcãs foram deixados de lado pela Europa Ocidental desde os tempos romanos, e algumas regiões ainda não tinham descoberto o absorvente adesivo até o meio do século XX. Mas outras partes vinham promovendo um novo senso de orgulho nacional e provando ao mundo exterior que os iugoslavos socialistas não eram só um bando de caipiras de nomes impronunciáveis com a menstruação escorrendo pelas pernas.

Publicidade

Para esse fim, o comitê central iugoslavo pegou a tradição milenar da música popular dos Bálcãs (o tal do folk), tirou todas as referências sobre bebedeira e sexo, despiu suas especificidades étnicas e batizou essa nova meleca insossa com o nome muito apropriado de “música popular recém composta” (MPRC). A neutralidade étnica forçada era especialmente importante para Tito, já que as federações componentes da República Socialista Federativa da Iugoslávia tinham uma propensão histórica a matar umas às outras de maneiras horríveis e grandiosas. Considere que eles tinham acabado de sair de uma guerra na qual o regime Ustaše cometeu atrocidades tão bárbaras com os sérvios, que os nazistas tiveram que mandar eles pegarem mais leve. Ninguém queria que uma velha canção de bêbado de repente colocasse o dedo na ferida dessas tretas todas.

Tito morreu em 1980 e as rachaduras na sua Iugoslávia multiétnica começaram a aparecer rapidinho. Em 1983, uma cantora nascida na Bósnia chamada Lepa Brena bateu os outros grupos de pop e MPRC apoiados pelo Estado e recebeu a indicação para o concurso musical Eurovision daquele ano. Ela foi indicada com seu número de “música popular de verdade” sobre trepar com um cara no mato, e isso a transformou na maior estrela da Iugoslávia da noite para o dia.

Antes disso, Brena cantava nas paradas de caminhão e kafanas da maior rodovia da Sérvia (uma kafana é tipo um boteco, só que mais zoado), onde o velho estilo popular clássico ganhou muitos seguidores underground apesar de todos os esforços do Estado. A música de Brena pintava um retrato despretensioso do atraso rural da RSFI, o que ia drasticamente contra a linha do partido no comando. Mas enquanto os oficiais tentavam garantir a Olimpíada de Inverno de 1984 para o país, deixaram escapar algumas canções pouco lisonjeiras como “Evo moga delije” (“Aqui Está o Meu Herói”), com um videoclipe que apresentava o marido de Brena como um iugoslavo grandão pinguço típico que xinga a comida dela e desmaia na cama embalando uma garrafa de conhaque; ou seu hit seguinte, “Nema leka apoteka” (“A Farmácia Sem Cura”), que sugere que a odontologia iugoslava é exercida por incompetentes e que a anestesia geral consiste da enfermeira mostrar os peitos para o paciente.

Publicidade

Depois de um ano, Brena já estava tocando em estádios lotados e o circuito de kafanas da M22 estava cheio de imitadoras. Ainda incapazes de contar com a TV e a rádio controladas pelo Estado para deslanchar, a maioria das cantoras de “popfolk” em começo de carreira procuravam o apoio dos membros do público mais endinheirados — a máfia sérvia.

Um pôster da Ceca de uniforme militar enquanto visitava a Guarda Voluntária Sérvia, mais conhecida como os Tigres de Arkan, grupo paramilitar acusado pela ONU de cometer execuções sumárias, estupros em massa, pilhagem e limpeza étnica na Bósnia ocupada pela Sérvia. Ceca por volta de 1993, o mesmo ano em que o exército sérvio-bósnio cercou a cidade de Srebrenica e começou um sítio que culminaria no massacre de oito mil muçulmanos bósnios.

O final dos anos 1980 se mostrou uma época muito propícia para se ter um gângster como empresário. Em 1988, grandes manifestações no leste da Iugoslávia ameaçavam o já não tão vermelho estado socialista, o que levou o futuro presidente Slobodan Milošević a romper com o tabu do partido contra o nacionalismo. Declarando-se abertamente como defensor dos direitos sérvios, Milošević desencadeou a erupção de orgulho étnico há muito reprimida por toda a RSFI, e logo todo mundo odiava todo mundo como nos velhos tempos.

No meio dessa confusão, Brena lançou duas canções patrióticas que atingiriam o nível Lee Greenwood de multidões nacionalistas espumantes: “Živela Jugoslavija” (“Longa Vida à Iugoslávia”) e “Jugoslovenka” (“Garota Iugoslava”). No clipe desta última, filmagens aéreas meio toscas mostravam as belas cidades fortificadas e os castelos ao longo da costa croata, juntamente com imagens de jovens cheios de energia correndo pelas ruas de Belgrado com a bandeira federal da Iugoslávia. A mesma bandeira que estaria nos tanques sérvios que explodiriam esses monumentos dois anos depois.

