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Salvando o Sudão do Sul

A Vida Debaixo das Árvores

Entramos em Akobo, quartel-general da guerrilha que há três anos rachou o Sudão ao meio.

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Riek Machar bate papo por um telefone via satélite perto de Akobo, Sudão do Sul. Todas as fotos por Tim Freccia.

Conseguimos chegar em Akobo, quartel-general da nova rebelião nuer, na ponta leste do Sudão do Sul, na margem diretamente oposta ao rio que faz fronteira com a Etiópia. É parte da área que o ex-vice-presidente Riek Machar, deposto sob acusação de complô, certa vez controlou – um triângulo que se estendia até Bor e Bentiu, no norte, e até Malakal, no Nilo. Desde que saímos de Waat em nosso veículo roubado, enchemos o saco de nossos anfitriões, atracamo-nos uns com os outros durante os 260 quilômetros esburacados, caçamos comida, trocamos piadas e destruímos o laptop de Tim, nosso fotógrafo. Estamos em Akobo há apenas um dia, e nossos anfitriões estão ansiosos para que conheçamos Machar, o líder da insurgência.

Pulamos para dentro da caçamba de mais uma picape Toyota maltratada e ensopada de sangue, e andamos uma distância curta de carro até a linha de pouso. À frente, debaixo das sombras das árvores e formada pela luz crua, a silhueta de uma grande assembleia.

Machar e sua esposa, Angelina Teny, estão sentados lado a lado, coordenando a reunião. Eles estão vestindo uniformes verdes de exército similares e prensados a vapor: uma indumentária típica da guerra na mata africana num cenário típico de guerra na mata africana. Eles estão casados há 33 anos.

O líder da insurgência segura um notebook em uma mão e na outra, uma vara de madeira ornamentada que poderia ser facilmente confundida com uma bengala chique. Sua ponta arredondada de marfim está decorada com pequenos alvos negros. Esse é o famoso dang, um tipo de varinha mágica que foi supostamente empunhada pelo profeta nuer Nguendeng Bong na virada do século XIX. Bong é reverenciado na região, tanto por sua resistência feroz às forças anglo-egípcias quanto por suas profecias admonitórias.

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Muitos aqui acreditam que Bong previu a ruptura violenta do Sudão, que, segundo ele, seria então seguida pela ascensão de um homem barbado – o presidente Kiir, segundo alguns –, que seria afastado por um nuer canhoto não-escarificado, o que bate com a descrição de Machar. Reza a lenda que o poder do profeta estava muito ligado ao dang. Ele costumava invocar sua divindade levantando o bastão para o céu, repelindo seus inimigos (na maioria, tropas coloniais britânicas e seus representantes) ou simplesmente fazendo com que caíssem mortos.

Uma vez que os britânicos finalmente colocaram as mãos em Bong, confiscaram sua vara espiritual por medo de que fosse ela a responsável por torná-lo um oponente tão formidável. Foi enviada ao Reino Unido e não seria devolvida ao Sudão – às mãos de Machar – por mais de 80 anos.

À direita do líder estão os chefes supremos com suas faixas; à sua esquerda, soldados e guarda-costas sentados de cócoras com metralhadoras PK novinhas em folha e pentes de projéteis de latão. Ele interrompe a si mesmo para atender um telefonema. Um ajudante gira sua cadeira, posicionando-o para longe dos olhos intrometidos da audiência.

Mandam que fiquemos quietos, e então Machar dispensa seus guarda-costas. Há pessoas demais ao redor. Um ajudante está visivelmente agitado por Tim estar tirando fotos e filmando. Essa é uma ligação privada. Não deveria ser documentada. O líder insurgente faz sinal com as mãos para seu funcionário ir embora e diz: “Deixe-os tirarem fotos.”

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Enquanto Machar fala ao telefone, sento com sua esposa e começo a jogar conversa fora. A maior parte dela é sobre a guerra civil. A ameaça disso por aqui é constante. “Fugimos de pijama”, ela conta, explicando seus uniformes. “Então vestimos isso.”

