Lea T.: “somos todos intersexuais”

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Lea T.: “somos todos intersexuais”

Uma entrevista com a modelo trans sobre esportes, cinema e religião.

Foto por Fabio Bartelt.

2016 é (mais um) ano de Lea T. Criada entre o Brasil e a Itália e filha de Toninho Cerezo, um dos maiores craques do nosso futebol, ela fez história mundial mais uma vez recentemente, após ser a primeira trans a participar oficialmente da abertura de uma edição dos Jogos Olímpicos, desfilando à frente dos 465 integrantes da delegação de atletas brasileiros no Rio de Janeiro, diante de um Maracanã lotado e aos olhos de bilhões de espectadores no planeta.

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Entrevistada duas vezes por Oprah Winfrey, musa da Givenchy e da Benetton, face da Redken e estrela de um sem-número de editoriais para os maiores veículos e marcas de moda do mundo, Lea T. – codinome de Leandra Medeiros Cerezo – é um furacão profissional de reconhecimento absoluto, apesar de levar sua vida pessoal e rotina cotidiana como uma leve brisa de ar fresco.

Com 35 anos de idade, Lea foi eleita no ano passado pela Forbes como uma das 12 mulheres que transformaram a moda italiana, ao lado de poderosas como Miuccia Prada. Seja beijando Kate Moss pra uma capa de revista ou fotografando ao lado (e não somente por) Terry Richardson, a bela já alcançou grandes voos dentro do mundo fashion global e é um dos nomes mais fortes e expressivos no concorrido mercado. Espiritualizada, Lea vive entre este universo agitado e o refúgio que encontra no campo, onde vive, descansa e se conecta com a natureza.

Apesar de acompanhar a trajetória de Lea desde o início, também foi neste ano que ela entrou em minha vida definitivamente. No próximo mês, Lea receberá, através de mim, da produção do Festival do Rio e do Prêmio Félix (destinado aos filmes de temática LGBTQ), a segunda edição do Prêmio Félix Suzy Capó, concedido para a personalidade de maior destaque naquele ano dentro da comunidade, seja pela luta por direitos sociais ou ampliação da visibilidade através causas relacionadas.

Foto por Stefano Moro.

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Entregue à eterna Rogéria em sua estreia, o prêmio leva o nome da jornalista e produtora cultural criadora do Félix (e uma das melhores amigas que já tive), Suzy Capó, morta em 2015. Nesta edição, o prêmio contará também com um amplo debate sobre transfobia no Brasil, país campeão no quesito, encabeçado por um bate-papo aberto entre Lea e o público do festival, que acontece de 6 a 16 de outubro na capital fluminense.

Foto: Divulgação.

Entre as Olimpíadas e o prêmio, conversamos com Lea sobre a experiência no evento esportivo, suas raízes e crenças, o papel transformador do cinema em sua vida, o atual momento da política brasileira e sua conexão com o mundo natural que tanto ama. Senhorxs, Lea T., a seguir.

VICE: Como foi sua participação inédita na cerimônia de abertura das Olimpíadas? O que representou para você?
Lea T.: Foi muito lindo, uma emoção muito grande. Um convite que eu nunca esperava. Achei lindo o ato de terem chamado uma trans. É um sinal de que há pessoas apoiando todas as comunidades que vivem dificuldades.

Muitos disseram que Rio 2016 foram os primeiros jogos onde realmente entraram com força os debates sobre questões de sexo, sexualidade e gênero. Como você a participação de trans e intersex nas competições desportivas hoje e daqui pra frente, especialmente as modalidades binárias, de masculino e feminino?
Quando uma pessoa trans começa uma terapia hormonal, o hormônio que ela toma prevalecerá em seu corpo. Um homem trans irá tomar testosterona, por exemplo, o que significa que todas as taxas de seu corpo, em seus exames de sangue, ficarão como as de um homem. O físico será masculino. E é o mesmo para uma trans mulher. Hoje quando eu faço um exame, meus valores são como os de uma mulher. Se for considerado o corpo masculino, aparecerá que eu tenho anemia ou outras doenças, porque o organismo feminino age de outra forma. Houve uma época que fiz exames e falavam que eu estava anêmica, mas na verdade era porque estavam considerando os números dentro de um organismo masculino, como se eu ainda fosse homem. Acho que no esporte será assim, se for uma mulher trans, competirá com as mulheres. Se for um homem trans, com os homens. Não existirá uma terceira, uma categoria trans.

