As Feministas Radicais do Paquistão Estão Combatendo a Violência com Ativismo e Arte

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As Feministas Radicais do Paquistão Estão Combatendo a Violência com Ativismo e Arte

Por quase uma década, a ativista dos direitos humanos Sabeen Mahmud era peça central de uma florescente contracultura em Karachi, Paquistão. Ao abrir em 2007 as portas do espaço comunitário T2F(antes conhecido como Second Floor), ela providenciou um lugar para mulheres e homens desdobrarem seus lados criativos independentemente de sua renda, classe ou idade. Mas, na noite de sexta-feira, 24 de abril, Sabeen foi brutalmente silenciada. Depois de apresentar um seminário com a ativista política de Baluch, Mama Quadeer, ela foi morta a tiros na rua do lado de fora do T2F por dois atiradores não identificados. Mahenaz Mahmud, a mãe de Sabeen, estava com ela naquela noite, mas sobreviveu ao ataque com ferimentos leves.

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Eu originalmente viajei a Karachi para visitar amigos e documentar a cena de música underground de lá. No entanto, a primeira vez que, no meio de abril, botei os pés na sala de conferência do T2F e vi Sabeen cercada de associadas femininas – e todas pareciam captar cada palavra sua –, naquele momento eu percebi sobre o que seria a minha matéria: as mulheres que fazem arte alternativa ser publicamente acessível e a liberdade de expressão ser possível no Paquistão. Na verdade, parecia que muito da cultura underground foi feita possível por causa dos esforços de Sabeen Mahmud.

T2F café.

T2F é situado em um lugar bem ocupado do bairro de Karachi, o Defence Housing Authorities Phase-II. Nos oito anos desde que o T2F abriu as portas, ele abrigou cerca de 100 eventos anualmente, incluindo a primeira hackatona civil do Paquistão em abril de 2013. Conversando com Sabeen no café naquela tarde, eu avistei um grupo de garotas estudantes de arte tomando smoothies verdes e um homem de meia-idade vasculhando pilhas de jornais internacionais e zines feministas nas prateleiras. Unidades de ar-condicionado faziam seu zumbido sobre a conversa em inglês e urdu. Na parede, um pôster de uma placa de trânsito dizia "Sempre se mantenha à esquerda".

Sabeen raramente saía de sua posição-assinatura de braços cruzados enquanto falava ansiosamente com as colegas Sana Nasir e Reem Khurshid. "Em geral, nossa população é bem apática politicamente", ela dizia, carrancuda. "Estivemos sob poder militar a maior parte da nossa história e nós ainda não conseguimos reconstruir os movimentos democráticos – por várias razões. Existe uma desconfiança geral da democracia." Reem concordou, acrescentando: "A instabilidade que surge de viver aqui contribui com a comprovação da disposição geral das pessoas. Mas, apesar disso, eles têm o desenho e a vontade de serem criativos". Enquanto elas falavam, eu comecei a pensar na camiseta que tinha visto Sabeer usar em uma foto publicada na internet na qual se lia: "Eu penso, logo sou um perigo".

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Alguns dias depois, eu voltei à T2F e encontrei Sabeen falando ao telefone. "Eu não ligo se é o ISI, ou quem quer que seja, que esteja nos ameaçando. Eu realmente não ligo."

Não foi a primeira vez que T2F tinha sido advertido pelo ISI (o serviço de inteligência paquistanês) para cancelar um encontro. Mas dessa vez foi diferente. No Facebook, uma descrição do evento dizia "Unsilencing Balochistan: Take 2. Uma conversa entre os ativistas de Baloch, Mama Qadeer, Farzana Baloch, Mir Mohammad Ali Talpur, Wusat Ullah Khan e Malik Siraj Akbar". O painel foi desenhado para levantar a discussão sobre as pessoas desaparecidas de Baloch, uma referência às supostas centenas de pessoas da província vizinha do Balochistão que "desapareceram", provavelmente graças a um ato forçoso nas mãos da segurança paquistanesa e das agencias de aplicação da lei. Era – e ainda é – um tópico político muito sensível nas províncias de Sindh e Punjab. O mesmo painel com Qadeer foi forçosamente cancelado em Lahore algumas semanas antes de o evento ser remarcado em Karachi. O cancelamento provocou revolta nas mídias sociais, e Sabeen decidiu correr o risco de marcar o evento ela mesma.

