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O Governo de Mianmar Está Detendo os Muçulmanos Rohingyas em Acampamentos

Apesar de estarem em Mianmar há séculos, os rohingyas são considerados oficialmente “imigrantes ilegais” de Bangladesh pelo governo e, como tais, têm a cidadania negada, o que os torna um povo sem pátria

“Eles nos disseram: 'Vocês são bengalis — não existe isso de rohingya'”, o imã relembra. “Eles continuaram: 'Se você falar que é rohingya, será jogado no mar'.”

Estamos conversando em um dos acampamentos de pessoas deslocadas internamente (PDI) reservados aos rohingyas — a minoria muçulmana perseguida em Mianmar — nas proximidades de Sittwe, no complicado estado de Rakhine. Ano passado, multidões enfurecidas deixaram centenas de mortos e mais de 10 mil desabrigados, a maioria deles rohingyas.

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Eles me disseram que as visitas dos membros do Rakhine Nationalities Development Party (RNDP) — uma organização política étnico-nacionalista, acompanhadas da polícia e da notória força de segurança de fronteiras, desmantelada recentemente, chamada Na Sa Ka — estavam ligadas a um esforço do governo para documentar quem é elegível para a cidadania, em preparação para o próximo censo nacional. Os rohingyas, apesar de estarem em Mianmar há seculos, são considerados oficialmente “imigrantes ilegais” de Bangladesh pelo governo e, como tais, têm a cidadania negada, o que os torna um povo sem pátria.

Esses esforços pré-censo têm sido criticados como uma tentativa de marginalizar completamente os milhões de rohingya que vivem no país, o que pode acontecer se todos eles fossem identificados oficialmente como invasores estrangeiros — “bengalis” — que não têm lugar em Mianmar e, portanto, nenhum direito. Quando lhe pediram para condenar a violência contra os muçulmanos no Today Programme, Aung San Suu Kyi hesitou, fazendo não declarações como “Condeno todo o tipo de ódio”. Ela disse: “É isso que o mundo precisa entender: o medo não está somente do lado dos muçulmanos, mas também do lado dos budistas”, isso, apesar de os muçulmanos serem 4% da população e terem sido o principal alvo de violência recente. Como minoria vitimizada, você sabe que está em apuros quando uma vencedora do Nobel da Paz não tenta te defender.

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Perguntei ao imã quantas vezes essas delegações tinham visitado os acampamentos. “Quatro vezes”, ele respondeu.

As ameaças repetidas feitas pelo RNDP — um grupo poderoso na paisagem política regional — contra uma minoria já traumatizada têm a intenção óbvia de intimidar. Um relatório do Human Rights Watch identificou o RNDP e organizações budistas como os principais responsáveis pela violência do ano passado, na qual uma série de crimes contra a humanidade foram cometidos — uma tentativa de limpeza étnica do povo rohingya em Mianmar — demonstrando que a campanha contra a minoria já estava em andamento há algum tempo.

Um abrigo no acampamento PDI próximo de Sittwe, Mianmar.

O relatório também aponta que agências estatais (incluindo o Na Sa Ka e outras forças de segurança administradas pelo governo) teriam fracassado em proteger as vítimas rohingyas durante os massacres e, na época, teriam participado diretamente nos ataques contra eles.

“Antes disso, o Na Sa Ka tinha ordenado que todos os líderes religiosos rohingyas fossem ao escritório principal deles [nos acampamentos]”, o imã explicou. “Eles disseram que não podíamos colocar o nome rohingya nos documentos de registro de cidadania, que tínhamos que nos identificar como bengalis.” Se não fizessem isso, alertou o Na Sa Ka, as autoridades permitiriam que as gangues étnicas de Rakhine os atacassem novamente.

As implicações eram claras: o RNDP e forças de segurança sob o comando do governo nacional estavam colaborando para pressionar os rohingyas a negar oficialmente sua identidade, recorrendo à coerção agressiva para conseguir isso. O que torna essas alegações tão perturbadoramente plausíveis é que elas fazem um paralelo com testemunhos que ouvi de incidentes similares no começo do ano e relatórios da mídia sobre registro forçado nos acampamentos.

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Depois de conversar com o imã, falei com alguns dos recém-chegados ao já lotado acampamento PDI. Muitos deles tinham vindo de Aung Mingala, o único bairro de Sittwe ainda ocupado pelos rohingyas, embora em total confinamento, atrás de postos de controle bem vigiados.

Um porta-voz do governo disse à imprensa que o novo contingente tinha deixado seu antigo lar “voluntariamente”, mas considerando que esse é o mesmo governo acusado de cumplicidade na tentativa de limpeza étnica dos rohingyas, é difícil não suspeitar dessas afirmações.

Guardas no acampamento PDI dos rohingya em Sittwe, Mianmar.

“Oficiais do estado de Rakhine nos mandaram sair”, um homem me disse. “Eles disseram que se ficássemos em Aung Mingala, não teríamos comida — que a vida seria melhor nos acampamentos. [Mas] não nos deram nenhuma comida aqui — vivemos do favor das outras pessoas.” Essa afirmação foi recebida com acenos enfáticos de acordo dos ouvintes próximos.