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E nos casos de intersexualidade?
Normalmente, a intersexualidade tem uma predominância. Ninguém é 50% um e 50% outro. É o que falo e é essa questão que acho que deverá ser abordada no futuro: somos todos intersexuais. Não existirá uma medição, mas esse é um entendimento daqui pra frente. Não temos como dar essa definição sexual restrita à natureza. É Deus. Não está em nós limitar e definir o que ele ou ela é. É algo muito mais mágico e poderoso, além de nossa compreensão. O problema é que o homem acha que tem um valor superior e quer encontrar uma explicação para tudo. Sobre os atletas, acho que sempre será feito um estudo para definir a predominância daquele organismo, independente de ter ou não ovários ou testículos. Além, claro, de se levar sempre em consideração o respeito pela forma como aquele atleta se identifica. No atletismo, além do uso do corpo, o principal coringa é o cérebro, usado para saber como competir, como jogar. A mente tem que estar pronta. Eu sei por causa do meu pai. Por isso, além do físico, o psicológico sempre deve ser considerado. A concentração e o controle mental são fundamentais neste caso. E existe o espetáculo do corpo, que vai muito além do que o atleta possui no meio das pernas, ou de sua sexualidade. E acho que as Olimpíadas finalmente entenderam que este espetáculo deve ser feito, além de visto, por todos.

Falando sobre o Prêmio Félix Suzy Capó, para a personalidade LGBTQ do ano que você receberá dentro da próxima edição do Festival do Rio, qual é sua ligação com o cinema? Como você vê a importância de prêmios específicos e o papel dos filmes como motores de transformações sociais, especialmente de minorias, e de lutas como o combate a transfobia?
Acho que todas as formas de arte são fundamentais para a evolução humana. Hoje estudamos todo o passado da arte. A arte fica. Quando o cinema é arte (porque ele nem sempre é), o filme se torna um documento, que serve de ferramenta de ensino. Em última instância, a arte ensina. Para mim, é muito importante que exista essa visibilidade cinematográfica, e não só na comunidade LGBT. Sempre que o cinema, como um meio de comunicação em massa, consegue ajudar as pessoas a refletirem ou abraçarem causas, ele cumpre uma função social. Às vezes eu fico pensando: "mas ainda tem que existir coisas – lutas, bandeiras – específicas para gays? Isso pra gay, aquilo pra trans, etc…?". Acho que infelizmente sim. Parece repetitivo bater na mesma tecla das minorias, mas ainda morre muita gente pelo preconceito. Existe muita violência contra minorias! E a arte pode combater isso, ao tocar as pessoas. Um filme é quase como um remédio, uma medicação, para pessoas preconceituosas, fazendo com que essas trabalhem em sua reflexão sobre sua existência e dos outros. O cinema é muito importante ao ser feito com inteligência e bom gosto. E acho a premiação algo lindo e necessário, principalmente no Brasil, que ainda é uma país extremamente preconceituoso.

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E quais filmes ou diretores transformaram você?
Há muitos filmes que me fizeram entender a vida. Eu gosto mais do cinema europeu, em geral. Eu amo Fassbinder, Querelle, que é maravilhoso, ou As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, que é extremamente feminino e fala dessa interação das mulheres quase sem a presença de homens no longa. Eu amo Peter Greenway também, essa forma que ele tem de fazer essa interação entre o cinema e a natureza, com os animais… Por ter sido um biólogo, ele consegue passar emoções usando imagens do sistema de fauna, com uma estética tocante. Mas o filme que nesses últimos tempos representa para mim, de forma mais glamorosa, como enxergo muitas coisas, é Orlando - A Mulher Imortal (dir: Sally Potter, 1992), com a Tilda Swinton. Foi o filme que ela deu seu melhor dela na parte artística. A base da história (de Virginia Woolf) já é maravilhosa: uma mulher que passa a vida se transformando em homem e mulher. Mostrando que somos um só. Tudo que ela aprende e ensina, é mágico. É um filme muito delicado, feminino, cheio de sensibilidade e dessa sutileza da aceitação de ser os dois sexos. Outro filme que amei, indo mais para Hollywood, mas que achei bem profundo por abordar o ser e o respeito pela terra, é Avatar. A integração das tribos, o espírito da Terra… É muito a viagem que vivo hoje em dia.