Na sexta-feira, 24 de abril, o painel aconteceu como planejado. Algumas horas depois de Mama Qadeer e centenas de curiosos deixarem o T2F, dois atiradores não identificados abordaram Sabeen e sua mãe enquanto elas saíam da construção. Eles abriram fogo. Sabeen sofreu danos fatais após levar cinco tiros e morreu a caminho do hospital.

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Mahenaz Mahmudday, a mãe de Sabeen, depois da cerimônia por sua filha.

Um dia após seu assassinato, o corpo de Sabeen descansava pacificamente em seu caixão no T2F. Ela foi cercada por centenas de amigos, parentes, colegas, artistas, jornalistas e representantes de embaixadas que tomavam as ruas do lado de fora do espaço comunal. Depois da cerimônia, eu localizei a mãe de Sabeen, Mahenaz, sentada em uma cadeira perto da entrada. Ela falava calmamente com a amiga próxima de Sabeen, Marvi Mahzahr. Uma mulher checava seu ferimento e desfazia as ataduras em volta de seu braço para revelar uma ferida de tiro. Mahenaz parecia inabalada pela dor; enquanto isso, Marvi me chamava. "Você foi a última pessoa a fotografar Sabeen", ela me disse.

O corpo de Sabeen sendo levado até o enterro.

Agora, apesar de sua líder ter nos deixado, o T2F não vai deixar de existir. Longe disso. "Karachi ainda precisa de T2F", me enfatizou a designer gráfica do espaço comunitário, Sana Nasir. "Nós precisamos dele como nosso abrigo, imaculado de agendas pessoais e lucros monetários. Nós precisamos desse espaço comunitário inclusivo que faz a ponte entre pessoas de várias classes sociais. Nós precisamos que essa comunidade cresça e explore várias disciplinas, e não parar em um canto."

Pessoas de luto após o funeral de Sabeen.

Por mais que Karachi precise de T2F, esse lugar também precisa das pessoas de Karachi.

Durante meu mês na cidade altamente populosa, eu comecei a procurar outras mulheres importantes que representassem o futuro da comunidade que Sabeen construiu e o futuro da independência criativa e da liberdade de expressão.

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Estas são as mulheres que eu conheci:

PRESERVANDO A HERANÇA HISTÓRICA: MARVI MAHZAHR

"Eu conheci Sabeen no festival Arts Council of Karachi três anos atrás. É claro, como a maioria das coisas no Paquistão, não começou na hora. Eu me lembro de ela gritar para alguém: 'Você disse que ia começar 8h30! E agora já são 9h30, e meu tempo é muito precioso!'."

A mãe de Marvi, uma ginecologista que virou política, morreu após ser baleada em 1992. Ela trabalhava muito próxima da primeira-ministra do Paquistão, Benazir Bhutto, a primeira e até agora única primeira ministra do país. Bhutto virou um ícone de liderança para o feminismo paquistanês depois de sua primeira eleição, mas foi assassinada em 2007. Sobre seu próprio ativismo, Marvi diz ter vindo de sua mãe. "Por causa de nossa mãe, minhas irmãs e eu somos todas mulheres fortes", ela frisa. Como uma arquiteta mulher, ela explica, "passar sua ideia em conceito é sempre uma luta, e você sempre está sozinha nessa. Mas mulheres também têm sua própria vantagem aqui, eu devo dizer – você consegue as coisas do seu jeito, eventualmente".

DESIGNER GRÁFICA E ILUSTRADORA DO T2F: SANA NASIR

"Eu ajudei a começar uma organização baseada no design quando ainda estava na faculdade. Nosso objetivo era criar exposições de pôsteres e dar 100% dos lucros para a caridade", relata Sana. "Nossa primeira exposição foi baseada na revolta de Gaza, mas quase ninguém estava disposto a nos dar lugar para expor. Um amigo me disse que ele achou um espaço novo e incomum [T2F] e que seu dono estava disposto a usá-lo sem custo nenhum. Foi a primeira vez que conheci Sabeen."

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Sana se sente como todos ao redor dela: "Preciso de um plano de escape agora". É o contrário de cinco anos atrás, quando as pessoas eram "mais patrióticas e tinha menos influência do Talibã no país". A vida se tornou desencorajadora, ela destaca, "especialmente quando as pessoas morrem. O quanto você pode fazer de verdade quando seu inimigo tem armas e você só tem a sua voz?".

Dentro de todo esse desencorajamento que a cidade projeta, no entanto, Sana ainda é otimista sobre o futuro de Karachi. "Eu quero ver esse lugar ficar melhor", ela sonha. "Eu sei que é possível, mas as coisas podem piorar antes de melhorarem."

