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Minha Vida como um Fantoche Comunista: Trabalhando no Ministério da Verdade da China

A visão de quem trabalha na bizarra indústria da mídia liderada pelo país com o "dever patriótico de transmitir a verdade sobre a Nova China".
Foto via o usuário do Flickr wfeiden.

Toda manhã, meu dia de trabalho começa com uma seleção de matérias. "Direitos Humanos Avançam na China" é uma manchete típica. "Construindo Prosperidade no Tibete" ou "Mais Um Passo para a Democracia Chinesa" são outras possibilidades. Temos pelo menos uma denúncia contra o Japão, assim como previsões econômicas promissoras.

Sou jornalista, mas não trabalho no Onion. A revista em que trabalho é um dos muitos panfletos em língua estrangeira publicados sob a eminente liderança do Partido Comunista da China. Junto de dezenas de outros "especialistas estrangeiros" da Estrela da Morte – o apelido dado por um colega inglês ao bloco de concreto onde trabalhamos no lado oeste de Pequim –, nossa função é introduzir ostensivamente as realidades da China e de sua democracia socialista ao resto do mundo.

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A Estrela da Morte é apenas um ponto na constelação de meios de comunicação de propaganda em língua estrangeira. O Partido Comunista controla jornais, revistas, editoras, sites, serviços de internet e estações de rádio e TV. Esses canais empregam centenas de estrangeiros como roteiristas, editores, artistas e âncoras de noticiário. Todos compartilhando o dever patriótico de transmitir a verdade sobre a Nova China.

Minha carreira na máquina de propaganda começou durante a corrida anual por uma permissão de trabalho. Eu já tinha conseguido me infiltrar no complexo industrial chinês do "Inglês como segunda língua" alguns anos antes, quando topei com um anúncio de emprego na mídia. O salário não era ótimo, mas eu não teria de supervisionar crianças. Depois de impressionar os chefes com minhas credenciais jornalísticas (dois artigos no jornal do colégio) e uma entrevista muito superficial, fui devidamente equipado com um visto de trabalho, uma escrivaninha, um computador e uma pilha de cartões de visita, que me identificavam como "Revisor/Repórter".

Repórter, pensei. É isso aí.

Eu estava seguindo os passos de uma longa tradição de líderes de torcida pró-China. Começando em 1950, admiradores ocidentais do Comunismo fundaram jornais como o meu para refutar as mentiras da mídia capitalista. O paraíso estava perto, mas não se podia confiar nos jornais burgueses ocidentais para compartilharem as boas novas. Repórteres eram prontamente levados para turnês armadas em que viam celeiros esbugalhados e camponeses felizes. "Mais Colheitas com Cooperação", anunciava o Peking Review em 1958, às vésperas da grande fome na China. Quando os Servos se Levantaram no Tibete é o título do relato otimista de Anna Louise Strong da libertação da província.

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Hoje, o trabalho é menos emocionante. Os "especialistas estrangeiros" da Estrela da Morte passam a maior parte do tempo editando e revisando o trabalho traduzido de escritores chineses. Podemos ocasionalmente escrever alguma coisa sobre cultura ou música, mas sempre mantendo distância da política. E isso foi decepcionantemente pouco orwelliano para mim.

Geralmente leio um artigo uma vez; depois, procuro no Google o que realmente aconteceu.

Mas há muitos ardis. Uma vez, minha editora me pediu para escrever um artigo sobre Mark Zuckerberg depois de o bilionário ter quebrado a internet conversando publicamente em mandarim. "Queremos que você escreva um artigo sobre a carreira de Zuckerberg", ela disse, "mas tente não falar muito sobre o Facebook. Você sabe que isso é bloqueado aqui".

