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Ocupação Saraí Ganha Decreto de Apropriação e Vira Moradia Popular em Porto Alegre

Estivemos na Ocupação Saraí, um prédio abandonado no coração de Porto Alegre há dez anos, que, depois de quatro ocupações populares, foi desapropriado pelo governo estadual e passará a ser um prédio residencial para as 24 famílias que ali moram.

Logo na entrada do prédio, selado por uma corrente e um cadeado, uma pequena janela estabelece a conexão do interior com o mundo de fora. E é por essa portinhola que o Gaiteiro, que atua como porteiro do prédio nesta tarde, pergunta pela identificação dos visitantes e abre o cadeado.

Estamos na área de segurança da Ocupação Saraí, um prédio abandonado no coração da capital gaúcha há dez anos, que, depois de quatro ocupações populares, foi desapropriado pelo governo estadual e passará oficialmente a ser um prédio residencial para as 24 famílias que ali moram.

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A recepção do prédio é feita por um cartaz que indica as medidas de segurança e o sistema de operação da portaria. A imagem é complementada pela frase “Desistir, jamais”, uma de tantas que fazem do imóvel um livro aberto. No segundo andar, há outro cartaz com os telefones de contato de interessantes e interessados, a cozinha e a sala de recreação infantil.

Não foi sem organização que a Ocupação Saraí sobreviveu a quatro tomadas do imóvel nos últimos dez anos – os chutes na porta aconteceram em 2005, 2006, 2011 e 2013. E também não foi sem ela que o movimento garantiu a vitória numa ação judicial que chegou a ter o apoio do governo estadual.

Por dentro, o imóvel permanece ajeitado da forma que o grupo de moradores da ocupação decidiu. Dos sete andares, cinco estão tomados por famílias que se dividem em apartamentos enjambrados com papelões, sacos de lixo e pedaços de madeira, que pontuam biografias individuais e delimitam a vida em coletivo.

“A maioria das pessoas fecha a casa e passa a chave, mas eu sou mais aloprada. Não gosto. O meu estúdio fica aberto, tem essa fluência”, apresenta a moradora Iolanda Rodrigues, de 62 anos.

Io, como gosta de ser chamada, mora na Ocupação há oito meses. Trocou o aluguel que pagava em um estúdio, também no centro, para dividir a vida com a Saraí. Desnudou-se do caráter supérfluo de uma vida burocraticamente regrada para viver como vendedora de incenso pelas ruas da Cidade Baixa, o reduto da boemia porto-alegrense. “Tenho uma sensorialidade diferente da sociedade comum. Não fiz aposentadoria, não comprei um imóvel. Vejo a moradia como uma estrutura da qual se depende para trabalhar”, avalia a vendedora.

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É ela quem nos acompanha ao sétimo andar, a área de confraternização organizada pelo grupo, que recebe oficinas, festas da comunidade e oferece, em troca, a mais bela vista de Porto Alegre – o pôr do sol no Guaíba, algo que vale milhões no mercado imobiliário. Para quem não é da capital gaúcha, talvez seja difícil mensurar o valor dado ao fenômeno natural, maior cartão-postal da cidade.

Para quem entende de imóveis em Porto Alegre, a localização central do prédio aliada à vista do lago equivale a uma chuva de cifrões. Uma disputa que não foi levada na brincadeira pelo proprietário do prédio, Ricardo Deconto, que recusou a oferta de R$ 2 milhões feita pelo governo estadual pelo prédio e agora corre o risco de receber menos ainda, uma vez que o decreto de desapropriação foi assinado. Isso porque o documento assinado pelo governador Tarso Genro garante a utilização social do imóvel, que estava improdutivo há mais de uma década. Com isso, a briga pelo valor a ser pago pelo Rio Grande do Sul a Deconto poderá ser judicial, mas o empresário não terá como se negar a vender o imóvel.

É dentro dessa lógica comercial que, às sombras da Ocupação Estelita, de Pernambuco, que ganhou cara de globais numa campanha nacional, a Saraí permanece com menos alcance, porém, não com menos importância.

“Esse prédio cria um precedente político e jurídico para a luta da reforma urbana, da cidade, do combate à especulação imobiliária, da questão dos vazios e do cumprimento da função da propriedade. Ele acaba se tornando um símbolo que vai muito além da luta das famílias”, explica Ceniriani Vargas da Silva, a Ni, 26 anos, coordenadora do Movimento Nacional da Luta pela Moradia (MNLM) de Porto Alegre.

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Ni foi moradora da Ocupação Saraí em 2006 e hoje vive com as demais famílias da segunda ocupação em um prédio cedido pelo governo federal para os habitantes da Saraí. A jovem fez de sua luta pela moradia um destino na vida: a luta pela reforma social, entendida por ela como direito à moradia em áreas habitáveis na cidade.

“Há mais de 70 prédios abandonados no centro da cidade e todos os projetos de habitação popular ficam localizados na Restinga, uma zona sem infraestrutura, nem mesmo para atender as famílias que já moram por lá”, avalia Ni.

O secretário municipal de Governança Local, Cezar Busatto, é quem está à frente do compromisso de acomodação temporária das famílias da Ocupação Saraí até que o prédio seja reformado. Segundo o secretário, o entendimento político é que todas as instâncias governamentais, bem como os moradores da ocupação, deverão entrar num acordo que irá definir as responsabilidades de cada um no projeto. Como funciona dentro da Ocupação, onde cada família é responsável por uma atividade doméstica.

“Nós vamos viabilizar a moradia temporária por meio do aluguel social”, explica Busatto. “As famílias estão sendo cadastradas para entrar no aluguel até que a reforma fique pronta, ou elas poderão optar por ingressar no programa Minha Casa, Minha Vida”, diz.

Nem Iolanda, como moradora, nem Ni acreditam que a Ocupação irá se desfazer pelo programa nacional de habitação popular. De acordo com a coordenadora do MNLM, há por trás da Saraí um princípio, que é o da reforma da cidade: “Que cidade queremos? Uma cidade humana, um centro onde as pessoas circulem à noite e que não seja o vazio, como é hoje, só com os prédios comerciais. As pessoas têm medo de circular na própria cidade”.

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Dona Io, que vai para o trabalho a pé da Ocupação, também não pensa em entrar no aluguel social sozinha – que, segundo Buzatto, deverá ficar na faixa de um apartamento no valor de R$ 400 por mês. “Esses aluguéis baratos ficam longe da cidade”, sabe bem Iolanda. “Mas vamos dar um jeito de fazer o melhor, tentar baixar os preços”, garantiu o secretário.

Depois do anúncio da liberação do Aluguel Social, a Ocupação já se reunia para decidir o rumo de cada uma das 24 famílias. E, segundo Ni, a ideia do grupo, homologada por votação, é que consigam alugar um pequeno prédio ou um sobrado para todos. “Eles querem seguir juntos.”

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