Apesar de seu corte de cabelo severo e de seu uniforme masculino grande demais, Teny fala mansamente e é maternal. Suas raízes estão mais ligadas a uma Londres urbana do que ao mato, e ter passado as últimas três décadas com Machar afiou a atitude diplomática inerente a ela. Ela está profundamente chateada com o assassinato de sua equipe doméstica e de seus amigos pela milícia de Kiir, presidente do Sudão do Sul, em 15 de dezembro de 2013.

“Algo suspeito aqui”, ela continua, falando da resposta brutal e quase instantânea do presidente àcrescente discordância entre a chefia dele. Teny acredita que as forças leais a Machar teriam derrotado os recrutas de Kiir se não fosse pelas milhares de tropas ungandenses, aviões e tanques, que forçaram os rebeldes nuer a saírem das cidades de Bor, Malakal e Bentiu. Ela defende que seria impossível para eles lançarem tal operação nos três dias necessários para as linhas de frente literalmente chegarem ao quintal dela e ao de seu marido. Tudo lhe parecia muito premeditado: “O governo está usando as pessoas para matar. Elas eram paradas nas ruas e mortas, porque não falam dinka… Quem atirou nessas pessoas não falava nuer.”

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Um grupo de soldados desertores do SPLA leais a Machar.

Machar resume a posição atual deles de forma mais sucinta: “É um sufoco.”

Seu primeiro nome, Riek, significa “encrenca”, e Machar é tudo, menos o feroz guerreiro tradicional, marcado por cicatrizes tribais nuer. Ele certa vez até tentou banir a escarificação, mas foi recusado por locais que citaram sua educação estrangeira, suas hábeis manobras políticas e a mudança de alianças como tendo pouca ligação com a estrutura tribal tradicional. Sua elocução lenta e cortês força seus ouvintes – especialmente os ocidentais e os jornalistas – a inclinarem-se enquanto ele fala. Seu sorriso com espaço entre os dentes é contagiante, não exatamente a aparência estereotípica de um rebelde guerrilheiro endurecido de longa data.

Sua personalidade é muito diferente da carranca negra copiada pelos líderes nuer e dinka, como Kiir. Nos dias de hoje, o antigo vice-presidente do Sudão do Sul pode geralmente ser encontrado sentado – ou, mais especificamente, esparramado numa cadeira – enquanto fala mansamente num de seus muitos telefones via satélite, brincando com seu bastão de marfim, ou largado em algum lugar tirando uma soneca. Em pessoa, ele fica contente de jogar conversa pro ar e iniciar uma explicação longa sobre um assunto de acordo com seu temperamento. Este é o Machar público. O político.

Mas sua afabilidade não me distrai do fato de que Machar está escondido aqui na mata por que ele efetivamente declarou guerra contra seu antigo patrão e governo. E possivelmente haverá repercussões fatais aos envolvidos.

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Ele obteve sucesso, tendo domínio de três papéis: o de político ocidental, o de líder tribal e o de guerreiro místico. Ele é um mestre da tradição nuer de encontros tribais nos quais a cada participante é permitido oferecer seu ponto de vista e falar por tanto tempo quanto quiser. Muitos idosos nuer também seguem uma linha de raciocínio mística, acreditando que assuntos importantes de governo e guerra são profetizados e podem ser resolvidos por meio de uma limpeza espiritual. Machar constantemente anda numa linha contraditória que confunde o pragmatismo ocidental com as tradições espirituais dos muitos tribais analfabetos que lutam sob seu comando.