Há também a necessidade de se manter politicamente correto – um termo com sentido muito mais literal na China. Como estrangeiro, eu já sabia que era melhor não mencionar os quatro "Ts" proibidos: Taiwan, Tibete, Tiananmen (a Praça da Paz Celestial) e a província muçulmana do Turquestão Oriental, antigamente conhecida como Xinjiang. Mas tive de aprender todo um novo vocabulário de eufemismos políticos. O sistema político chinês é uma "democracia consultativa" – ou seja, o governo pede opiniões antes de tomar decisões. Aliás, isso também não é um sistema unipartidário: é um "sistema multipartidário de cooperação democrática". Existem outros partidos políticos, mas suas atividades se limitam a encorajamento e sugestões úteis. Taiwan geralmente é chamado de "Taiwan da China", e o Tibete quase sempre é o "Tibete da China" – caso alguém tenha alguma dúvida de quem manda nesses pedaços de terra.

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Pior que os eufemismos são os clichês burocráticos: meu emprego, às vezes, é uma versão chinesa de Como Enlouquecer Seu Chefe. "Estou de saco cheio de ler palavras como inovação e cooperação mútua", reclamou Alex*, que trabalha para o Beijing (ex-Peking) Review, uma das primeiras revistas comunistas chinesas em língua inglesa. "Às vezes, você vê a palavra cooperação quatro vezes numa frase."

Lembro de um exemplo particularmente doloroso num artigo sobre "o novo tipo de modelo de relações de poder entre a China e EUA", uma frase que era duplicada exatamente assim pelo menos uma vez por parágrafo. Em toda revisão, eu cortava isso impiedosamente, só para descobrir que o texto seguinte estava lotado de variações de "o novo tipo de modelo de relações de poder". "É uma frase-padrão", meu editor-chefe explicou. "Não podemos mudar." É isso que você tem quando padrões funcionais burocráticos dominam a política editorial.

Logo, percebi que a maioria trabalha com os dedos cruzados atrás das costas. "É só propaganda", um amigo chinês deu de ombros. Um colega americano foi ainda mais direto: "Geralmente leio um artigo uma vez; depois, procuro no Google o que realmente aconteceu."

Vez por outra, temos um gostinho do agitprop estilo anos 50. O Japão é o alvo favorito, e são raros os meses em que não temos artigos sobre os crimes de guerra cometidos pelos japoneses. Há também várias polêmicas contra os EUA por eles tentarem roubar Taiwan e contra as Filipinas por invadirem o Mar da China Meridional.

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Geralmente, essas acusações são surdas, como na vez em que as autoridades acharam que estavam ofendendo alguém o comparando ao Dalai Lama. Recentemente, a China usou as revelações de Snowden como munição contra os EUA, nação que foi acusada – sem um pingo de ironia – de violar direitos humanos.

Passeios armados pelo país ainda existem também. Às vezes, colegas estrangeiros são levados para tours guiados em outra província ou áreas de minoria étnica, onde "reportam" festas dos locais contentes. No verão passado, eles nos levaram para uma vila-modelo cuidadosamente preparada nos arredores de Pequim, onde recebemos um excelente almoço e sermões monótonos dos líderes da aldeia. Não consegui deixar de notar que, fora a equipe do hotel e os políticos, ninguém realmente morava lá.

Conheci Richard* numa dessas viagens de campo da mídia. Ele trabalha com editoração, escrevendo livros didáticos para estudantes estrangeiros que estudam chinês em outros países. Mesmo os estudantes de língua, ele contou, recebem sua parcela de doutrinação.

"Um dos nossos maiores problemas [com os livros] é a propaganda", ele diz. "Eles enfiam suas reivindicações territoriais até nos livros didáticos. Eles sabem que ninguém vai acreditar, mas ainda mandam isso para outros países."

Alguns dos materiais que Richard viu entravam no território do chapéu de papel-alumínio. "Há todo tipo de nonsense ultranacionalista e mitologia. Editei um capítulo uma vez sobre como as escrituras originais do Budismo foram escritas na China. Isso é puro mito." Outro artigo, segundo ele, atestava que a Praça Tiananmen tinha "a mais longa história de manifestações pacíficas".

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Algumas pessoas da equipe estrangeira fumam maconha no trabalho. Já vi gente aparecer chapada nas reuniões.

