Rafael Kent Documentou a Molecada do Litefeet, a Cena de Dança do Metrô de Nova York

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Rafael Kent Documentou a Molecada do Litefeet, a Cena de Dança do Metrô de Nova York

Para o seu primeiro documentário, o diretor passou quatro horas frenéticas registrando as apresentações subterrâneas da nova geração de B-boys dos EUA.

As mais de 400 estações de metrô da cidade de Nova York, espalhadas em 375 km de linhas, abrigam diversas micro-histórias — da jornada épica dos Warriors tentando chegar a Coney Island em segurança até os nichos musicais que nascem e morrem em cada estação. Um deles é o litefeet, um estilo de dança e música dos guetos da cidade que segue crescendo literalmente no "underground".

O lifefeet combina passinhos de dança famosos, acrobacias, produtores musicais, além de ter como bônus uma frota de policias tentando impedir que as apresentações aconteçam. Dançar no metrô de NY é considerado ilegal; logo, a destreza dos dançarinos tem de incluir uma certa malandragem pra que eles consigam correr da polícia sem perder os trocados descolados em cada apresentação.

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O premiado diretor Rafael Kent (responsável por videoclipes de artistas como Emicida e Marcelo D2) encontrou essa molecada quando estava passando uma temporada pela cidade e enlouqueceu. Daí, Kent passou quatro horas frenéticas seguindo o grupo, que pulava de vagão em vagão para se apresentar e levantar uma grana.

Assim nasceu o documentário Litefeet – A generation in movement, que marca a estreia de Kent fora dos circuitos de videoclipes, documentando a cena de dança dos meninos e sua destreza para, ao mesmo tempo, poder se apresentar, descolar um faz-me rir dos usuários do metrô e se esquivar de policiais à paisana.

As filmagens foram feitas em junho de 2015. O audiovisual se tornou automaticamente um xodó do diretor brasileiro, que acabou saindo da cidade norte-americana com novos amigos. O filme estreia na íntegra logo acima. Conversei com o diretor pra entender de onde veio essa parada.

Todos os frames são cortesia do diretor.

VICE: Como começou a ideia do documentário?
Rafael Kent: No começo do ano, resolvi passar uma temporada de três meses nos EUA para dar um tempo e fazer uns contatos. Fiquei dois meses em Los Angeles e ia voltar ao Brasil quando a minha namorada me convenceu a ficar mais um mês em Nova York. Dessa vez, fiz uma coisa que nunca tive chance de fazer no Brasil, que é ficar com uma máquina no pescoço o tempo inteiro. Lá tem um pouco mais segurança, e não fico tão preocupado em ser roubado. Um dia, estava voltando de um show de rap de um amigo na cidade e vi esse pessoal no metrô.

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Eles estavam se apresentando quando você os conheceu?
Estava com a máquina de fotografar comigo. E, quando entrei no trem, um deles, o Dre, que é muito atirado, mexe com todo mundo, me parou e perguntou se eu era um profissional. Brinquei falando que estava tentando ser um, e o Dree acabou me pedindo para ver meu trabalho. Isso era em uma sexta-feira, e eu ia voltar para o Brasil na segunda-feira; então, avisei o Dree sobre isso. Até que eles ligaram o som e gritaram "It's show time!" – e começaram a se apresentar. Aí fiquei maluco.

Você veio de um lado mais de videoclipes, fez muita coisa importante na música brasileira. Como foi essa experiência fazendo esse documentário?
Fiquei bem feliz de fazer isso. É um momento bem importante para mim, porque existe um certo "apartheid" com gente que faz clipe, e eu vim dessa parte. Para mim, foi legal, porque é um trabalho meu, com a minha visão, e eu pirei em termos de imagem na hora de editar isso. Com esse trabalho, quero mostrar que faço outras coisas também, além do meu trabalho convencional.

E como foi colocar a molecada na frente das câmeras?
Eles são bastante desconfiados porque as apresentações deles são ilegais no metrô. Acho que eles estão acostumados em serem filmados, mas não com uma câmera de qualidade, como aconteceu. Peguei um cartão com eles no dia em que os conheci, passei sábado inteiro em cima deles para marcar alguma coisa e domingo passei o dia os seguindo e gravando tudo. Depois, pedi para meu amigo que mora em Nova York [e] que trabalha com áudio, o Carlos Feitoza, para entrevistar todo mundo. Quero que tudo isso seja uma troca; e, se eles puderem aparecer mais e isso mudar a vida deles de alguma forma, já é maravilhoso.

