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Salvando o Sudão do Sul

Os Garotos Perdidos

Machot foi capturado ainda jovem pelos rebeldes que o alistaram à força em sua unidade. Após anos vivendo em campos de refugiados, Machot conseguiu um visto paras os EUA. Hoje, sua história ficou famosa por causa do documentário 'The Lost Boys of Sudan...

Foto: Tim Freccia

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo e conflitos na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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De acordo com Machot, ele nasceu em Bentiu, numa família de 14 filhos. Ele é nuer, mas sua avó era dinka. Machot tem uma risada calorosa e adora fazer piadas. Falando com ele pelo telefone, você não imagina sua criação humilde. Se o conhecesse pessoalmente, a primeira coisa que você repararia seriam as cicatrizes em seu rosto, queloides formados deliberadamente por cortes profundos gravados em seu rosto quando se tornou homem. Contudo, há cortes invisíveis ainda mais profundos em sua alma e psique.

Quando criança, Machot vivia em uma casa de pau a pique tradicional com um grande telhado de palha. A maior estrutura da vizinhança era o luak, um estábulo, cercado por cabanas menores de pau a pique chamadas diels ou tukuls. O pai de Machot vinha de uma família que fazia lanças, amolando longas hastes de metal trazidas do norte até que se tornassem lâminas afiadas. Um homem capaz de fazer uma bela lança é chamado “mestre das lanças”, e acredita-se que ele tem o poder de predizer o futuro. A mãe e as irmãs de Machot trabalhavam na colheita enquanto ele saía com seu pai para pescar, caçar e cuidar das vacas. A riqueza era medida pelo número de vacas que uma família possuía, o que também regulava quantas esposas um homem podia sustentar. Em 1989, o pai de Machot tinha três esposas (apesar da inclinação de sua avó para afugentar da propriedade toda mulher que ele trouxesse para casa), milhares de vacas e grandes áreas de terra onde o gado pastava. Machot não queria mais nada.

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Estudar era geralmente considerada algo ruim por causa do medo de que homens que soubessem ler e escrever aparecessem para tentar interferir no estilo de vida simples e pastoral da região — mais especificamente os sudaneses cobradores de impostos que apareciam na casa do pai de Machot pedindo vacas como forma de pagamento. Para Machot e sua família, ter estudo significava que você trabalhava para o governo e se tornou corrupto.

Foi então que a plácida existência de aldeão de Machot chegou a um fim abrupto.

Nas escuridão do começo duma manhã, os sons de tiroteio e de granadas explodindo soou por sua aldeia. Aterrorizado, Machot fugiu para se esconder no mato. Quando voltou, todos haviam ido embora. Com oito anos de idade, Machot estava sozinho.

Machot começou a andar. Ouviu dizer que a Etiópia era onde crianças como ele estavam indo. Nessa época, havia bandos do que mais tarde se tornaria conhecido como Garotos Perdidos vagando pelas selvas do Sudão do Sul. Quando os rebeldes capturaram essas presas jovens, agruparam as crianças por tamanho. Os meninos maiores e mais fortes eram imediatamente alistados à força. Os menores e mais fracos eram deixados vagando até que fossem pegos e avaliados novamente.

Em algum momento, Machot foi interceptado por rebeldes que o alistaram à força em sua unidade. Foi uma introdução brutal aos estupros, espancamentos e abusos constantes. Se recrutas novos se recusassem a lutar, seus próprios comandantes os executavam.

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Foi aí que a peculiar noção de tempo e espaço de Machot ficou óbvia. Machot esqueceu grandes partes de sua vida e pula outras, frequentemente deixando de fora os anos em que passou nos acampamentos, como se eles nunca tivessem acontecido.

Após um ano sem contato, o pai de Machot começou a investigar o que poderia ter acontecido com seu filho. Encontrou-se com Riek Machar, então um dos líderes rebeldes do Exército Popular de Libertação do Sudão (SPLA). Quando o pai de Machot exigiu que seu filho fosse devolvido, Machar recusou. Em vez disso, disse que se o pai de Machot concordasse em deixar os rebeldes educarem Machot e seus irmãos, eles seriam indicados aos cargos do novo governo assim que que o Sudão do Sul se estabelecesse como estado independente.

