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Tecnologia

Entrevista: Amber Case

A Amber Case é o Sócrates do Mundo Digital

A Amber Case é tipo o Sócrates dos nativos digitais. Ela se declara uma antropóloga ciborgue, o que em linguagem humana significa que ela estuda a relação entre homem e máquina.

Hoje em dia, a maioria das pessoas anda com um pequeno computador no bolso, e pode acessar seus e-mails, falar com amigos e curtir os últimos memes em qualquer lugar. Por causa disso, Case nos considera ciborgues low-tech, emocionalmente ligados à nossa tecnologia e redes digitais, querendo ou não.

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Em nossas vidas modernas interagimos com humanos e não humanos, usando um como interface para se conectar ao outro. Tente passar um dia inteiro sem entrar no Twitter, ou no Facebook, ou sem mesmo ligar o computador. É muito difícil. Como uma antropóloga ciborgue, Case quer entender essa relação e como ela nos define, a nossa cultura e como vai evoluir. Estamos, para usar a terminologia da Case, imersos num “útero tecnossocial” capaz de acessar instantaneamente entretenimento ou nossos amigos através de celulares e outros aparelhos.

Para ajudar a entender toda essa complexidade, Case escreveu um livro chamado An Illustrated Dictionary of Cyborg Anthroppolgy, assim gente besta como eu pode ver bonitas imagens e tentar lidar com os conceitos que ela pesca no futuro e traz até a gente.

Aqui está o que ela nos disse sobre para onde estamos indo, bullying com realidade aumentada, avatares dos nossos falecidos pais, enterros para gravadores e seus ciborgues favoritos da ficção.

VICE: Qual será o pior cenário possível se nossas ferramentas digitais consumirem nossas vidas e perdermos nossa habilidade de autorreflexão — ou, pelo menos, a capacidade de ficar 10 minutos sem  checar o Facebook ou o celular?
Amber Case: Não importa em que era da história nós vivemos, sempre vai ter gente que não tira um tempo pra autorreflexão ou para construir coisas. Algumas pessoas gostam de consumir, e uma porcentagem bem pequena gosta de criar. Acho que o pior cenário possível seria se as pessoas empenhadas em criar, as pessoas naturalmente propensas a isso, ficassem viciadas em consumir infinitamente, porque consumir ficou muito mais fácil que criar. Me vejo caindo nessa armadilha facilmente.

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Como?
A maior parte do meu dia agora é consumir. Sou viciada nas interfaces e não vejo mais um computador como 100% ferramenta, e sim como uma maneira de suprir o vício. Clicando repetidamente num botão para checar o e-mail. Repetidamente acessando o Hackers News, o Reddit e o Twitter para ver se há comentários ou respostas. E se novos itens apareceram, não os respondo, só clico de novo e de novo.

É, ficar clicando nas coisas assim é mesmo preocupante.
A psicologia de se checar persistentemente o e-mail é chamada “reforço intermitente”. Isso saiu dos experimentos skinnerianos que descobriram que ratos que ganham recompensas irregulares apertando um botão de comida estão mais propensos a apertar o botão compulsivamente.

Você se refere a B.F. Skinner, que estudou padrões comportamentais das coisas vivas, certo? E você tem razão, clicar é bem parecido com ficar apertando um botão de comida. Somos essencialmente ratos humanos famintos por petiscos digitais.
Se todos seus e-mails chegassem à sua caixa de entrada uma vez por dia, você acabaria checando isso só uma vez por dia. Mas não, um e-mail pode aparecer a qualquer hora, dia ou noite. Esse reforço intermitente causa um aumento no vício em informação, já que as pessoas ficam checando o e-mail e as redes sociais com mais frequência.

Nós criamos um monstro.
Os jogos também podem conter loops compulsivos em torno dos personagens virtuais com ações intermitentes e efeitos. A estrutura e obrigações do Farmville são muito similares às do Tamagotchi. Muitas mecânicas envolvendo animais necessitados, plantações e lotes de terreno.