ILUSTRADORA: SAMYA ARIF

"Na primeira vez que encontrei Sabeen, ela foi muito amigável, com um humor contagiante e um sorriso torto", Samya me conta. "Em uma cidade onde há falta de orientadores, eu sabia que ela iria se tornar uma das minhas pessoas preferidas."

No andar de baixo, em seu quarto, Samya puxa alguns largos esboços e pinturas para a luz da janela. Ela, sem pestanejar, enrola um baseado e me mostra uma série de desenhos de uma mulher grande de seu portfólio. "Fiz essas de umas fotos que tirei de uma amiga minha na praia. Ela estava quase nua. E, você sabe, você não deve mostrar nenhuma pele enquanto mulher por aqui. Estes homens, esses caras religiosos, estavam andando na praia em nossa direção. Eu tive de escondê-la atrás do meu xale e de uma grande pedra na água. Imagine se eles tivessem visto alguma pele feminina: uma perna nua!"

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Samya afirma que seus pais ainda lhe perguntam "Aonde você está indo?" e "Quanto tempo você vai ficar fora?". E isso a deixa frustrada. "Ter 29 anos de idade e ainda ter de responder essas perguntas é ridículo."

ESTUDANTE DE CLÁSSICOS DO ORIENTE: ZEERAK AHMED

Zeerak é, além de uma performer (gravando sob o nome Slow Spin), uma estudante de música clássica oriental e está na escola pelos últimos dez anos. Quando pedem para ela falar mais sobre seu conhecimento na área, ela é modesta em suas palavras. "É uma relação para a vida inteira", ela diz. "Dez anos de estudos é essencialmente nada. Eu não estou confortável em dizer que sou uma 'cantora clássica' ainda." Ela sorri ao se lembrar de seu primeiro show no T2F. "Eu e minha melhor amiga tínhamos um interesse crescente em sátira social, arte urbana e conteúdo psicodélico", ela relembra, "e, um dia, nos encontramos na casa de Sabeen. Foi a primeira vez que sentimos que os adultos estavam levando nossas opiniões seriamente."

ARTISTA FEMINISTA: HAMIDA KHATRI

"Minha mãe é meu ídolo", resume Hamida. "Mas meu pai não sabe da minha arte. Se ele a visse, ele ia achar que eu estou completamente louca."

Seu trabalho fala bastante sobre o feminismo, ela considera, "e das lutas internas que uma mulher enfrenta em sua vida", particularmente sobre "as questões que são visíveis para quase toda mulher nesse país. Não é muito fácil para mulheres se expressarem aqui, e muitas não são tão privilegiadas quanto as garotas que você conheceu. Elas vêm de famílias em que as garotas não têm permissão de sair de casa".

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Na exposição solo de Hamida na galeria Sanat, em Karachi, em fevereiro, um dos desenhos que ela apresentou mostra a ilustração de uma mulher gritando de dor como se estivesse prestes a cortar seu seio com uma faca de cozinha. "Alguém que eu conheço (uma pessoa bem religiosa) me falou para não mostrá-lo", ela conta. "Mas eu disse: 'OK, eu li o Corão, eu sei o que a minha religião diz, mas, no final das contas, eu preciso de uma voz. Esse é o melhor meio que eu tenho'.".

LUTANDO COM A INDÚSTRIA: SEHER NAVEED

"T2F serviu como um pilar para praticantes que não ganhavam apoio de outras galerias e instituições", diz Seher, abertamente. "Cidades como Karachi precisam de lugares como T2F, onde se tem um discurso aberto, onde alguém é encorajado a dividir suas ideias e pensamentos e conseguir fazer trabalho experimental." Sobre o legado de Sabeen, ela enfatiza: "Nós precisamos de mais e mais pessoas jovens como ela para juntar a nossa cidade como ela o fez".

Seher explica, de forma interessante, como ela se sente confortável em andar sozinha dentro da cidade, mas nem sempre foi assim. "Na escola, sempre éramos forçados a achar caminhos alternativos se não tivéssemos um carro naquele dia", ela afirma. "Então, tinha algo significativo sobre ficar confortável o bastante para sair sozinha sendo uma mulher".

"Quando estava fazendo meu mestrado em artes em Londres, eu fui pressionada pela faculdade a fazer algo político, porque eu era paquistanesa. Eu tenho problema com artistas fazendo trabalho político apenas por fazer trabalho político, apesar de os problemas não os afetarem de maneira nenhuma." Ela também se recusa a seguir "a estrada pavimentada pela indústria da arte paquistanesa", que ela acha comprometida em termos de autoexpressão.