Com essa evidência, é difícil tirar da cabeça a ideia de que essas pessoas foram propositalmente deslocadas. Perguntei a um idoso do grupo como ele se sentia sobre a mudança e se ele estava feliz com a nova casa. Sua resposta franca — “Fomos forçados a vir para cá” — não deixou muito espaço para interpretação.

“Alguns líderes da comunidade rohingya que cooperam com os militares e o Hlun Thin [a tropa de choque] vieram e me mandaram sair. Eles disseram que as pessoas que tiveram as casas queimadas na violência do ano passado tinham que vir para os acampamentos”, ele explicou.

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“Estou infeliz aqui”, disse outra senhora — aparentemente muito frustrada — enquanto caminhávamos pelo caminho lamacento debaixo de chuva. “Minha [comunidade] se mudou para cá, então vim com eles. Eles disseram que receberíamos mais comida — o que eu posso fazer?”

E tem havido mais comida? Perguntei. “Não!”, respondeu ela, gesticulando como se isso fosse óbvio pelos arredores.

Em outra parte do acampamento, conversei com um líder da comunidade que tinha saído de Aung Mingala meses atrás, antes de o grupo novo chegar. Ele me contou que, ainda enquanto estava em Sittwe, em abril de 2012 — um pouco antes do anúncio do governo de que haveria um censo — o vice-ministro de imigração, Kyaw Kyaw Win, visitou o lugar e explicou que estava sendo pressionado pelo RNDP para determinar quem entre os rohingya seria elegível para cidadania. Naquele ponto, nenhuma ameaça foi feita, mas o ministro teria dito à comunidade: “O governo da união [nacional, em oposição ao governo estadual] pode não usar a palavra rohingya”.

Essa declaração corrobora o que foi dito por uma fonte de Naypyidaw, a capital administrativa da nação, que falou comigo sob a condição de permanecer anônimo. “Kyaw Kyaw Win visitou Aung Mingala um pouco antes das coisas piorarem”, ele disse.

Um abrigo no acampamento PDI rohingya próximo de Sittwe, Mianmar.

A fonte, que tem proximidade com vários membros do parlamento nacional, informou que o ministro da imigração, Khin Yi admitiu que as medidas do pré-censo que visam os rohingyas foram tomadas pelo governo “por causa de reclamações vindas de Rakhine”. Ele também observou que o RNDP vem querendo extirpar os rohingyas de sua comunidade há tempos e que “agora o governo deu a eles sinal verde”.

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“Há pelos menos 50 valas comuns [de rohingyas] em Rakhine. Muito mais do que as pessoas pensam”, acrescentou ele. Até agora, apenas algumas foram reportadas.

Phil Robertson, da Human Rights Watch, acredita que “está claro, desde o início, que a política do governo de Mianmar, tanto no nível nacional como local, quer denegrir e destruir as realizações dos rohingyas como grupo étnico distinto. O RNDP é um dos principais protagonistas nessa guerra de identidade. O que não é uma grande surpresa, já que o Human Rights Watch descobriu que os líderes locais do RNDP estavam envolvidos ativamente no planejamento e implementação da violência étnica contra os rohingyas”.

Ele acrescentou que, apesar desse comportamento, “o governo da união continua feliz em delegar a responsabilidade de lidar com os rohingyas ao governo estadual [dominado pelo RNDP]”.

Tal prática parece indicar, no mínimo, o consentimento tácito do governo à agenda anti-rohingya do RNPD e, julgando pelo testemunho detalhado acima, talvez até mais.

Independente de quem é o verdadeiro responsável, a pergunta que permanece é: qual o propósito final desse aparente esforço de limpeza étnica contra os rohingyas? Um assassinato em massa parece improvável. É mais provável que os rohingyas sejam deixados num limbo, enquanto cada vez mais deles são cercados em acampamentos até que a desnutrição, a miséria endêmica e doenças façam aqueles com meios disponíveis deixarem o país o mais rápido possível.

Logo antes de voltar para casa, conversei com outra fonte anônima, que disse que trabalhadores de uma ONG que haviam participado recentemente de uma reunião de coordenação com o governo local, ficaram sabendo que parte ou todo o apoio aos rohingyas deve ser restringido ou finalizado, assim que o período de “reassentamento e apoio” seja formalmente encerrado. As mesmas fontes revelaram que os oficiais pretendiam estabelecer delegacias em todos os quarteirões dos acampamentos, para ficar de olho em tudo que os rohingyas fizerem.

“As restrições à entrada de jornalistas nos acampamentos foram intensificadas”, eles acrescentaram.

Algumas semanas atrás, uma mulher de 90 anos foi esfaqueada até a morte por uma gangue de Rakhine. Por enquanto, os rohingyas estão entre a cruz e a espada, com poucas chances de alívio; eles podem ficar em suas casas, correndo o risco de serem assassinados, ou fugir para os guetos, que se tornam cada dia mais cheios de doenças e perigos.

Siga o Emanuel no Twitter: @EmanuelStoakes