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Ficamos preguiçosos com o que consumimos, felizes em mastigar qualquer Big Mac figurativo (Bit Mac?) só pra ficar com fome logo depois.
A promessa do fast food é que requer um esforço e tempo mínimos para pedir, receber e consumir. Ao invés de confrontar a informação, vamos lá e apenas a pegamos. Os humanos têm um estômago que diz quando a pessoa está satisfeita, mas o cérebro não desenvolveu essa sensação. É preciso estar consciente disso e do efeito que isso tem nos processos mentais. Evoluímos para ter um estômago que avisa quando está cheio, mas nosso cérebro não tem uma maneira boa de nos avisar quando nos empanturramos de informação.

É como se fosse Natal, mas todo dia, e com informação. E agora nossos aparelhos eletrônicos são maiores por dentro que por fora.
Como a bolsa da Mary Poppins. Artefatos digitais que não tomam nenhum espaço físico. Isso permite que as pessoas adicionem mais e mais informação num hard drive, servidor ou aparelho sem que fique pesado. Demora muito menos tempo para capturar um trecho de informação e armazená-lo do que para colocá-lo pra fora, seja imprimindo, trocando, revisando etc. Isso faz a acumulação digital ser um fenômeno cada vez mais comum.

Me deparei com o termo “computação afetiva” no seu livro novo (a versão online), que apresenta a ideia de como armazenar abraços num travesseiro. É isso que devemos procurar no futuro?
O que estamos vendo efetivamente é que tudo está a um botão de distância. Somos móveis e precisamos de informação na hora. No útero das nossas mães, tudo vem até nós sem que a gente precise fazer nada. É a mesma coisa com os smartphones. Mesmo se nos movemos no tempo e no espaço, podemos acessar cada vez mais nossa consciência social e de entretenimento através de um único aparelho.

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A tecnologia está nos sufocando com sua onipresença.
Nossos aparelhos e nosso ambiente se tornaram um tipo de útero tecnossocial. Os algoritmos do Facebook lutam para manter a informação mostrada relevante, e, se não tão relevante, interessante o suficiente para navegarmos por ela. O Twitter, basicamente, define novos usuários como padrão “socialmente não-participantes” até eles adicionarem conteúdo para continuar. Quando eles encontram algo que não gostam, eles estão livres para deixar isso de lado.

Você acha que formaremos laços afetivos com a tecnologia que poderão rivalizar com, digamos, os animais de estimação?
Conheço pessoas que são muito ligadas aos seus Roombas e que os tratam como bichinhos de estimação. O professor Sherry Turkle tem uma coleção muito interessante de ensaios sobre isso chamada The Inner History of Devices (A História Interna dos Aparelhos). A coleção fala sobre celulares como representantes de relações à longa distância.

E quanto aos seus laços com a tecnologia?
Quando eu tinha seis anos meu gravador quebrou, então fiz um enterro pra ele no quintal. Conheci a morte de um aparelho eletrônico antes de entender que uma forma orgânica também podia morrer. Tive roedores que morreram, mas fiquei muito mais triste com o gravador. Ficava com aquilo o dia inteiro. Era minha máquina do tempo para guardar memórias do meu eu passado para o meu eu futuro. Quando ele quebrou, eu não tinha mais aquele superpoder. Minha máquina do tempo tinha quebrado. Uma parte de mim se perdeu. Ainda tenho as fitas.

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Display de vestir

E aquela sua ideia de extensão do eu: nossos perfis online e como a tecnologia afeta nossa psicologia, quer a gente ache isso ou não? Se alguém falar alguma coisa ruim sobre esse post, vou ficar muito chateado.
Quando alguém entra num veículo, sua percepção do eu automaticamente se estende até os limites do veículo. Os limites do veículo são uma extensão do eu.

Dá mesma maneira que uma pessoa tem a habilidade de perceber os limites do veículo como o limite do seu próprio eu, o modo online estende a percepção do eu. Comentar ou “curtir” o post de alguém no Facebook provavelmente estimula as terminações nervosas de satisfação.

O que você acha sobre transhumanismo e a ideia de que nos tornaremos entidades completamente digitalizadas?
Tem um podcast muito legal sobre uma mulher de 40 anos cujos pais se mudaram pra sua casa e a azucrinam o tempo todo. Isso talvez nem seria tão ruim, exceto que os pais eram divorciados e estão mortos, e os dois baixaram suas consciências em um avatar que se move. Esse avatar não faz nada além de sair à noite e ir a festas com outras pessoas mortas de 80 anos.

