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A História do Jogo de História que Deu Ruim

Conversamos com o desenvolvedor e historiador Antônio sobre a polêmica do jogo educativo 'Engenho de Açúcar', feito com o intuito de mostrar como funcionava a produção de açúcar no Brasil nos tempos coloniais.

No ano de nosso senhor de 2007, Antonio, historiador, autor de livros didáticos (desde 1997) e desenvolvedor de games, lançou um jogo educativo chamado Engenho de Açúcar. Como outros títulos que ele já havia desenvolvido, esse foi feito para se tentar melhorar a interatividade e o interesse do aluno em sala de aula, e sua apresentação deveria ser feita a estudantes a partir do quinto ano do Ensino Fundamental em conjunto com um livro didático, que complementa o conteúdo apresentado no jogo. Feito com o intuito de mostrar como funcionava a produção de açúcar no Brasil nos tempos coloniais, Antonio baseou o jogo e o material didático nas descrições históricas do trabalho escravo utilizado na cultura da cana de açúcar, assim como na produção do caldo de cana e do melaço utilizado para a fabricação do açúcar. O jogo em si me lembra um pouco um dos meus games preferidos, como Settlers 2, ao mostrar várias partes da cadeia de uma indústria e todo o trabalho na transformação da matéria-prima até o seu fim último. Eu não consegui jogá-lo, já que ele e o material didático que o acompanha não estão mais disponíveis no site do PatolaGames, fora do ar desde quarta-feira, 26 de novembro.

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Nascida em 2002, a agora defunta empresa softhouse era bem parecida com muitas outras do ramo no Brasil, geralmente empreendimentos solitários que tentam juntar o mundo das novas tecnologias com o da educação. Eu trabalhei cerca de um ano com tecnologia educacional; então, quando abri o site da empresa, logo reconheci os jogos e os materiais didáticos. Era parte da minha função na escola que me empregava pesquisar esse tipo de empreitada e tentar melhorar a relação dos professores com novas tecnologias, já que, nos tempos de hoje, para mostrar serviço, as escolas são praticamente obrigadas a enfiar um iPad nas aulas, o professor querendo ou não. Acontece que o que me levou ao site não foi a curiosidade de alguém que já trabalhou nesse nicho. O que será que houve para, sete anos depois, o jogo Engenho de Açúcar começar a causar comoção – tendo em vista as famosas, passageiras e fugazes polêmicas de internet, que nos alimenta diariamente com discussões e opiniões ferrenhas – nas redes sociais?

Apresentação do gameplay do jogo e do material didático que o acompanha.

Segundo esta reportagem no portal G1 e este segmento no Paraná TV, a recente recepção do título por um grupo de alunos de História da Universidade Federal do Paraná parece ter sido das piores. Depois de terem sido introduzidos ao jogo como possível material didático pela professora Karina Bellotti, alguns deles se sentiram desumanizados com a possibilidade de você, como senhor do engenho, chicotear (no game) escravos que não estão cumprindo com a sua cota de trabalho. O processo interativo dos jogos eletrônicos sempre chamou atenção quando o assunto é violência, e há muita gente defendendo que a possibilidade de você fazer coisas que,dentro do contexto contemporâneo da sociedade civil, são execráveis, como espancar prostitutas no GTA, é algo intrinsecamente vil e maldoso, corruptor da moral em formação dos jovens que têm acesso a esses games. À luz da nova polêmica sobre este velho jogo educativo, achei de bom tom tentar falar com quem o idealizou. Desde a quarta (26), o site da PatolaGames está fora do ar, com apenas dois links solitários populando uma página em branco. Eles mostram um pouco do que Antonio acha da recente recepção do produto: o primeiro leva à pagina da Wikipedia em português sobre a revolução cultural na China de Mao Tse Tung; o segundo,ao clipe de "Cowboy Fora da Lei", do Raul Seixas. Uma clara reação à abordagem que a imprensa costumeiramente dá a esse tipo de assunto e que sempre gera pérolas do desentendimento e do obscurantismo, como no trecho a seguir, retirado da matéria feita pelo Baixaki Jogos, que não procurou falar com Antonio para escrever coisas como:

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Embora você possa pensar que a proposta do jogo tenha sido feita por alguém ignorante no assunto, sobretudo estrangeiro, talvez seja uma surpresa que o desenvolvedor é um mestrando do curso de História da UFPR.