Riek Machar Teny Dhurgon nasceu como a criança de número 26 de uma família nuer proeminente em 27 de julho de 1952 em Leer, Jonglei. De acordo com Machar, seu avô, Dhurgon, era um místico: um curandeiro que canalizava espíritos. Seu pai era um subchefe que fez três dúzias de filhos em cinco esposas. Machar me diz que sua mãe, Nya-gu-Nyang, fez questão de que ele fosse batizado e de que aprendesse a ler e escrever desde tenra idade. Ela também insistiu que ele se abstivesse do gaar, a tradicional escarificação facial pela qual muitos jovens nuer mal podem esperar. (Uma criança nuer senta silenciosamente enquanto um idoso com uma navalha cuidadosamente faz seis cortes horizontais profundos pela carne de seu crânio. As cicatrizes levam meses para sarar e ao longo dos anos passam de um rosa brilhante para preto, marcando para sempre o recipiente como membro da tribo). A mãe de Machar estava relacionada ao líder da rebelião Anyanya e fabricava cerveja como uma fonte de renda adicional, o que lhe rendeu dinheiro suficiente para mandar o irmão dele estudar na Etiópia sob a ajuda de líderes rebeldes. Ela mandou Machar para a Escola Intermediária de Atar, perto de Leer. Entre seus professores estava o pai de sua futura esposa, Angelina Teny. Formou-se na Escola Secundária Rumbek, estudando com colegas de classe que depois se tornariam influentes na conquista da independência do Sudão do Sul.

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Aos 16 anos Machar foi enviado ao norte, a Omdurman, para continuar com sua educação. Em 1972, depois da assinatura do Tratado de Addis Abeba, que pôs um fim à Primeira Guerra Civil Sudanesa, fez parte de um grupo de elite de cem sulistas que foram aceitos na Universidade de Cartum. Ele gostava de aprender engenharia mecânica e de liderar grupos políticos sulistas de esquerda, com nomes como a Fronte Nacionalista Africana.

O futuro líder do SPLM/A, John Garang, logo ouviu falar do eloquente jovem Machar. Dinka e um marxista fervoroso, Garang veio de um passado de dificuldades. Ele também era célebre por ser brilhante e foi selecionado para frequentar o mesmo ensino médio na Tanzânia onde Paul Kagame, de Ruanda, e Yoweri Museveni, de Uganda, foram educados como futuros líderes africanos.

Garang havia se juntado ao exército sudanês e começou a mostrar-se uma promessa. Ele ganhou uma bolsa de estudos da Grinnell College, em Iowa, e retornou para se juntar ao grupo rebelde Anyanya. Em 1970, foi enviado a Israel para receber treinamento militar. Depois do tratado de paz de 1972, foi selecionado, dois anos depois, para frequentar a School of the Americas, em Fort Benning, na Geórgia, um programa controverso conhecido coloquialmente como “a Escola de Assassinos”, devido ao seu treinamento intenso decontrainsurgência. Ele então subiu nos ranques do exército sudanês até 16 de maio de 1983, quando seus comandantes o mandaram reprimir um motim de tropas perto de sua cidade natal, Bor. Em vez de fazer aquilo que foi mandado, Garang se juntou às forças rebeldes, dando início ao SPLA e à Segunda Guerra Civil Sudanesa.

Depois da faculdade, a vida de Machar também foi bem-sucedida. Enquanto seu país desmoronava, ele frequentava a faculdade em Northern England. Conseguiu atrair uma das mulheres mais espertas, inteligentes e bem-conectadas da área onde morava: Angelina Teny. O pai dela insistiu que sua filha de 18 anos casasse na igreja e também exigiu que Machar pagasse o dote tradicional de 150 vacas. E havia uma outra exigência: o pai de Angelina queria que ele casasse apenas uma vez. Eles se casaram em 1981, cimentando sua reputação como um poderoso casal político, ideológico e educado no Ocidente. Em 1984, Machar tinha um PhD em planejamento estratégico de negócios novinho em folha da Universidade de Bradford, no Reino Unido. Enfrentando a decisão de arrumar um emprego ou participar de uma nova revolução, decidiu se juntar ao SPLA e assumir seu escritório em Addis Abeba, na Etiópia.

Riek Machar decidiu salvar o Sudão do Sul.

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Traduzido por: Julia Barreiro