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Dentro dos Campos de Morte Secretos da Argentina

Em 1977 Nilda “Munu” Actis Goretta estava voltando a pé do trabalho em uma movimentada rua no centro de Buenos Aires quando membros do Esquadrão da Morte Militar da Argentina a vendaram por trás e a enfiaram em um carro. Ela não foi vista por 13 meses.

Em 1977 Nilda “Munu” Actis Goretta estava voltando a pé do trabalho em uma movimentada rua no centro de Buenos Aires quando membros do Esquadrão da Morte Militar da Argentina a vendaram por trás e a enfiaram em um carro. Ela não foi vista por 13 meses. Recentemente conheci a artista, que hoje tem cabelos grisalhos, e depois de ouvir sua história ainda tento reconquistar minha confiança na frase de John Locke que diz que todo homem "é bom por natureza”.

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Durante o auge da ditadura militar na Argentina, Munu viveu como prisioneira política em um centro de tortura clandestina, o ESMA. Ela foi vítima do Processo de Reorganização Nacional que começou depois do golpe militar de 1976. Por causa da desordem da sociedade e condições econômicas que precederam o golpe que depôs o governo da presidente Isabel Perón, a junta militar liderada pela Tenente General Jorge Videla recebeu apoios diversos. Para garantir o poder sem os problemas do passado, a junta organizou um sistema para eliminar qualquer ameaça ao novo governo. Qualquer pessoa que expressasse a mínima simpatia por governos de esquerda desapareceria sem deixar pistas. Os eventos que se seguiram são sem dúvidas os mais loucos e sangrentos na história da argentina moderna.

O público em geral não sabia dos campos de concentração. O ESMA operou como uma escola de mecânica naval no centro da cidade, mas por baixo de seu exterior de concreto existia um campo de morte subterrâneo onde milhares de prisioneiros políticos, incluindo mulheres grávidas, eram brutalmente torturados e mortos. Em uma tortura particularmente terrível chamada “picana”, choques de alta voltagem eram dados através de uma colher de bronze que era forçado para dentro da vagina de mulheres grávidas. Uma vez que essas mulheres davam à luz, seus bebês eram abduzidos e adotados por famílias de militares. Hoje grupos de direitos humanos estimam que mais de 500 bebês foram retirados de suas mães, e um total de 30 mil pessoas foram aprisionadas ilegalmente, enquanto o governo apenas admite um número de 10 mil pessoas.

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Munu é uma das poucas que sobreviveu por pouco. Cada vez que ela era levada por guardas de sua cela extremamente abafada de cimento no porão do ESMA, ela não tinha muita certeza se seria eletrocutada nas câmaras de tortura ou morta em um dos rotineiros “voos da morte” militares. De acordo com o Sargento Ibanez, um antigo guarda do centro de detenção Campo de Mayo, os voos rotineiros ocorriam de três a quatro vezes por mês, onde as vítimas eram drogadas com Pentothal (um tranquilizante) e desnudas antes de serem enfiadas dentro de um avião ou helicóptero e então jogadas vivas dentro do Rio Del Mar.

Os abduzidos incluíam jornalistas, estudantes, filósofos, artistas e qualquer um que lembrasse vagamente o Devendra Banhart. Membros do Esquadrão de Morte militar se infiltravam em universidade, casas privadas e algumas vezes paravam carros e espancavam pessoas baseadas em acusações falsas. Se possuísse apenas um livro sofre filosofia ocidental, já era considerado uma ameaça.

Como antiga ativista política e artista, Munu se encaixava no perfil. Em 1976, um ano antes de sua abdução, ela era uma estudante de artes bem casada que vivia nos arredores de Buenos Aires, mas a noite ela era “Betty”, uma desafiadora ativista política de esquerda que trabalhava com seu marido para ensinar os pobres a como formar sindicatos para reivindicar ajuda do estado. Esse também foi o ano que a merda foi parar no ventilador.

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Munu tinha 30 anos e estava grávida de cinco meses quando seu marido foi assassinado pelos militares baseados na suspeita de suas atividades políticas. Depois de sofrer um aborto e abandonar suas ações políticas com medo de ter o mesmo destino, Munu fugiu para um subúrbio ao sul de Buenos Aires para começar uma vida nova. Ela pensava que havia deixado tudo pra trás, incluindo a “Betty”, sua identidade política. Ela acreditava que havia se tornado anônima em uma cidade de milhões de habitantes e seria impossível do governo achá-la. Infelizmente, não foi esse o caso.

Quatro meses depois de ter sido encarcerada no ESMA, o destino de Munu se realizou. O guarda que a estava torturando ordenou que ela trabalhasse para produzir passaportes e documentação falsos para membros militares. Suas abduções ilegais iam do norte da Argentina até o Brasil, e eles precisavam de uma maneira para se movimentar sem levantar suspeitas. Satisfeitos com seu trabalho preciso, os militares a transportaram para um apartamento que pertencia a outra sequestrada. (Era uma prática comum os militares renovarem e venderem os apartamentos e pertences dos que haviam sumido).

Apesar de não ser encarcerada dentro do ESMA, Munu ainda estava sob vigilância militar, e suas atividades eram limitadas a trabalhar no porão do ESMA e imediatamente retornar ao apartamento onde ela morava sozinha, sem contato com o mundo exterior. Algumas vezes, guardas militares a levavam aos melhores restaurantes da cidade e então a trancafiavam no apartamento novamente, uma forma de tortura psicológica que aos poucos erodia sua mente.

“Não tinha certeza se iriam me assassinar ou me levar para jantar”, Munu me disse em uma voz que parecia estar revivendo o terror.

A rotina continuou por vários meses, até que o mesmo guarda que a mandou trabalhar lhe contou que ele estava pensando em fugir do país, e implorou para que fugisse antes que ele o fizesse. Ela foi até a Venezuela e lá viveu por muitos anos, finalmente voltando a Buenos Aires. Hoje ela tem 54 anos e trabalha como escritora e artista. A Munu é uma das poucas sobreviventes de centenas de centros de detenção clandestinos que operavam em toda a Argentina.

O resultado da Guerra Suja e suas vítimas ainda é envolto em mistério, mas os espaços em branco de informações continuam a ser preenchidos. Hoje com 85 anos, Videla está em sua própria cela de cimento servindo uma sentença eterna pela vida de 31 prisioneiros, enquanto quase 700 outros casos contra os danos causados pelos militares esperam seu destino incerto.