Felizmente, algumas horas antes de o site ter saído do ar, eu consegui entrar em contato com Antonio através da sessão "contato" da extinta página. Conversamos sobre a recente polêmica, nascimento e fim da PatolaGames, tecnologia educacional e algumas questões que parecem ser recorrentes na recepção de jogos eletrônicos, sendo eles educativos ou não:

VICE: Como começou a PatolaGames? Foi um projeto pessoal ou havia mais gente envolvida?
Antonio: Começou em Curitiba, em 2002, e foi um projeto pessoal. Trabalhei com a produção de livros didáticos em História desde que saí da faculdade. Após escrever um sem-número de livros, comecei a experimentar com as mídias digitais, e os jogos pareceram uma boa ideia. Comecei com reconstruções em 3D de ambientes históricos e fui aprimorando. Os que eu mais gostava eram a recriação virtual de Auschwitz, para ensinar os alunos sobre o Holocausto, e a tumba da rainha Neferatari, que podia ser explorada virtualmente.

Basicamente, a empresa era eu sozinho: fazia a programação, a produção das texturas, a modelagem 3D; escrevia e diagramava os livros; criava e atualizava o site. Curiosamente, o jogo do engenho foi o único em que contei com ajuda de um programador/artista 2D, porque a mecânica era mais complicada e não domino gráficos 2D.

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Quanto tempo durou a empresa?
Essa eu tenho que pensar. Acho que meu primeiro jogo finalizado (e que dava para ser comercializado) foi A Casa de Ramose, de 2002. Era a reprodução em 3D de uma casa egípcia da época dos faraós para o aluno visitar como se estivesse dentro dela. Como tudo acabou em 2014, então, o projeto durou estonteantes 12 anos. Mas eu creio que o período de maior atividade foi 2006-2010. Não tive condições de ter minha atenção voltada exclusivamente para os jogos, a não ser nesse período.

Nos vídeos sobre os produtos que a empresa comercializa, vejo que existe uma relação dos jogos que vocês produziam com o livro do aluno. Você acha que é justo analisar um jogo sem ver o material didático complementar a ele? Parece-me que julgar só o jogo é ver só uma metade do trabalho e conteúdo.
O primeiro passo para distorcer a verdade é pegar só um pedaço dela e fazê-la parecer outra coisa. Para transformar alguma coisa em algo feio, é só tirar do contexto. O jogo do engenho é um bom exemplo. Não tem como jogá-lo sem o livro; o professor não pode utilizá-lo sem o manual do professor. Foram pensados para serem usados juntos. Por issoque não dá para fazer o download de um sem os outros virem juntos.

Tome o exemplo mais polêmico, que é o caso dos escravos sendo castigados. Quando o aluno está aprendendo a mexer com os feitores, o livro diz: "Você não estará batendo em ninguém. Estará clicando no mouse e acionando uma animação. Embora, mesmo em um jogo, seja feio de ver, ninguém se machuca". Para, logo a seguir, completar: "Mas não era isso que acontecia no Brasil escravocrata. Em um engenho de açúcar, por exemplo, as pessoas eram castigadas e, sim, eram machucadas. Por vezes, seriamente. E mesmo morriam". E continua.

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Isso sem falar no manual do professor. O professor é orientado a trabalhar a questão da violência e seu significado. Imagina que loucura seria não fazer isso? Eu coloco no livro até uma rara entrevista feita com um ex-escravo, que ainda era vivo em 1982. E não é a minha visão: é aquele escravo que descreve a própria experiência que teve com a violência.

Você acha que a internet está mudando um pouco a forma como as pessoas estão recebendo as coisas?
Quem dera. Acho que é exatamente o oposto: o risco é de a internet estar mudando muito pouco. Se uma pessoa usa internet só para usar Facebook, não aprende nada.

