Como o futebol do Haiti quer conquistar o Brasil

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Como o futebol do Haiti quer conquistar o Brasil

A emocionante participação do Pérolas Negras na Copa São Paulo foi só o começo do intercâmbio entre Brasil e Haiti nas peladas.

As modestas instalações da Rua Javari pareciam o Maracanã para os jogadores haitianos do Perles Noires – ou Pérolas Negras, como a equipe ficou conhecida no Brasil. "É um sonho jogar aqui", disse Fenelon Marckenson, 17 anos, meia ofensivo do time, à beira do gramado do estádio do Juventus, no bairro da Mooca, em São Paulo. "Sempre adorei a seleção brasileira. Eles jogam o futebol mais bonito." O Pérolas Negras foi o único time estrangeiro a participar da Copa São Paulo de Futebol Júnior 2016, a famosa competição nacional para aspirantes a jogadores profissionais. Os haitianos estavam animados com o fato de que, naquele mesmo torneio, vários talentos internacionais haviam sido revelados, a exemplo de Falcão, Cafu, Raí, Dida e Neymar. "No Haiti, o Brasil ainda é o país do futebol. Para esses garotos, jogar aqui, em um estádio profissional, com uma galera na torcida, na frente da mídia, é um sonho realizado", disse Rubem Cesar Fernandes, diretor da ONG Viva Rio, responsável pela criação da Academie de Football Perles Noires [Academia de Futebol Pérolas Negras] no subúrbio da capital haitiana, Porto Príncipe, à VICE Sports. "Há muitos jovens brilhantes, garotos e garotas, vivendo em pobreza extrema e situações vulneráveis no Haiti. A falta de moradia é um problema enorme desde o terremoto", explicou Fernandes. "Queremos oferecer oportunidades para esses jovens e evitar o que chamamos no Brasil de nem, nem – jovens que nem estudam, nem trabalham." O envolvimento da Viva Rio com o Haiti começou em 2004, quando a organização foi convidada para participar da "missão de estabilização" das Nações Unidas, liderada por tropas brasileiras. A escolha do grupo aconteceu devido às duas décadas de experiência em driblar a violência urbana em algumas das regiões mais complicadas do Rio de Janeiro, "As Nações Unidas decidiram que a situação do Haiti era bem diferente do que já havia sido enfrentado na África, no Oriente Médio ou em outras partes do mundo, e tinha mais em comum com a situação do Brasil, do Rio de Janeiro em particular, por causa do nível de violência armada localizada", explicou Fernandes. "Era uma situação sem guerra, mas também sem paz, com gangues dominando comunidades pobres e vulneráveis." Quando a Viva Rio começou a pensar em maneiras de criar um legado permanente para o Haiti, o futebol emergiu como a solução mais óbvia. "Eu queria aproveitar a paixão haitiana por futebol. O futebol de rua é uma febre lá. Nos fins de semana, as ruas dos bairros pobres são bloqueadas para as partidas. E você não precisa se esforçar muito para convencer um jovem a jogar futebol", disse Fernandes. A Academie de Football Perles Noires foi instituída em 2010 e hoje conta com quatro gramados e uma academia profissional. A proposta do lugar é oferecer um lugar para morar, treinar e estudar aos jovens jogadores talentosos das regiões mais pobres do Haiti. "Todos os garotos sonham serem jogadores de futebol, e o Perles Noires dá a eles a chance de se aproximar desse sonho", contou a VICE Sports o técnico brasileiro da equipe, Rafael Novaes.