Richard atribui a inércia organizacional a uma das deficiências mais famosas do comunismo. "Não há incentivo", ele disse. "Você não precisa se esforçar aqui. Para cada pessoa que pega no pesado, quatro ou cinco estão apenas pastando em volta. Esta empresa está perdendo dinheiro, porque as pessoas não têm senso de negócio. Gastamos pelo menos um milhão de dólares em cursos de ensino de ponta: atores profissionais, diretores, tudo. E tudo está juntando poeira em algum armazém, porque ninguém se preocupou em vender isso."

E não são só os chineses. "Algumas pessoas da equipe estrangeira fumam maconha no trabalho. Já vi gente aparecer chapada nas reuniões."

Richard e eu costumamos passar a hora do almoço no mezanino do suntuoso café estilo europeu da Estrela da Morte. É um lugar relaxante para escapar do barulho e do ar tóxico de Pequim. Foi lá que conheci Alex e Chris*, que sentaram para tomar um café e falar de seus empregos.

"Odeio quando eles nos chamam de polidores da língua", me confessou Chris. "É como se o artigo estivesse pronto e eles só precisassem aparar umas arestas. Como se o trabalho fosse só cosmético. Às vezes, temos de reescrever o artigo inteiro. O que fazemos não é maquiagem, é cirurgia plástica."

Diferentemente de nós, Chris parecia levar seu trabalho a sério. "Não há senso de arte", ele protestou. "Não há estilo. Não há incentivo para melhorar a escrita."

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Chris tinha realizado oficinas para melhorar a qualidade da escrita dos colegas. "Todo mundo sabe que somos propagandistas. Não podemos mudar os fatos que escrevemos, mas podemos, pelo menos, melhorar o estilo", ele continuou. "O que escrevemos é difícil de vender para qualquer leitor ocidental, mas não somos obrigados a entediá-los."

Claro, os padrões jornalísticos são mais fracos também. "Temos um grande problema com fontes", destacou Alex. "Eles não se importam em citar a fonte de nada. Às vezes, eles usam telepatia. Os repórteres escrevem: 'Ele ficou profundamente emocionado' ou 'O povo achou o discurso inspirador'. Menciono isso aos escritores, e eles sempre dizem 'Estava assim no original' ou 'Não entendo qual é o problema'. Nos EUA, você seria demitido por uma coisa dessas."

Enquanto a China vai se transformando num país de smartfones e cappuccinos, os deveres da propaganda vão além da mídia convencional. Nossos chefes sabem que, como todos os expatriados, seus empregados estrangeiros dependem da Redes Privadas Virtuais (VPNs) para necessidades diárias, como a pornografia e o Google. E não somos os únicos.

Na tentativa de fazer um rebranding de si mesmo, o governo se volta para as redes sociais – apesar da censura generalizada, coloquialmente chamada de o "Grande Firewall da China", que mantém a melhor parte da internet inacessível. Como um avô que não sabe mexer no computador, o Partido Comunista precisa de ajuda para postar no Twitter e no Facebook.

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"Eles querem todos os benefícios das redes sociais e nenhuma consequência", pontua Alex. "Escrevo os tuítes para nossa revista toda semana. Mas, em vez de simplesmente postá-los, tenho de mandá-los para o editor de conteúdo, que passa tudo para a bureau da América do Norte."

"Só percebi depois de alguns dias que eles esperavam que eu usasse uma VPN", continuou Alex. "Eles também esperam que a gente promova a revista nos nossos perfis do Facebook. Eles querem nos usar para publicidade, mas não querem pagar US$ 60 por uma VPN."

Alex não foi o único. Richard também ficou encarregado de editar o Facebook de sua empresa. "Eu disse: 'E como eu acesso o Facebook? Vocês vão pagar pela VPN?'. Eles responderam 'Use a sua mesmo'."

Claro, os oficiais chineses não podem manter a fachada se pagarem por uma VPN – isso seria reconhecer que a censura existe.

É como um sketch do Monty Python: uma empresa do governo estava disposta a pagar por software ilegal para contornar a censura do governo.