Publicidade

Quando a república federativa se dissolveu, Milošević escorou o poder sérvio consolidando o controle do Exército Nacional Iugoslavo e vendendo o patrimônio estatal para pagar as dívidas. Os compradores dessa venda de garagem não eram sempre os melhores ou mais brilhantes (esses deram o fora quando malucos barbudos começaram a recrutar moleques em praça pública para cuidar do “problema croata”). Na maioria das vezes essas pessoas eram apenas gente com muitos contatos e que não se importavam em atirar na cara de um homem na frente de sua mulher e filha. Cenários similares podiam ser vistos nas repúblicas esfaceladas da Croácia e Bósnia, mas não de maneira tão dramática quanto em Belgrado, onde a taxa de assassinatos disparou e o crime organizado se tornou a única indústria solvente da cidade.

Com a linha que separa governo e bandidagem se tornando totalmente nebulosa e a classe intelectual tendo fugido para o exterior, os criminosos canalizaram seu dinheiro e influência para seu estilo de música favorito, e assim o popfolk se transformou das músicas engraçadinhas sobre maridos infiéis em “turbofolk”: uma celebração cheirada e sintetizada de sexo, dinheiro, peitos de silicone e marcas famosas, que atingia níveis surpreendentes de insipidez.

“O turbofolk foi promovido pela primeira vez num programa de TV do Canal 3 chamado šoder lista”, afirma a compositora sérvia Sandra Rančić. “Era um programa musical satírico, eles passavam esses clipes toscos num vilarejo com ovelhas e galinhas passando e com uma cantora seminua. O šoder lista teve um papel muito importante no avanço da cultura turbofolk, apesar de não ser esse o objetivo de seus criadores. Eles estavam tentando tirar sarro disso. Mas foi um tiro pela culatra.”

Publicidade

Essa maratona musical retardada não teria sido tão ruim se não tivesse acabado sendo a trilha sonora de alguns dos piores crimes de guerra desse lado da África. Na época em que estava comandando o show em Belgrado, boa parte da elite criminal da Sérvia também estava usando uniformes paramilitares coloridos com nomes como Águias Brancas, Ravna Gora Četniks e Tigres de Arkan. Esse último grupo foi batizado em homenagem a Željko “Arkan” Ražnatović, um ladrão de bancos internacionalmente procurado que decidiu apoiar a mãe Sérvia convertendo a maior torcida organizada de Belgrado em seu próprio exército particular e depois o liderando um massacre de quatro anos na Bósnia e na Croácia. Em sequência ele se tornaria o maior empresário de turbofolk da Sérvia.

Lepa Brena casou-se com um famoso tenista sérvio e vazou do país antes que suas músicas se tornassem o hino não oficial para o estupro de camponesas, mas continuou sendo uma grande influência para a próxima geração de cantoras de turbofolk, a mais importante delas sendo uma adolescente do sul da Sérvia chamada Ceca.

Ceca pegou as sacadinhas sexuais meio Dolly Parton de Brena e as arrastou até um território Samantha Fox de sacanagem. Se seus primeiros sucessos como “Cvetak zanovetak” (“A Flor Implicante”) e “Želim te u mladosti” (“Te Quero Enquanto Ainda Sou Jovem”) deixavam pouco espaço para interpretações alternativas, e os videoclipes faziam questão de deixar tudo bem claro. Ela também transformou o apoio velado do turbofolk à causa sérvia em algo totalmente explícito, até mesmo viajando para a Bósnia para fazer shows para levantar o moral das tropas paramilitares no front. Em uma dessas viagens ela fez um show para os Tigres de Arkan, onde conheceu e se apaixonou por um criminoso de guerra de 40 anos, casado e pai de sete filhos. Em 1995, os dois se casaram numa cerimônia que os tabloides iugoslavos chamaram de um “conto de fadas sérvio”.

Publicidade

Arkan e Ceca no dia mais feliz da vida de muitos de seus fãs nacionalistas e de entusiastas do turbofolk sérvios. Foto por AP.

A cultura sérvia não curte muito sutilezas, isso é certo, mas o casamento de Arkan e Ceca foi como se alguém ligasse o cérebro de uma menina de oito anos numa máquina de realizar desejos e depois fizesse ela encher a cara de café. Enquanto Arkan disparava uma variedade de rifles automáticos usando uniforme de oficial da Primeira Guerra Mundial de desenho animado, a noiva fez apenas quatro trocas de vestido. Isso tudo,  claro, depois que os dois foram coroados pelo patriarca da igreja ortodoxa sérvia.

