Explicando o Mês de Protestos e Violência em Bangladesh

FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

Explicando o Mês de Protestos e Violência em Bangladesh

A montanha-russa da Bangladesh pós-independência.

O pregador emergiu no tribunal lotado. Delwar Hossein Sayedee, um dos imãs mais populares de Bangladesh, explodiu em retórica inflamada, denunciando seus acusadores de “infiéis” e “ateus”. Momentos antes, o barbudo Sayedee foi considerado culpado de oito crimes hediondos, o suficiente para merecer a pena de morte por enforcamento.

Esse foi o último veredito no Tribunal de Crimes Internacionais (TCI) de Bangladesh, formado em 2010 para julgar os perpetradores de crimes violentos durante a luta pela independência do país em 1971, quando Bangladesh se separou do Paquistão. O TCI se inspirou com o movimento de protesto sem precedentes conhecido como Shabagh (batizado com o nome do movimentado cruzamento onde centenas de milhares de pessoas se reuniram mês passado), que polarizou essa nação de 160 milhões de pessoas no sul da Ásia. A sentença de Sayedee desencadeou vários dias de derramamento de sangue nas ruas da capital, Daca. Esse tem sido um dos episódios de violência política mais mortais vistos nesta geração.

Publicidade

Sayedee não é só um pregador. Como muitos dos acusados pelo TCI, ele é um integrante do Jamaat-e-Islami, o maior partido islâmico do país. Sayedee é acusado de ter massacrado e estuprado intelectuais e não-muçulmanos no verão de 1971. Em uma das casas que seus camaradas afirmam ter aterrorizado, eles mataram todo mundo e amarraram a cabeça decepada do chefe “infiel” num ventilador de teto.

O veredito de 5 de fevereiro para o caso de outro membro do partido Jamaat, Abdul Qader Mollah, também conhecido como “O Açougueiro de Mirpur”, foi de culpado de cinco das seis acusações feitas contra ele, o que lhe rendeu prisão perpétua em vez de pena de morte. Foi esse pingo de clemência que iniciou os protestos em Shabagh, quando secularistas convergiram para esse cruzamento no centro da cidade para demonstrar seu desagrado.

Os protestos Shabagh são um festival de rua liberal com exigências mórbidas. Forcas improvisadas e gritos de guerra que pediam que o acusado fosse enforcado se tornaram um atalho para definir a nação e sua guerra inacabada por identidade para uma sociedade liberal pluralista que se sente traída por burocratas e políticos ineptos.

Shahidul Haque Mama lutou pela independência da nação e disse que testemunhou a brutalidade dos crimes de Mollah em primeira mão. “Estupro, saques, muitos corpos”, ele me disse, incandescente com memórias de 42 anos antes. “Mollah é um açougueiro, quero ver o julgamento final para esses criminosos!”

Publicidade

O Jamaat afirma que os processos são um “julgamento espetáculo”, concatenado pelo governo atual de Sheikh Hasina e sua Liga Awami (LA), que chegou ao poder em 2008 com a promessa específica de fazer justiça no caso dos colaboradores de 1971. O LA é um partido secularista fundado pelo herói da independência e primeiro líder do país, Sheikh Majibur Rahman (Mujib), o pai da primeira-ministra Hasina.

O número de mortos em 1971 é muito discutido, com revisionistas e patriotas sedentos por diminuir ou inchar porcentagens como melhor convir. No entanto, é seguro dizer que muitas atrocidades aconteceram e que as memórias disso formam um desfiladeiro entre as identidades nacionalistas competidoras, a da primazia islâmica em oposição às identidades Bengali ou Bangla, personificadas pelos heróis de libertação de 1971. As milícias aliadas às forças paquistanesas atacaram alvos intelectuais e minorias religiosas com ferocidade particular.

“Nossos mártires não morreram para que esses caras saíssem livres e continuassem a fazer política”, diz Ahmed, um dos manifestantes em Shabagh.

Para entender os protestos é crucial conhecer a montanha-russa da Bangladesh pós-independência. Em 1973, Mujib perdoou muitos dos colaboradores como uma maneira de repatriar bengalis detidos em propriedades paquistanesas, principalmente soldados. Depois de dois anos, Mujib foi morto por um assassino. Nos quinze anos seguintes, os conservadores militares comandaram a nação, geralmente apoiados pelo Ocidente.

Publicidade

Os ditadores acharam atraentes as restrições do Islã conservador e, com o tempo, se reconciliaram com os malfeitores de 1971, como esses que estão sendo julgados agora, introduzindo o Islã na política e na constituição da nação. Isso incluiu o retorno de Ghulam Azam do Paquistão em 1978. Nos últimos quarenta anos, a diversidade da sociedade tem diminuído com a fuga de minorias que são perseguidas por islâmicos linha-dura.

“Os líderes militares de Bangladesh — Zia e Ershad — precisaram criar apoio político para seus regimes não-eleitos. Uma estratégia para alcançar isso foi tentar criar pontes com os islâmicos. Por exemplo, em 1977, Zia mudou a Constituição substituindo o secularismo por um comprometimento com os valores islâmicos, e Ershad modificou isso de novo para tornar o Islã a religião oficial do país em 1988. As duas mudanças ajudaram a fortalecer o islamismo, que reapareceu depois da morte de Mujib em 1975”, diz o professor David Lewis, autor de Bangladesh: Politics, Economy and Civil Society [em tradução livre, Bangladesh: Política, Economia e Sociedade Civil].

