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Por que as Autoridades Indianas Ainda Estão Proibindo o Documentário Sobre o Problema de Estupro do País?

O filme, India's Daughter, é sobre uma vítima de estupro coletivo e tinha estreia mundial marcada para o Dia Internacional da Mulher, mas as autoridades indianas protestaram contra seu conteúdo e a maneira como essa obra retrata o país.

Todos os olhos na Índia estavam voltados para a Suprema Corte de Deli semana retrasada, quando foi anunciado o veredito da proibição da transmissão do controverso documentário India's Daughter. O filme, sobre uma vítima de estupro coletivo, tinha estreia mundial marcada para o Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, mas as autoridades indianas protestaram contra seu conteúdo e a maneira como essa obra retrata o país.

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Na quarta-feira passada, um banco de divisão (um painel de juízes) da Corte anunciou que a proibição da transmissão na Índia continuaria até 15 de abril, quando a corte vai ouvir o apelo contra a proibição novamente. O painel também pediu para ver o conselho oficial emitido pelo governo indiano pedindo a proibição.

O caso foi a julgamento na quarta passada – comandado pelo Chefe de Justiça de Deli, G. Rohini – depois que um banco de dois juízes da mesma corte admitiu ser incapaz de decidir sobre a proibição, porque a cobertura "emocional" da mídia estaria atrapalhando seu julgamento. E aí está uma lição para todos nós.

É fácil pensar no judiciário de um país como completamente impermeável a todo tipo de influência: essa é a independência pela qual toda sociedade livre e justa luta. Em tal utopia, os advogados deveriam ser partidários somente até o ponto considerado necessário por eles para ajudar seus clientes.

E os juízes deveriam estar acima mesmo disso. Eles são imaginados como super-humanos, que devem pensar, viver e trabalhar num vácuo, tendo em mente apenas a Constituição e os vereditos anteriores. (A Índia segue a lei comum, em que decisões judiciais anteriores têm o poder de legislação.)

Mas isso não pode ser verdade. Se a hoi polloi, a mídia, o establishment político e todos os outros pilares da sociedade falam em uma só voz emocionalmente carregada, então é impensável que parte desse fervor se infiltre na câmara dos juízes? "[Juízes] não são de outro mundo", disse o juiz B. D. Ahmed, também da Suprema Corte de Deli. "Eles podem ser pressionados subconscientemente pelos julgamentos da mídia."

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Para quem não sabe, India's Daughter é um documentário britânico, parte da série da BBC Storyville, sobre a vítima de um brutal estupro coletivo em Deli em 2012. A mulher, uma jovem estudante de fisioterapia, foi atacada e estuprada por seis homens num ônibus em movimento. Os estupradores inseriram uma barra de ferro dentro dela e puxaram seu intestino para fora. Ela ficou hospitalizada por duas semanas depois do incidente até sucumbir aos ferimentos.

O documentário, da cineasta britânica Leslee Udwin, contém uma entrevista com um dos estupradores condenados dentro de sua cela. Olhando calmamente para a câmera, Mukesh Sigh expressa uma chocante falta de remorso. "Uma garota é muito mais responsável por um estupro do que um garoto. Uma garota decente não anda por aí à noite", ele afirma. "Trabalhos domésticos e limpeza são coisas de menina, não ficar andando por aí em boates e bares à noite, fazendo coisas erradas, usando roupas erradas."

A equipe de India's Daughter divulgou esse trecho nos canais indianos uma semana antes da estreia do documentário. Foi aí que a merda foi parar no ventilador proverbial. O vídeo se tornou viral, o Twitter e o Facebook foram inundados por comentários de espectadores ultrajados. O Guardian, por exemplo, publicou 22 artigos sobre a polêmica nas últimas duas semanas. Mais de um artigo e meio por dia.

Em 2013, Mukesh Sigh foi sentenciado à morte pela Suprema Corte de Deli, mas apelou. O caso agora está na Suprema Corte da Índia, que deve anunciar o veredito final – uma maneira indireta de atestar que a questão está sub judice, que também é uma maneira indireta de dizer que o judiciário ainda está deliberando sobre o destino de Mukesh. E, depois da admissão franca de um banco judicial de que sua integridade foi comprometida por um "julgamento da mídia", não é absurdo pensar que o novo banco está suscetível ao mesmo problema.

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Você pode não concordar que publicar entrevistas com acusados sob julgamento pode prejudicar os procedimentos de um tribunal, mas é difícil discordar de que isso merece atenção legal especial. Fosse qual fosse o veredito – proibição ou não –, teríamos de confiar que os juízes chegaram a essa decisão depois de pensarem em todas as consequências, não só para a liberdade de expressão na Índia, mas também para o direito de um homem a um julgamento justo.

Isso não quer dizer que tudo que o governo indiano fez sobre a controvérsia foi justificado. Os políticos do país têm usado o caso para justificar seus pontos de vista, pisoteando sobre isso numa dança ultranacionalista de policiamento moral e censura.

Nas últimas semanas, os políticos indianos superaram uns aos outros no ridículo de suas declarações. Durante um debate no Parlamento sobre India's Daughter, o ministro de Questões Parlamentares, Venkaiah Naidu, afirmou que o documentário é uma "conspiração internacional para difamar a Índia". (Não é.) Meenakshi Lekhi, o porta-voz nacional do partido no poder, alegou que a transmissão do documentário ia "afetar o turismo" no país. (Muito tarde para isso.) O ministro do Interior, Rajnath Singh, anunciou que o governo buscaria ações legais contra a BBC por transmitir India's Daughter no Reino Unido.

Indianos protestam contra um estupro coletivo em Nova Deli em 2012. Foto via usuário do Flickr Ramesh Lalwani.

Seria bom se os políticos indianos tivessem lembrado o que aconteceu com a Barbra Streisand quando ela tentou remover uma foto aérea de sua casa da vista pública. Num mundo com internet, proibir alguma coisa – ou pior, falar em proibir alguma coisa – é espetacularmente inútil. Não só é algo difícil de executar, mas apenas aumenta o interesse pela coisa a ser proibida. Ninguém pode realmente calcular quantas das visualizações, retuítes e compartilhamentos de India's Daughter foram incentivadas pela ânsia do governo em proibir o filme.

Além disso, tentar reprimir críticas é a antítese de uma democracia. O establishment político deveria saber que há muito a se aprender com crítica construtiva, especialmente se isso revela uma verdade feia. Levou menos tempo para os líderes do país imaginarem que India's Daughter é uma "conspiração internacional" do que para tomarem alguma ação contra os advogados atuantes, que fazem declarações horrivelmente misóginas no documentário.

Se as autoridades dirigissem toda essa energia e recursos para fins melhores, estaríamos mais perto de abordar o problema social levantado por todo esse tumulto.