Naturalmente.
Mas o pai e a mãe não podem viver no mesmo avatar ao mesmo tempo. Eles têm um situação de “partilha de tempo” onde fizeram um acordo em que a mãe fica no avatar por 14 horas por dia, e o pai fica com as 10 horas restantes. No meio do dia eles trocam. Então ao invés de uma filha de 40 anos morando com seus pais que vão dormir à noite, ela tem seus pais vivendo 24 horas por dia, indo a festas e falando mal um do outro. É um programa muito legal.

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Foto por Mark Colman

Como você acha que a realidade aumentada (o virtual se estendendo para o físico) vai amadurecer nesses próximos anos?
Quando você pensa em novas tecnologias, é sempre útil imaginar como será crescer com elas. Por exemplo, seria interessante ver as novas formas de bullying que virão com a realidade aumentada. Imagine todas as piadas cruéis que as crianças farão umas com as outras através de papéis com “Me Chute” colados nas costas dos outros que só certo grupo de amigos pode ver?

Nunca pensei nisso dessa maneira. Bullying AR, taí uma coisa sombria.
Já há muito bullying de realidade aumentada no Foursquare. Muitas meninas usam isso para deixar recados malvados como dicas nos lugares onde os amigos ou inimigos costumam ir. Quando o alvo faz o check-in no local, ele recebe a mensagem. Ao invés de sofrer bullying na escola, o terror é capaz de flutuar no contexto e atacar invisivelmente o alvo, às vezes sem que os pais nem mesmo entendam, tenham acesso ou saibam como isso funciona.

Meu Deus, a humanidade.
Quando se trata de realidade aumentada, estou muito interessada em realidade aumentada não visual, ou mesmo realidade diminuída. A realidade aumentada que vemos hoje em dia é uma grande merda. É brega pra caramba e cheia de polígonos coloridos pra distrair e demora horas pra baixar. Em alguns casos pode até ser uma coisa legal, como segurar um caixa de Lego na frente de uma webcam e ver o modelo em 3D na loja da Lego. Mas a maior parte da realidade aumentada só serve pra interromper e confundir a realidade ao invés de adicionar algum valor. Geralmente isso fica no caminho ao invés de informar. E isso me deixa muito puta. Vamos ter que superar essa era de realidade aumentada de merda antes de chegarmos às coisas realmente boas. A informação invisível útil que adicione uma coisa interessante de verdade à nossa vida.

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O EyePhone de Steve Mann

Realmente é uma coisa bem vazia.
30 anos atrás, o pioneiro da computação de vestir Steve Mann começou a minimizar telas de televisão para poder anexá-las aos óculos e aumentar a realidade com elas.

Mann provou que não é preciso um mundo 3D para se ter utilidade contextual e informação útil. Se você vai construir algum aplicativo de realidade aumentada, é bom ler o trabalho de Mann. Porque realidade aumentada não tem nada a ver com uma merda de conceito pop da propaganda do mês — tem a ver com pessoas usando um display na cabeça que reconhece propagandas ao redor e as apaga da visão.

Tem a ver com usar esse display durante anos e criar designs para fazer esses sistemas serem confortáveis na nossa vida diária. Não tem nada a ver com algum truque barato com os polígonos toscos vomitados de um código QR que alguma mesa redonda de uma agência imbecil resolveu fazer porque leu que era legal em alguma revista da indústria.

Qual o seu ciborgue favorito da ficção?
O coletivo Borg do Star Trek. Quando você vê esse pessoal na tela pela primeira vez é muito épico! Eles provavelmente são os melhores ciborgues da ficção. Tem o Exterminador também, claro. E o Robocop. Mas os Borg realmente levam a taça. O que é mais engraçado é que os Borg parecem ter sido inspirados no grupo de Borgs do Steve Mann do Laboratório de Mídia do MIT (é assim que eles chamavam os estudantes e os pesquisadores do grupo lá). Para todos os efeitos, a tecnologia de Mann veio antes de Star Trek, o que significa que os Borg não são tão ficcionais assim.