Machot em sua casa em Lynnwood, Washington. Machot é nuer. É difícil para estrangeiros distinguir nuer de dinka ou de outras tribos da região. Saber os respectivos padrões de suas cicatrizes faciais ajuda, mas, mesmo assim, é fácil se confundir. Talvez porque as características mais distintivas possam ser filosóficas: os nuer são um povo mais democrático, que se importa muito menos com a linhagem real que os dinka. Foto: Kyle Johnson. 

Machar pediu então ao pai de Machot que abrisse mão da custódia de seu filho, enfurecendo o pai, que recusou. Machar ordenou que ele fosse espancado por seus guardas, aprisionado e novamente espancado diversas vezes antes de ser solto.

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Uma vez libertado, o pai de Machot ficou gravemente doente, vomitando sangue e ficando mais fraco a cada dia. Ele morreu um mês depois.

Machot conseguiu escapar do SPLA e continuou em sua fuga para a Etiópia. Quando chegou ao acampamento da ONU, que lembra se chamar Etom, descobriu que, na verdade, o acampamento estava sob controle do SPLA. Sem seus pais, Machot foi levado como órfão (o que não era muito mentira) e estudou na escola do acampamento por seis meses, o tempo todo sem saber o que havia acontecido com seu pai e suas três mães após o ataque a sua aldeia. Rebeldes que viviam no acampamento trabalhavam como informantes, identificando os jovens que estavam prontos para treinamento militar e que seriam então enviados na calada da noite.

Machot estudou muito, recuperando suas forças e se adaptando a uma rotina consideravelmente regular, dada sua situação. Mas então, uma noite, vieram busca-lo. Arrastaram-no até um veículo e dirigiram por cinco dias até outro acampamento aparentemente da ONU. Durante o caminho, seus captores rebeldes disseram-no que eram seus pais. Alertaram Machot que o matariam caso tentasse escapar.

Um rebelde chamado Taban Deng Gai supervisionava os interesses do SPLA dentro do acampamento. Sua moradia era grande, cercada de guarda-costas. Controlava os mercados negros locais de comida, mercadorias e crianças. Deng Gai reapareceria na vida de Machot mais tarde no Movimento Popular de Libertação do Sudão.

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Machot permaneceu sob a guarda do SPLA durante anos. Quando perguntado sobre suas atividades, suas respostas são vagas. Ele diz que era operador de rádio, porque aprendeu a falar árabe. Disse também que sabia usar armas.

Machot ficou nos acampamentos do SPLA até 1991, quando a longa guerra civil na Etiópia terminou e os etíopes começaram a acabar com os acampamentos, porque já não queriam mais nuers em seu território. Machot e um grupo de garotos com quem vivia decidiram ir até o Quênia, onde ouviram dizer que os acampamentos eram seguros. Contudo, tinham que passar pela guerra no sul do Sudão primeiro. Foram rumo ao oeste até Nasir, cidade perto da fronteira etíope. Quando os bombardeios se tornaram intensos demais, foram em direção sul até Kakuma, um acampamento esparso da ONU no deserto.

Machot viveu em Kakuma por cinco anos. A ONU forneceu a ele uma tenda e um cobertor, e toda a semana recebia uma xícara de farinha de milho e óleo de cozinha. Ao contrário das condições descritas pelos releases de imprensa, a vida no acampamento era uma existência dura e feia. Logo os garotos começaram a falar sobre tentar uma vida nova em Cartum. Falava-se ser possível encontrar trabalho e ir à escola na capital do Sudão. E não havia guerra. Ele e um grupo de garotos mais velhos simplesmente deixaram o lugar e andaram em direção norte por dois meses.

Mas Cartum não era muito melhor. Campos de refugiados cercavam a cidade. Contudo, havia bicos para se pegar na construção, e foi o que Machot fez. No começo, só conseguia carregar um tijolo a cada vez, de tão fraco e magro que estava. Foi também em Cartum que Machot encontrou Paulino Matip Nhial, comandante nuer que lutou para o governo do Sudão. Machot se lembrava do rosto de Matip Nhial – ele foi um dos homens responsáveis pela violência em sua aldeia. Apesar disso, se tornaram amigos.

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 Foto de 8 de fevereiro de 2011 do presidente do Sudão do Sul, Salva Kiir, de chapéu de caubói, e do vice presidente Riek Machar, à esquerda. AP Photo/Pete Muller, Arquivo. 