Toda essa comoção é a repetição de um tipo de preconceito, de um tipo de ignorância, que a internet não parece estar mudando. Quando Madame Bovary foi lançado na França no século XIX, Flaubert foi acusado de incitar as mulheres a cometerem adultério; afinal, seu romance era profundamente descritivo. O cinema, quando surgiu, foi considerado perigosíssimo, porque se acreditava que as pessoas seriam automaticamente influenciadas pelo que viam na tela.

E hoje? Conheço uma professora que foi impedida de usar o Mein Kampf,do Hitler, em sala, na faculdade. Como entender se não estudar? Se ler o Mein Kampf, vira nazista? Se mostrar a violência escravista, vira racista? É exatamente o oposto: nazismo e racismo amam a ignorância. São fanáticos por ela. Parece a minha avó: não podia falar "câncer", senão a doença surgia. Tinha de falar "doença ruim".

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Proibir Flaubert, porque corrompe as mulheres, é tomar as mulheres como idiotas. Proibir Mein Kampf em sala é tomar os alunos por idiotas. Proibir um jogo é tomar as crianças por idiotas. E bingo! Você tem a censura. Porque todos, menos o censor, são idiotas.

Como você ficou sabendo que o jogo Engenho de Açúcar virou uma polêmica? Como recebeu a notícia?Quando o pessoal da Rede Globo, aqui do Paraná, ligou pra minha casa dizendo que iam fazer uma reportagem.

Existe uma recepção diferente dos jogos eletrônicos para outras mídias?
Ah, sem dúvida. A interação que só existe em jogos e simuladores dá uma sensação de realidade, e muitas pessoas morrem de medo disso. Morreram de medo quando apareceu o rádio, porque iria manipular as pessoas; depois, a televisão; depois, os jogos 3D. Quanto mais realista, mais perigoso. Eu ainda lembro da comoção quando saiu Carmageddon, em que o jogador saía dirigindo e atropelando pessoas. Jogo chatíssimo, mas que foi ao estrelato pelas "denúncias" de que iria criar carniceiros ao volante. E quem não lembra os assassinatos cometidos por alunos em Columbine quando descobriram que um dos matadores jogava Doom? E cada vez que sai mais uma versão do GTA é a mesma ladainha: veem o jogador naquele ambiente cada vez mais realista e acham que ele vai à rua repetir o que vê no jogo. Então, querem banir GTA,porque, afinal, os gamers são uns patetas.

Vai por mim, é o mesmo tipo de debate que vai acontecer quando o Oculus Rift, ou qualquer tecnologia similar, se tornar mais popular. Afinal, é um passo adiante na imitação da realidade. Pedro, aposto seu braço esquerdo nisso.

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Você acha que o aspecto interativo do jogo faz as pessoas acharem que ele é algo mais vil do que, por exemplo, um jogo didático, por você participar das escolhas morais do personagem que você representa?
Por alguma razão, sim. Mas, olhando objetivamente, qual é a diferença entre o castigo a escravos no jogo e o castigo a escravos que aparece em imagens de livros didáticos? Nenhuma. Tanto em um como em outro só estão ilustrando a violência. Veja: o castigo a escravos não tem função nenhuma no jogo. Nenhuma. Não acelera o trabalho, não gera mais lucro, não produz mais açúcar, o engenho não trabalha mais rápido.

É só uma ilustração da violência. Uma ilustração que serve de mote ao debate.

Aliás, será que o grande problema é o fato de que a ação não acontece a não ser que o aluno clique no mouse? É isso que torna tudo tão abominável? É no contato entre o dedo indicador do aluno e o mouse que reside o perigo? Pois é só essa a diferença entre a animação que existe no jogo e uma pintura de Debret com o mesmo tema que tanto aparece nos livro de história.

Se for isso, é melhor proibir as imagens de castigos também nos livros didáticos, porque lá é bem pior: as crianças não usam um dedo, mas as DUAS MÃOS para chegar à imagem que querem ver! Jesuscristovalhamedeus. E imagine se elas abrem a mesma página várias vezes? Credo. Só queimando os livros. Não vejo outra solução. Para o bem das crianças.