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ESCULTORA: SEEMA NUSRAT

"Quando eu estava estudando fora, eu me sentia perdida", diz Seema. "Eu percebi que todos os meus objetos estavam aqui, em Karachi. Mas eu acho que a experiência de viver longe da minha cidade me deixou mais próxima e observadora de Karachi. Quando eu voltei dos meus estudos, eu vi mudanças drásticas na cidade – uma delas foram essas barricadas que começaram a aparecer na cidade inteira e a virar parte dela. Tem uma segregação de poder lá."

O trabalho de escultura de Seema foca amplamente a função estrutural de um objeto com seu material. Em abril, ela expôs uma instalação ao ar livre no Frere Hall, em Karachi, um antigo palácio para os ingleses no Paquistão da era colonial. Um labirinto de sacos de areia formava a instalação inteira, e o formato não tradicional dos sacos de areia empilhados permitiu ao material subverter sua função política original. "Eu acho que aquelas discussões abertas sobre arte no T2F ajudaram muito na exposição da minha arte", ela comenta.

ARTISTA MULTIMÍDIA: SARA PAGGANWALA

"Tem um tanto de censura à qual nós sucumbimos, tanto mulheres quanto homens", Sara me revela por cima de sua mesa. "E, você sabe, muitas mulheres já são liberadas, mas é um tipo diferente de independência. É estigmatizado." Não que ela deixe isso a impedir. "Quer dizer, o que está te impedindo? É porque um homem é mais forte que você?" Na mesa de trabalho de Sara, há um pequeno objeto giratório projetando luz vermelha e verde através da sala. Olhando de perto, o objeto giratório é, na verdade, uma imagem de Jesus, mas, do outro lado da impressão, ela cobriu a parte de cima do corpo de Jesus com uma burca de plástico. Esculturas feitas de diversos materiais estão penduradas da parede, enquanto seu trabalho em andamento fica armazenado nos cantos da sala. Ela aponta para uma das esculturas mais notáveis: em formato de origami de uma mulher, ela foi feita de dezenas de pedaços geométricos menores.

"Eu queria trabalhar com um material transitório", ela afirma. "Algo que se transformasse com o decorrer do tempo. Eu acho que essa obra se baseia no fato de que estamos geralmente perdendo as conexões verdadeiras com as pessoas. Eu acho que muitas pessoas aqui são muito superficiais."

A MULHER QUE AJUDA VÍTIMAS DE ÁCIDO: MUSARRAT MISBAH

Musarrat começou sua carreira como uma esteticista, e seu primeiro salão de beleza abriu em Lahore, no Paquistão, em 1980. Depois de alguns anos no serviço, suas clientes mulheres começaram a visitá-la não apenas pelo cuidado da beleza, mas para conselhos pessoais. Em 2003, algo mudou. "Eu estava prestes a deixar o escritório quando uma jovem garota em uma burca entrou no meu salão e me pediu ajuda. Debaixo do véu, havia uma mulher sem rosto", Musarrat pausa. "Ela havia perdido um de seus olhos, e, em vez de um nariz, havia um buraco. Alguém havia jogado ácido nela. Logo depois, eu coloquei um anúncio no jornal dizendo: 'Se você é uma vítima de ataque de ácido ou querosene, você pode vir ao meu salão e fazer um exame médico de graça'. Eu organizei para que alguns médicos viessem, e, no próximo dia, 42 garotas apareceram."

Musarrat explica que muitos dos ataques de ácido acontecem quando "o marido está com ciúmes ou suspeita de sua mulher, ou quando uma garota jovem diz 'Eu não quero me casar, eu quero continuar meus estudos', e o homem, então, pensa 'Bom, se ela não pode ser minha, ela não vai ser de mais ninguém'".

"Hoje", ela continua, "quando eu e meu time ficamos sabendo de um ataque de ácido recente a uma mulher paquistanesa, nosso coordenador viaja até lá para entrar em contato com ela. Nós juntamos dinheiro da família, dos amigos e do público em geral para pagar suas contas de hospital, o remédio e as operações necessárias. Até agora, eu tenho 627 garotas que ainda estão comigo. Tem uma garota que virou uma advogada, tem algumas garotas que viraram enfermeiras e 13 de nossas garotas casaram com garotos normais." O que Musarrat faz de verdade, no entanto, apesar de ela não o dizer de uma vez, é ajudar essas mulheres a retomarem o controle sobre suas vidas. Ela as ajuda a redescobrirem seu orgulho.

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