As multidões de Shabagh atingiram centenas de milhares de pessoas em vários dias de fevereiro. Os manifestantes estão ali, em graus variados de agitação, desde 5 de fevereiro. Gritando e cantando com explosões de arte e expressão, vários setores da sociedade convergiram em celebração patriótica e indignação vingativa. As exigências das manifestações se expandiram para incluir a proibição do Jamaat, o que o governo já disse que fará, bem como o boicote dos negócios do partido.

Publicidade

As multidões iniciais foram mobilizadas através da internet, particularmente por blogueiros que expressavam falta de fé religiosa. Um desses blogueiros era Rajib Haide. Na tarde do dia 15 de fevereiro, Rajib estava voltando para casa depois das manifestações quando agressores o atacaram com facões até a morte. A polícia prendeu um grupo de estudantes, que supostamente seriam membros do temido braço estudantil do Jamaat, conhecido como Shibir — todos os grandes partidos têm braços estudantis, que frequentemente se comportam e funcionam como os camisas marrom do nazismo.

Para o Jamaat e seus partidários, a falta de fé se tornou o ferro em brasa com que marcar todos os manifestantes de Shabagh. Uma tática previsível. Na verdade, muitos dos manifestantes são muçulmanos praticantes. O imã Sayedee, depois de ouvir seu veredito, ecoou a linha principal de pensamento do partido, atacando os “infiéis e ateus” de Shabagh.

Com o dedo em riste, um Corão ao seu lado, barba escarlate e olhos delineados, o imã induziu uma onda de ódio contra si no tribunal lotado.

Sayedee também se queixou de interferência política no TCI. Organizações não governamentais como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch concordam com os islâmicos nessa parte.

Horas de conversas gravadas por Skype e centenas de e-mails de um dos juízes vazaram na internet. Essas informações sugerem que o governo está conduzindo os juízes, entre outros pecados legais. Como resultado, um dos principais juízes envolvidos se demitiu em dezembro. Ele era o único a presidir durante o caso inteiro.

Publicidade

Muitos dos manifestantes de Shabagh compartilham uma falta de confiança no sistema judiciário. Eles veem a pena de morte como a única maneira de alcançar a retribuição e da sociedade se livrar dos perpetradores, especialmente se o Jamaat ajudar a formar um governo futuro. O Jamaat tem sido um jogador poderoso como parceiro de coalizão, apesar de sua base de votos relativamente pequena. Eles recebem apoio considerável de fora do país, o que permite que eles inchem sua importância. Comunicações diplomáticas dos Estados Unidos que vazaram na internet revelam isso:

“…pelo menos um dos representantes do JIB (Jamaat) mencionou a possibilidade de solicitar apoio moral e de outra natureza da Arábia Saudita… Os representantes do JIB também indicaram que o partido pode fazer um esforço para garantir que detentores de interesses regionais como o Paquistão (a origem de um número significativo dos suspeitos de crimes de guerra) tenham um papel enquanto o processo avança.”

O TCI também paga um preço salgado com suas testemunhas. Uma testemunha da defesa, um homem chamado Sukho Ranjan Bali, desapareceu quando chegava ao tribunal. Ele foi recrutado pela defesa depois de ter sido testemunha da acusação. Seu testemunho teria um “efeito devastador” no julgamento, segundo Abdur Razzaq, advogado de defesa. A corte permitiu que algumas das testemunhas dessem seus depoimentos por escrito, para não terem que comparecer ao tribunal. Bali testemunharia que a acusação armou o depoimento dele. Ele não é visto desde outubro.

Publicidade

Mais recentemente, o corpo de uma das testemunhas da acusação apareceu no hospital de Chittagong. Syed Wahidul Alam Junu testemunhou contra Salauddin Qader Chowdhury em 12 de fevereiro. Chowdhury exemplifica a cleptocracia que muitos associam com a política de Bangladesh. Ele é membro do parlamento de um distrito do sul do país que é comandado por sua família há gerações, enquanto ele próprio é membro de um parceiro de coalizão do Jamaat e principal partido de oposição, o Partido Nacionalistas de Bangladesh. A família de Junu afirma que ele recebeu numerosas ameaças de morte alertando para que não testemunhasse.

Partidários de Sayedee e membros do braço estudantil Shibir tomaram as ruas com protestos violentos depois que o tribunal anunciou o veredito em 28 de fevereiro, assim que as comemorações começaram nos degraus do tribunal e em Shabagh.

Eles entraram em conflito com os outros manifestantes “infiéis” e atacaram templos e comunidades hindus. A polícia confrontou os manifestantes com força, mas os protestos continuaram, matando mais de 40 pessoas em um só dia. A violência ainda continua, com o exército ocupando a cidade de Bogra, ao norte, e com vários dias de greve levando a capital a um impasse.

O país se encontra agora numa situação perigosa enquanto as eleições se aproximam. A escala da agitação política é, em parte, reflexo de uma falta profunda de confianças nas instituições e nas leis do país. Ironicamente, essa falta de confiança existe parcialmente por causa da impunidade que os poderosos, como esses que agora são julgados, desfrutaram por tanto tempo. Fazer justiça ou derrotar inimigos políticos no tribunal pode não ser o suficiente.

Publicidade

Fotos por Joseph Allchin.

Mais sobre Bangladesh:

Minha Primeira Batida num Bordel

Moda Ética Não Precisa Ser Chata