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Onde eles moram?
A maioria é do Brooklin. Isso, a Ty é do Bronx e o Dree e o Trey são do Brooklin. O mais legal disso [é] que tive a chance de poder me conectar com os nova-iorquinos de verdade.

O que eu achei engraçado nas suas filmagens é que, enquanto eles estão fazendo coisas incríveis no metrô, os usuários sentados estão meio indiferentes. Você sentiu um pouco essa frieza?
Isso é uma coisa engraçada, porque eu acho que os próprios nova-iorquinos estão um pouco de saco cheio já dessa parada. Porém você precisa ter algum tipo de veia artística para entender aquilo: não é só a dança, eles também têm uma expressão corporal e o jeito de falar que faz eles serem um personagem por si só. Se você tiver um olhar [um] pouco mais sensível, vai entender essa parada. O pessoal deve [se] incomodar com o lance do som, não deve entender, ou se incomodam com o fato de os meninos "pedirem" dinheiro. O próprio Dree tava falando que tava de saco cheio da galera do metrô porque eles são ruins e não são uma galera legal. É um mundo muito legal, queria muito poder voltar e continuar alguma outra coisa. Quem sabe mais pra frente…

E eles tinham algum tipo de processo para selecionar um vagão e se apresentar?
Eles já possuem um olho para selecionar o vagão, assim como eles têm um olho treinado para saber quem no vagão é policial ou não para não serem presos. Mas eles entravam em qualquer vagão para se apresentar. E, quando eles viram esse vagão com os turistas com as camisetas coloridas, o Dree viu que seria lá que eles iriam arrecadar alguma coisa.

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Você filmou em quanto tempo?
Filmei em quatro horas, bicho. Não desliguei a câmera em momento algum.

E rolou alguma treta?
Rolou uma treta porque eu tinha combinado com a Ty, que era a pessoa que mais me respondia por e-mail. No dia [em] que fui gravar, acabei me desencontrando dela e acabei indo com o Dre e o Trey para começar a andar pelo metrô. A Ty acabou ficando meio puta da vida com eles, achando que eles a estavam excluindo. Ficou de boa depois. Teve outra tretinha porque um deles se apoiou do lado de fora do trem, que acabou parando por causa disso, e a gente teve de sair correndo.

Quantos anos eles têm, mais ou menos?
A média do grupo é 17 anos. O Dre e o Trey são irmãos, só que de mães diferentes.

Adorei a entrevista que você fez com a Ty, que era uma das poucas meninas que estavam no grupo.
Ela era a mais fraquinha de dança, mas já fiquei sabendo que eles estão cinco vezes maiores desde a época [em] que os filmei. Imagino que ela também esteja. Eles a aceitavam no grupo, acho que eles eram amigos. Eles são do gueto mesmo, sabe? Pra gente, é difícil entender algumas coisas porque eles são adolescentes do Brooklin e têm ainda esse dialeto do gueto que é um pouco complicado de desvendar. Eu tentei ser alguém legal lá para eles, algo como uma figura paterna, falando que eles eram bons, para eles não se meterem em roubada. Acabei ficando muito amigo mesmo de um deles.

Eles são jovens, adolescentes e moradores do gueto. Apesar disso, vi que o filme acabou não mostrando uma imagem vitimizada deles. Você teve essa preocupação?
Sempre tenho esse medo, porque às vezes gente nunca sabe quando vai fazer ou falar alguma coisa sem parecer racista. A gente fica com medo de se portar em algumas situações que possam passar uma imagem errada. Eu tenho um sotaque estranho, sou brasileiro, branquelo – e foi muito foda, eu queria ser [como] eles. Sabe? Saí de lá amarradão. Uma coisa que eu senti que foi muito legal é eles são muito orgulhosos deles mesmo: eles se tratam muito mais como irmãos do que a gente.

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O litefeet está crescendo bastante, e hoje eles até estão sendo considerados como o novo break. É uma nova geração. O Pharrell e o P. Diddy acabaram de fazer um projeto que levou dois dos amigos dessa molecada para gravar em LA. Tem uns dois anos que isso está acontecendo, talvez um pouco mais.

Eles gostaram do resultado final?
Quem viu mesmo foram o Dree e o Trey – e eles piraram, estão loucos para que isso saia logo. Eu sou muito fã deles: é um dom mesmo, um trabalho árduo.

Você chegou a mostrar algum passinho do funk para eles?
Não mostrei pra eles o passinho, mas mostrei a hora do rush do metrô, e eles não acreditaram. Eles até perguntaram se ninguém morre. Falei que você acaba sendo empurrado pela multidão. Mas pago um pau para o passinho e a dança do romano, acho demais. Você inclusive me deu essa ideia de mostrar isso para eles agora [risos].

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