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O sonho do Pérolas Negras de conquistar o título não foi realizado na Copa São Paulo deste ano. Na competição que se estende até a próxima segunda-feira, dia 25, a equipe perdeu os três jogos contra adversários brasileiros e foi eliminado do torneio na fase de grupos. Mas Fenelon Marckenson, produto da Academie que mora hoje no Brasil e que foi liberado temporariamente pelo seu time – o Boa Vista, do Rio de Janeiro – para jogar no Pérolas Negras durante o torneio, segue destemido. "Jogamos bem", declarou à VICE Sports. "Deveríamos ter ganhado o primeiro jogo." O técnico Novaes concordou. "A Copa São Paulo tem um padrão quase profissional", disse ele. "Não tiramos uma vitória, mas jogamos bem em todos os jogos. Surpreendemos todos." E mesmo sem vitórias no gramado, o time pelo menos pareceu conquistar o coração dos fãs brasileiros. "Quase todos os presentes torceram para nós", disse Rubem Cesar Fernandes. Esses sentimentos de afeição são mútuos. "Adoro a comida daqui, arroz, feijão e frango", contou Anel Jean Louis, outro jogador do Pérolas Negras. "As partidas foram difíceis, mas nosso time jogou bem. Vamos continuar treinando para chegar à final em 2017." Seu jogador favorito é o brasileiro Luiz Gustavo – um meia defensivo, assim como ele. Rafael Novaes acredita que a experiência de jogar no torneio tende somente a fortalecer a paixão dos haitianos por futebol. "Os haitianos gostam mais de futebol do que os brasileiros", disse ele à VICE Sports. "Eles não sabem muita coisa sobre os times brasileiros, mas adoram a seleção. Os garotos ficaram bem chateados quando o Brasil perdeu para a Alemanha. Alguns até choraram", acrescentou, referindo-se ao Sete a Um. A paixão pelo futebol brasileiro vem de longa data. "Há muito tempo, existe uma conexão como o futebol brasileiro, desde a Copa do Mundo de 1982", explicou Novaeis. "O Jogo da Paz, em 2004 (quando a seleção de Ronaldinho, Ronaldo e Roberto Carlos jogou um amistoso contra o Haiti em Porto Príncipe), foi muito importante também. Ninguém no Haiti se esquece."

A ideia da partida surgiu quando o governo brasileiro decidiu enviar, em 2004, 1.200 soldados para liderar a invervenção das Nações Unidas no Haiti (na época, atormentado por uma agitação civil violenta que seguiu a destituição do presidente Jean-Bertrand Aristide). O primeiro ministro interino Gérard Latortue disse à mídia que "alguns jogadores de futebol brasileiros poderiam fazer mais pelo desarmamento das milícias do que milhares de tropas pacifistas". O presidente Lula acatou o desafio e organizou uma partida com a seleção no Haiti. "Embora eu tenha jogado pelo Brasil em outras ocasiões, em amistosos e nas Olimpíadas, nunca experimentei sensação como essa. As emoções foram muito fortes… Eu me considero privilegiado por ter participado", disse o meia Roger, um dos jogadores da seleção à época, quando retornou ao Haiti para o aniversário de 10 anos da partida. Hoje as conexões entre os dois países se estendem para muito além do futebol. Cerca de 70 mil imigrantes haitianos vivem hoje no Brasil, segundo o Ministério da Justiça. A onda de migração cresceu depois do terremoto de 2010, que matou centenas de milhares de haitianos e devastou a capital do país. Embora o governo brasileiro costume receber os imigrantes de braços abertos ao oferecer vistos humanitários e conceder moradia a mais de 43 mil haitianos, o processo nem sempre é tranquilo. Em 2013, o Acre, principal ponto de entrada dos haitianos, declarou estado de emergência em duas cidades por causa do vasto número de imigrantes, muitos deles sem documentos, que vinham da fronteira com o Peru. O governo do Acre gerou controvérsia quando expulsou vários haitianos do estado em 2014 e os depositou em São Paulo, a centenas de milhares de quilômetros.

Em agosto de 2015, seis homens haitianos foi alvejado com chumbinho no centro de São Paulo. Segundo testemunhas, o atirador gritou "Haitianos roubam os trabalhos dos brasileiros" depois de puxar o gatilho. A Viva Rio administra um projeto de apoio para imigrantes haitianos chamado Haiti Aqui, que oferece assistência legal e administrativa, cursos e informativos de emprego, além de transmitir um programa de rádio, "A Voz do Haiti". Agora, a Academie de Football Perles Noires planeja trazer mais jogadores de futebol para o Brasil. "O próximo passo é abrir um time no Brasil, onde os jogadores possam atuar depois de se formar na Academie", explicou Rubem Cesar Fernandes. Isso lhes dará acesso ao esporte profissional e dará continuidade ao projeto." Graças ao Pérolas Negras, jovens como Fenelon Marckenson e Anel Jean Louis têm chances de realizar seus sonhos e oferecer ao mundo uma visão diferente de seu país. "A ideia por trás da Academie é mostrar que o Haiti é capaz de mostrar excelência", disse Rubem Cesar Fernandes. "Não é apenas um lugar de pobreza e tragédia, mas sim de espírito aguerrido e habilidade." Fotos: cortesia de Vitor Madeira/Perles Noires. Tradução: Stephanie Fernandes