Em 1993, Machot largou seu emprego e deixou Cartum. Por pena, seu chefe deu a Machot 200 dólares. Ele e mais dois amigos que haviam guardado dinheiro partiram rumo ao Quênia pela Etiópia, dessa vez substituindo as longas caminhadas por ônibus e hotéis baratos. Quando chegaram à fronteira em Malia, fizeram amizade com um nuer de Bentiu, cidade natal de Machot. Os três garotos pagaram 600 dólares para cruzar ilegalmente a fronteira e foram orientados a esperar em um hotel no lado etíope. O suposto coiote não apareceu, mas a polícia, sim. Os garotos foram deportados, voltando então ao campo de Kukuma, o lugar por onde começaram a jornada um ano antes.

Havia rumores em Kakuma de que Garotos Perdidos poderiam imigrar para os EUA saindo de Ifo, um campo no leste a cerca de 80 quilômetros da fronteira somaliana. Machot já havia ido atrás de rumores e só se decepcionou. Os Garotos Perdidos eram famosos por simplesmente deixar os campos e vagar por quilômetros e quilômetros em vão. Alguns morriam, outros eram capturados e alistados à força e outros apenas chegavam a outro campo.

Mas alguma coisa em Machot o impeliu a continuar tentando. Em março de 1995, Machot viajou com um grupo de garotos que corajosamente compraram a polícia queniana e bandidos somalianos para chegar em segurança a Ifo. A ONU estava se preparando para chegar o campo, emitindo para os Garotos Perdidos vistos para os EUA e para a Europa. Assim que chegaram, Machot e seus amigos logo preencheram todos os documentos. Três meses depois, foram autorizados a entrar em território norte-americano.

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Machot chegou a Nova York em 8 de setembro de 1995. Não foi uma ocasião alegre. Fazia frio, a cidade era feia e ele estava sob a rígida supervisão de pessoas que não falavam sua língua. Demorou uma hora que descobrisse como usava a televisão de seu quarto, no hotel. Machot não usava o telefone. Tinha sido avisado de que, caso discasse 911 por engano, seria preso imediatamente. Não dormiu e não comeu. Estava apavorado de cometer algum erro que o levasse de volta para o Sudão.

Machot foi enviado para uma família adotiva que ele odiava. Ele ainda não conseguia dormir. Quando o levaram para fazer compras em um brechó, recusou. Não queria vestir “roupas de gente morta”. Ele sabia que quase tudo nos EUA era novo, e era isso que queria. Começou então a brigar com o filho de sua mãe adotiva. Um dia as coisas ficaram tão feias que seus pais adotivos chamaram a polícia. Machot acabou em um abrigo para menores.

Finalmente Machot foi enviado para uma família adotiva que lhe convinha. Estudava muito e adorava correr. Correr o levava de volta a sua terra natal, onde sentia o vento em seu rosto e seu corpo era livre. Destacou-se no atletismo, o que lhe rendeu uma bolsa de estudos na Skagit Valley College em Mount Vernon, Washington. Enquanto estudava, trabalhava em um Burger King. Depois foi para o Departamento de Transportes e, em 2003, entrou para a Costco. No mesmo ano, sua história ficou famosa com o documentário Lost Boys of Sudan. Vieram também os livros, e os norte-americanos descobriram os horrores vividos por milhares de meninos nuers e dinkas.

Machot criou uma instituição de caridade a fim de ajudar refugiados do Sudão do Sul recém-chegados aos EUA. Economizou dinheiro para enviar a seus parentes e visitá-los. Embora houvesse a esperança de uma nova nação, jamais poderia ficar. Não havia mais nada lá para ele.

Em uma de suas visitas, sua mãe pediu-lhe que se casasse, para que pudesse envelhecer e morrer em paz. Ela o informou que ele tinha 24 horas para encontrar uma esposa. Machot foi de casa em casa, falando às candidatas sobre os luxos da vida nos EUA. Passou cerca de 45 minutos em cada casa encontrando moças e suas famílias. Ele podia ter uma vida nova nos EUA, mas jamais escaparia de seu passado.

Com a ajuda de seu primo, finalmente reduziu o número de candidatas a cinco. Depois a três, depois a uma: Rose. Quando contou que era a escolhida, Rose disse que sua maneira de pedir em casamento era arrogante. Ela se recusou a entrar em um avião no dia seguinte, mas concordou em ficar noiva por alguns anos até terminar seus estudos.

Eles se casaram dois anos depois e hoje têm dois filhos.

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Tradução: Flavio Taam