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Você tem trabalhado com o quê depois que parou de fazer o PatolaGames? Continuou trabalhando com tecnologia educacional?
Sim. Estou desenvolvendo um material didático colaborativo, disponível na internet e gratuito. Professores podem modificá-lo e criar versões personalizadas. Seria como um material didático web-based, utilizando-se todos os recursos midiáticos possíveis e estimulando a interação. Chega de aulas só com texto e,eventualmente, com um filme a cada dois meses. Os professores querem e os alunos precisam de inovação. Precisamos fornecer ferramentas.

O segundo projeto é o de continuar a produção de jogos educativos, mas agora, também, web-based. Os que eu produzi,precisava fazer download, instalação, etc. Era burocrático e complicado. A ideia agora é, além de torna-los disponíveis em qualquer lugar, permitir a comunicação entre vários jogadores, inclusive de várias escolas diferentes. Uma espécie de MMO pedagógico.

Também queria saber o que você achou dessa polêmica em volta do jogo e dos alunos da UFPR se mobilizando para proibir a distribuição do jogo. Falando sério, me pareceu uma versão chinfrim da igreja batista de Westboro. GOD HATES EDUCATION - Job 13:5. Afinal, que nem aquele pessoal fanático, esses tais alunos jamais vieram conversar comigo. Nenhum mandou uma mensagem dizendo: "Olha, que tal mudar isso e aquilo?", "Que tal conversar sobre esse ou aquele detalhe?", "Vamos discutir isso aí?". Foi só na base do "Não gosto, portanto não deve existir". Vamos gritar, processar, ofender. Fanatismo, não democracia.

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Afinal, Pedro, não sou um sabe-tudo. Erro de monte. É óbvio que estou disposto a mudar qualquer coisa que eu produzo. Só assim que a gente melhora. É só vir conversar que a gente se entende. O que me deixa mais chateado é acharem certo enterrar um elemento fundamental da nossa história. Esconder dos alunos, disfarçar. E isso é muito triste e profundamente preconceituoso. Não sei se você sabe, mas o Rui Barbosa mandou queimar uma enorme quantidade de registros sobre a escravidão no Brasil. Queria apagá-la de nossa história. Um novo ruibarbosismo, é isso o que eu vejo. [N. do E.: Essa história não foi bem assim, não.]

Meus jogos, quando estavam online, ficavam hospedados na Nova Zelândia. Nenhum jamais ficou hospedado no site da Patola. Tudo no Patola era de graça, e já tinha que pagar para manter o site no ar. Não ia pagar pelos downloads dos arquivos. Eu disse tudo isso, porque eu acharia muito interessante saber como iriam conseguir processar o Kim Dotcom e obrigá-lo a remover os arquivos. Cara, ia ser divertido. Você sabe que os Estados Unidos já tentaram com a história do Megaupload– e não se deram muito bem. Mas, ora bolas, com certeza o pessoal que se mobiliza contra meu jogo teria sucesso. Eles são feras!

Desde que fiquei sabendo dessa recepção do jogo, você tirou o site do PatolaGames do ar e colocou apenas dois links lá na home do site. Quer falar um pouco sobre por que escolheu esses links em especial?
Primeiro, queria dizer que todos os jogos estavam lá para download gratuito, já há dois anos. Aliás, ficaram dois anos no ar, com um botão de doação, e recebi apenas uma doação feita nos últimos dias. Mas não tem problema: o objetivo sempre foi educacional. Mas, se é pra deixar algo gratuito, e ficar sendo atacado por isso, melhor tirar do ar. Eu não tenho vocação para ser que nem aqueles monges do Monty Python.

Sobre os links. Putz, eu não gostaria de explicá-los, não. Vai que tem algum aluno que não está conseguindo passar nas disciplinas de História: não sou eu que vai impedir que aprendam alguma coisa. Além disso, minha filha já é grande, e não ando mais com canetinhas coloridas para ensinar a esse pessoal os terrores que a intolerância promoveu na história.

E eu? Eu não sou besta pra tirar onda de herói. Sou vacinado.

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