"Descarado e Corajoso": Uma Análise Literária da Ode de Despedida de Kobe Bryant

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"Descarado e Corajoso": Uma Análise Literária da Ode de Despedida de Kobe Bryant

Seria Kobe Bryant o próximo grande poeta? Pedimos a uma renomada professora de literatura para avaliar a poesia de despedida de uma lenda do basquete.

Foto: Richard Mackson-USA TODAY Sports

Todo mundo já esperava pelo fim das jogadas míticas de Kobe Bryant em quadra. O ala-armador do Lakers sofria há um tempinho com o desgaste e era uma questão de tempo até se aposentar. O que ninguém esperava era como se despediria.

Domingo passado, Bryant publicou um singelo tuíte que começava com "Caro Basquete" e, a seguir, exibia um surpreendente poema. Ele poderia ter escrito o que bem entendesse — um bilhete cheio de bobagens, um rap, um simples memorando, qualquer coisa. Mas não. Ele nos deixou uma ode ao esporte em que se tornou lenda:

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Caro Basquete,

A partir do momento

Em que enrolei os meiões do meu pai

E marquei os imaginários

Pontos fatais

No Great Western Forum

Entendi que algo era real:

Apaixonei-me por você.

Um amor tão profundo, que me entreguei total —

De mente e corpo

A espírito e alma.

Como garoto de seis anos

Profundamente apaixonado,

Nunca vi uma luz no fim.

Vi apenas a mim

Deixando o túnel.

Então, corri.

Corri para cima e para baixo na quadra

Atrás de cada bola perdida, por você.

Você pediu ebulição,

Dei o coração

Pois havia muito mais ali.

Joguei com suor e dores

Não porque o desafiou me convocou

Mas porque você me convocou.

Fiz tudo por você

Pois é o que faço

Quando alguém me faz sentir

Vivo como você o fez.

Você realizou o sonho Laker de um garoto

Pelo que sempre serei devoto.

Mas já não posso mais amá-lo obsessivamente.

Esta temporada é tudo que cabe oferecer.

O coração aguenta o tranco

E a labuta suporta a mente.

Mas o corpo sabe que é hora do adeus.

E tudo bem.

Estou pronto para deixá-lo.

Queria avisá-lo

Para aproveitarmos cada momento que nos resta.

O bom e o ruim.

Demos um ao outro

Tudo que temos.

E ambos sabemos, não importa o porvir

Serei sempre aquele guri

Com as meias enroladas

A lata de lixo no canto

Cinco segundos no relógio

Bola em mãos.

5 … 4 … 3 … 2 … 1

Amor eterno,

Kobe

[Confira o poema em inglês aqui]

Claro, todo mundo sabe que o Bryant manda ver em quadra. Mas como devemos nos sentir a respeito de sua poesia? Serão meros rabiscos em um guardanapo sujo de bar? Ou testemunhamos o alvorecer do novo grande poeta americano? Para analisar a capacidade literária do Kobe, contatei a escritora C.D. Wright, da Universidade Brown, professora renomada de poesia de um dos melhores programas de Belas Artes dos Estados Unidos. Em 2011, o livro de Wright, One With Others: [a little book of her days] (Um Com Outros: [um livreto de sua época]), foi finalista do National Book Award e venceu o National Book Critics Award de Poesia em março do mesmo ano. Encabulado, torci por uma alfinetada digna da Torre de Marfim contra a incursão de Kobe Bryant na antiga arte da canção. Mas o que escutei me surpreendeu — quase tanto quanto a preferência de Kobe pela poesia. "Achei maravilhoso", disse Wright. "Me lembrou o 'Ode às Coisas', de Neruda."

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Sabe o que é mais legal que uma camisa aposentada de atleta colegial? O prêmio literário PEN/Faulker. Foto: Bill Streicher-USA TODAY Sports

Wright foi uma mulher doce, prestativa e falou em um tom poético natural; suas palavras caíam suaves como folhas de árvores. E, para minha surpresa, a maior parte de suas falas serviu de elogio a Bryant.

Não solicitei uma comparação, mas foi o que ela fez — e logo com um poeta chileno vencedor do Prêmio Nobel, uma lenda.

"Os poemas de Neruda são bem simples", disse ela. "Odes a algas marinhas, 'Ode a um Grande Atum no Mercado', 'Ode à Jardineira'. Ele usava uma linguagem bem simples. Mas não é Neruda, é o Kobe Bryant."

Wright também não poupou palavras.

"Ele não fingiu que é poeta. Só acho que escolheu um discurso interessante", disse Wright. "É bem enxuto. Mas é muito sentimental. E descarado. Achei o descaramento corajoso."

Wright admitiu que não é grande fã de esportes, mas que — assim como quase todo mundo — já ouviu falar de Bryant. Embora ela não conhecesse as particularidades do jogo dele, de arremessos a qualquer instante, ela sacou a essência: Bryant jogava com uma coragem descarada. Parece que ele escreve assim também.

"É bem enxuto. Muito enxuto. Tem pouquíssimos adjetivos. Os substantivos são basicamente sobre a bola ou sobre o sujeito em relação à bola. O resto é a linguagem do amor. A linguagem do amor típica de crooners."

Também questionei a estrutura. Dado que Bryant foi colocado no mesmo patamar que Neruda, será que ele também opera em um nível letrado em sextinas, como um trovador do século XII?

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"É uma estrutura mínima", disse Wright. "Primeiro, vem o endereçamento; isso se chama apóstrofe. 'Caro Basquete'. O restante parece se organizar em estrofes soltas."

"Está na primeira pessoa. Como apóstrofe, direciona-se ao objeto da afeição. No caso, o basquete. É bem bonito, mesmo."

Depois fomos para a parte da forma literária, digamos assim. Perguntei sobre a preferência de Bryant por um poema.

"Apresentar a aposentadoria como um poema lhe confere um ar de formalidade, um pouco de decoro", disse Wright. "Tira Bryant do vestiário, das quadras, e permite que ele retome o lindo garoto com a bola perfeita e todas as alegras que esse simples objeto pode oferecer. Também permite que ele seja um adulto de terno. Um fã devoto, sem pudores, que teve a oportunidade de jogar muuuita bola."

E não parou aí. "Permite que ele nos conte sua origem, sem microfones, sem câmeras, nem mesmo papel timbrado, como uma resignação formal. Apenas um par de estrofes, de olho no relógio", disse.

"Ele o deixou bem direto. Não se esquivou do que queria expressar. Acho que é bem adulto da parte dele. Bem másculo."

Na poesia, não há bloggers esportivos pedantes dizendo que arremessos jump com um passinho para trás, a longa distância, são ineficazes. — Foto por Bill Streicher-USA TODAY Sports

Quando contei a Wright que Bryant postou o poema para 7,97 milhões de seguidores no Twitter, ela riu. "Bem, a poesia não está acostumada com esses números", disse. Perguntei a Wright se poderíamos dizer que ele foi o poeta mais lido (pelo menos) da semana passada. Ela não fisgou a isca.

Aproveitei a sensação de me sentir bem descarado e corajoso e fiz a pergunta mais aguardada entre os malucos por estatísticas de basquete:

"Se você tivesse que dar uma nota para o Kobe, qual seria?", questionei. "Não, não. Isso não vai acontecer", disse Wright. "Eu sei", eu disse. "Achei que seria uma pergunta cafona mesmo. Mas eu precisava tentar." "Muito cafona", ela disse. "Eu dou 10 para todo mundo, melhor não me perguntar.