Lea, e o que você acha dos avanços da bancada religiosa em Brasília e na política? Você enxerga uma real ameaça aos (poucos) direitos LGBT conquistados nos últimos anos, especialmente para a comunidade trans?
Sempre fui uma pessoa que respeitou muito a religião alheia, mas a partir do momento que você respeita a minha vida, a minha existência. Então se a sua religião ameaça a existência de qualquer ser na Terra, eu já não tenho mais estima por ela, ou por sua fé. Sempre vou respeitar porque senão caio no mesmo erro do outro lado, mas perco a estima. Eu tenho muita fé, em Deus, mas no meu Deus, que não necessariamente é o seu ou o do outro. Especialmente não o dessa bancada religiosa. Questões religiosas, especialmente na política, são delicadas, porque pessoas correm riscos. Existe muita violência e isso deve ser considerado ao se pregar para milhares de pessoas. Você sabe que aquelas pessoas têm fé no que você fala, então se você tentar denegrir qualquer tipo de pessoa, isso vai gerar um efeito negativo e violento. E você tem consciência disso! Assim se incita o ódio. Porque para uma pessoa que têm fé agredir uma outra pessoa pode ser difícil, mas a partir do momento que ela pensa que está agredindo um "demônio", fica muito simples. Tem que ser uma questão vigiada pela lei. Não se pode pregar o ódio contra qualquer raça ou grupo, é inadmissível. Nós já crescemos em uma cultura de violência, vendo guerras, crianças explodidas… Nossa educação é pela violência, não crescemos em missão de paz. Ou seja, quem já possui uma tendência a ser violento, e às vezes também submisso, sem questionar ordens, vai simplesmente obedecer o que esses "profetas" disserem. Essa violência permitida, estimulada, é muito perigosa. Conheço muitas pessoas que foram espancadas e agredidas por questões religiosas. Por isso que acredito que sua fé, seu amor por Deus, é entre vocês dois, não tem nada a ver com a vida dos outros. E não é só a questão gay. Tem o negro, a mulher, todas as minorias que sofrem preconceito justificado. Sempre vou respeitar o próximo e sua fé, fui educada assim, mas a partir do momento que sua crença afeta a minha vida ou a dos outros, não estimo. Não podemos permitir isso. E não temos que olhar só no escuro. Há luz e vamos lutar até o final por todos os direitos. Tem muita gente consciente. Mas eu fico muito assustada com tudo isso.

O que mais te assusta nesse sentido?
A questão política no Brasil é assustadora. Eu não fico tranquila. Eu moro no meio do mato e sei que há muitos fanáticos religiosos que podem me fazer mal, ser violentos comigo. Vivo com medo, mas pago todos os meus impostos, trabalho muito, ralei e ralo pra caramba para conquistar o que tenho… Mesmo tendo muito mais dificuldades que uma outra modelo. Porque se fosse uma modelo qualquer que tivesse feito um terço do que fiz, ela estava rica. E não sou rica. É um perrengue constante. Sabe quantos "não" eu ouvi na moda por ser trans? Escuto quase diariamente. De 20 trabalhos para os quais faço teste, pego 2 e as outras rejeições não são porque sou feia ou não tenho talento, é: "não porque ela é trans". E me falam isso na cara dura. "Não sei se queremos levantar essa causa", "não sei se nossa empresa quer levar esse tema ao debate"… E ainda comigo é mais difícil, por ser uma trans e ser negra. Toda essa questão da discriminação, e desse momento político, especialmente após a saída da Dilma, está caótico.

Como você vê o impeachment?
Eu não apoiava a Dilma porque sou uma pessoa muito atenta à natureza e o que ela fez nesse âmbito foi irresponsável. Ela não conseguiu acompanhar as questões ambientais no país, as florestas estão sendo destruídas, os índios perderam muita terra… Eu não era a favor dela, mas, sem querer fazer um pré-julgamento e já fazendo, sua saída contribui para o aumento da força dessa bancada religiosa, que não apoia a igualdade de direitos. Se você não está alinhado com a moral e regras deles, você é filho do diabo, merece ficar na desgraça e morrer. E infelizmente há muitos membros desse novo governo que pensam dessa forma. Tento rezar dia e noite pras novas gerações que chegam. Já estou velha, indo pros 40 anos, aprendi muita coisa nessa vida (que vou levar pras outras), mas fico triste ao ver os meninos e meninas novos, gays, lésbicas, trans, negros e negras, e pensar que essas pessoas pregam contra elas, falando coisas absurdas contra essas crianças, que vão querer crescer e ter uma vida digna, mas não poderão por esse estigma criado por esses que pregam contra nosso direito a viver! Só queremos isso: o direito de vida. Nada mais.

Recentemente, a Lei Maria da Penha foi ampliada para englobar trans, mesmo que não tenham feito operação ou alterado seu nome em seus registros. Como você vê essa decisão do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais?
Foi uma decisão linda, incrível. Quando vi a lei aprovada, fiquei muito feliz mesmo. E é isso que temos que fazer: ter paciência e não perder o foco. Somos juntos, todos os que são a favor da paz e do amor na Terra, somos guerreiros disso. Porque vivemos em um planeta onde essa mentalidade está acabando. Nascemos pra luz, pra igualdade. Então todos temos essa missão, sermos ativistas sobre isso. Não sou só militante das minhas causas, mas de todas aquelas que podem não me dizer respeito diretamente, mas que apontam pra injustiças sociais no mundo. O que abriu minha luta, minha estrada, foi minha transexualidade, e com o que aprendi daí, comecei a lutar. Pelo amor livre e incondicional. E isso é o mais importante para minha vida hoje.

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