A situação ficou ainda mais kafkaniana em junho, quando o governo celebrou o aniversário da Tiananmen colocando o Google na lista de sites bloqueados. Vários escritórios, incluindo o meu, dependem do Google para as operações diárias: não apenas para buscas, mas também do Google Tradutor (que é muito superior ao Baidu chinês), Google Drive e Gmail. O corte repentino pegou todo mundo de surpresa.

"Se isso continuar por mais tempo", meu chefe suspirou na segunda semana de Bing, "acho que vamos ter de arranjar aquele software".

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É como um sketch do Monty Python: uma empresa do governo estava disposta a pagar por software ilegal para contornar a censura do governo. Parte de mim torcia secretamente para que eles continuassem com a censura só para ver o que ia acontecer, mas a ironia deve ter sido demais, mesmo para os malucos da polícia da internet. O Google Tradutor e outras funções foram eventualmente desbloqueadas, mas busca e e-mail continuam inacessíveis.

A oeste da Estrela da Morte, em Babaoshan, fica a sede da China Radio Internacional – a resposta da China à BBC. Fundada entre os bombardeios da Guerra Sino-Japonesa – Segunda Guerra Mundial para o resto do mundo –, a estação de rádio é mais antiga que a República Popular. Hoje, os empregados da CRI transmitem em dezenas de línguas.

Alan* trabalhava na seção de inglês. Diferentemente de alguns dos meus colegas, ele podia dizer que era jornalista sem rir. Com outros 15 difusores regulares, o trabalho dele era manter a China no ar, em inglês, 24 horas por dia – ventrilocando o governo com sotaque britânico.

"Na verdade, eles não mentem", ele me confidenciou. "Não é o tipo de propaganda em que eles mudam as notícias. Eles simplesmente não falam de certas coisas."

"Eu estava na redação durante os protestos do guarda-chuva [em Hong Kong], e estávamos discutindo as histórias que iríamos cobrir", ele continuou. "Os protestos simplesmente não apareceram. A mesma coisa aconteceu no aniversário de 25 anos da Tiananmen – ninguém nem chegou a sugerir isso."

Perguntei o que poderia acontecer se ele tivesse sugerido essas histórias. "Eles não vão te cortar", ele respondeu. "Não vão dizer 'Você não pode falar sobre esses assuntos, eles são politicamente sensíveis'. Eles vão te dar uma desculpa. Eles vão dizer algo como 'Já cobrimos isso antes' ou 'Não acho que essa história seja interessante'."

Ainda assim, temos muito pouco do que reclamar. A vida é fácil na Estrela da Morte, e a maioria trabalha nos níveis de eficiência pelos quais os burocratas chineses são famosos. Depois de chegar atrasado ao escritório (geralmente entre 9h30 e 10h), tentamos achar um tempo entre as pausas pro cigarro para editar alguns artigos antes do almoço de duas horas. Às 14h, voltamos para o escritório a fim de estudar chinês, trabalhar em projetos freelance ou – se for um dia particularmente chato – assistir a vídeos no YouTube pelas nossas VPNs ilegais.

Como os russos costumavam dizer, "Eles fingem que nos pagam e nós fingimos que trabalhamos".

Nos encontros com os colegas estrangeiros, trocamos piadas sobre as bobagens que publicamos. Garantimos a nós mesmos que só estamos treinando para nossas carreiras reais no "jornalismo de verdade". Às vezes, até acreditamos nisso.

Claro, todos os países usam propaganda. Passo muito tempo imaginando se a mídia ocidental é melhor que isso. De vez em quando, sinto uma leve pontada de culpa e imagino se deveria me sentir um pouco pior por trabalhar numa gigantesca fábrica autoritária de mentiras. Mas me consolo sabendo que o produto está com defeito.

"Para uma máquina de propaganda", concluiu Richard, "eles não são muito bons nisso".

*Os nomes foram trocados, incluindo o do autor, para proteger aqueles que ainda trabalham na China.