A cerimônia foi exibida pela TV estatal, vendendo Ceca como a nova rainha da música iugoslava e fazendo o casamento entre o turbofolk e o crime organizado o mais literal possível.

No mesmo ano, a Pink TV — um canal televisivo cuja grade de programação se baseava em clipes de turbofolk e transmissão de cópias pirata de filmes de ação norte-americanos — entrou no ar. Depois do final da guerra, a Pink tomou para si o papel de levar a influência sérvia para o exterior, espalhando estações de retransmissão por toda a região dos Bálcãs e bombando as várias cenas musicais regionais até a implacabilidade absoluta.

Com a nação cambaleando sob pesadas sanções internacionais, Milošević limitando o discurso internacional a mentiras deslavadas na TV estatal, e a Pink TV rodando sua programação derrete-cérebro incessantemente, a Sérvia entrou numa alucinação coletiva surreal. Os soldados que retornavam da Bósnia encontravam um país tão sem lei quanto o que estavam antes, onde práticas como contrabando de armas, enormes implantes mamários e transar com velhos por dinheiro eram empreendimentos totalmente aceitáveis.

Publicidade

Em Belgrado, a carreira de Ceca floresceu, e o turbofolk entrou numa fase de decadência sem paralelos. A música ficou mais dançante, mais agressiva e, de algum jeito, ainda mais superficial, com canções como “Gili gili” (“Cosquinha Cosquinha”) de Jelena Karleuša sendo um chamado transparente ao sexo, e “Koca Kola Marlboro Suzuki” de Viki Miljković sendo literalmente só uma lista de marcas. Apesar de sua origem rural e de muitas vezes reforçar acidentalmente a ideia do atraso sérvio (Suzuki?), a associação do turbofolk com o estilo de vida dos mafiosos ricos no controle das cidades deu um ar de legitimidade ao gênero e, por falta de qualquer alternativa, fez dele a via principal da Belgrado glamorosa de Milošević. Era como se o país inteiro tivesse virado um universo alternativo bizarro desenhado pelo Ralph Bakshi onde todas as figuras de autoridade são homens cachorros, todas as mulheres são gatas vadias aproveitadoras, e onde monstros como Arkan podem comprar um time de futebol de segunda divisão e colocá-lo no topo da liga ameaçando a vida dos jogadores dos times rivais (isso aconteceu mesmo).

A farsa atingiu o auge durante bombardeio da OTAN em Belgrado em 1999, quando Milošević pediu que estrelas como Ceca fizessem shows gratuitos de “Foda-se o Clinton” e “Kosovo é Nossa” nas praças da cidade — mostrando ostensivamente que os sérvios não tinham medo dos mísseis do ocidente, mas sendo só uma manobra básica de escudo humano, de uma perspectiva mais realista.

Um ano depois, Arkan foi assassinado, Milošević foi ejetado do poder e a era de ouro do turbofolk acabou. Ceca fez um ano de luto tradicional pelo marido e o primeiro-ministro Zoran Đinđić declarou guerra à máfia Sérvia. Naturalmente isso levou ao seu próprio assassinato, mas o efeito de resfriamento na cultura turbofolk e na criminalidade desenfreada que a financiava já estava em andamento. Enquanto o país amadurecia e começava a trabalhar para entrar para a União Europeia, os velhos gângsteres se tornaram homens de negócio legítimos e as antigas estrelas do turbofolk começaram a chamar sua música de “turbopop” e, depois, só de “pop” mesmo.

O último prego no caixão do turbofolk foi pregado em 2003, quando Ceca foi presa por desvio de dinheiro do antigo time de futebol de Arkan e por ter um monte de fuzis escondidos no seu porão (P.S.: O policial no comando dessa apreensão de armas foi o pai da antiga rival de Ceca, Jelena. Que coincidência, né?).

Hoje, um punhado de estrelas que se autointitulam turbofolkers, como Goga Sekulić e Maya Marijana, lutam pelo trono de Ceca. Mas apesar dos esforços de faixas como “Seksi Businessman” e “Panties” para ressuscitar o gênero, o corpo do turbofolk continua apodrecendo debaixo da terra, e nós podemos tirar uma importante lição de toda essa tortuosa história sérvia: música idiota mata.

Para ver o que rola na cena do turbofolk, apesar de termos acabado de falar para você que isso acabou, assista aqui o Guia VICE para os Bálcãs.