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viagem

Selva de Pedra

Percorrendo a Via Anhanguera, rumo ao pico do Jaraguá, uma aldeia guarani resiste encravada na selva paulistana.

Bartolomeu Bueno da Silva, o famoso Anhanguera, é celebrado até hoje por aplicar nos índios Goyazes o seguinte golpe: incendiar uma cuia de cachaça fazendo os índios acreditarem na ameaça que ele queimaria os rios caso não revelassem o local de suas minas de ouro. Anhanguera tem o singelo significado “Diabo Velho”, apelido justo para alguém que, como bom Bandeirante, matou, estuprou e escravizou milhares de nativos. Séculos depois, me pego pensando nessa história enquanto percorro a Via Anhanguera, rumo ao pico do Jaraguá, onde uma aldeia guarani resiste encravada na selva paulistana. Pra quem vê de fora, a escassez material é óbvia, levando em conta que parte das casas são feitas de restos de madeira—como barracos de uma favela. Mas, do portão para dentro, a sensação de segurança de uma vida realmente comunitária já não nos permite mais confundir a Tekoá Pyau (aldeia nova, em guarani) com favela alguma. Primeiro porque ali dentro só se fala em guarani. “Quando visito meus amigos, eles dizem: ‘mas você continua sendo índio, mesmo usando roupas?’ Eles não veem que esses objetos que tenho não mudam aquilo que eu sou?”. declara Evandro Tupã Mirim (ao lado), nosso contato na tribo. De fato, além do enorme cachimbo de madeira entalhada que os guaranis pitam sem parar, Evandro porta muitas outras coisas não-indígenas. Celular, fones de ouvido no pescoço, e-mail, messenger, a mania de ler jornal, o ótimo português (algo raro aqui), nada disso faz dele menos índio. Aos 26 anos, Tupãzinho faz jus ao sobrenome: é uma liderança nata, com uma mente afiada em uma vida dividida entre dois mundos. “É um impacto muito duro. Entrar em uma sala de aula onde as crianças têm uma cultura que não é compatível com a nossa.” Nascido na aldeia guarani de Parelheiros, o pai tinha um amigo na cidade, com quem fez um acordo que obrigou o filho a abandonar a vida tribal rumo aos estudos. Desnecessário dizer que uma escola pública na periferia de São Paulo não estava preparada para receber uma criança indígena. Na Tekoá Pyau, os pequenos guaranis têm mais sorte: são alfabetizadas ali mesmo, em guarani e, a partir dos sete anos, começam a aprender português. Evandro ficou até os 10 anos na cidade, chegou a terminar a oitava série. “Pretendo continuar estudando, entrar em uma faculdade de Direito. Mas, no momento, quero ver o que é bom para mim. Porque depois que você se forma, vai trabalhar onde? Na cidade? Não quero morar em uma cidade, porque isso não é nosso. Não é para nós.”, desabafa, mostrando que crises existenciais não são uma exclusividade de brancos. Nenhuma das mais de 300 pessoas que vivem aqui querem ficar na cidade. Na verdade elas nem vivem em São Paulo—passam alguns meses e depois voltam para sua reserva. “Isso eu não posso contar onde fica, é um segredo nosso. É onde a gente vive do nosso jeito. Aqui, se a gente quiser caçar, vai caçar o quê? Um carro?”, ironiza Evandro. O jeito de ser guarani é chamado de “Nhande Reko”, um conjunto de tradições que versam sobre todos os aspectos da vida, dos ritos aos hábitos alimentares —os guaranis só fazem uma refeição por dia—de manhã é só chimarrão e fumo! Fomos para o terceiro espaço coletivo mais importante do lugar: o campo de futebol que, no dia, pegava fogo com uma pelada. Evandro continua discorrendo sobre a importância dos conhecimentos tradicionais: “Na cidade, os brancos acham que são superiores a você porque eles têm diploma. Isso é papel. Papel você pode jogar fora, queimar. Mas o que os antigos têm para nos passar… isso fica.”E pra você? Onde fica a Terra Sem Males (um lugar que, segundo a lenda indígena, não há fome nem trabalho; onde as plantas nascem sozinhas, a mandioca já se transforma em farinha e a caça já chega morta aos seus pés). Tem que morrer para chegar lá?, tento arrancar um pouco mais sobre suas crenças. “Sabe que muitos dos mais velhos não contam muita coisa sobre isso, sobre exatamente o quê eles estão buscando. Eles falam que você vai aprender quando for mais velho” ele explica, enquanto a todo momento troca algumas palavras em sua língua com quem passa por ele. Tupã é, no mínimo, popular por aqui. E você? Pretende ser cacique? “Não. Prefiro é ser o amigo dele!”, ri, ciente de suas responsabilidades para com aquela gente. A aldeia do Jaraguá está longe de ser comparada a Ywy marã e’y (a Terra Sem Males. Os antigos sempre acreditaram que esse lugar mítico estivesse localizado no plano físico, depois do oceano). Mas, por alguma razão inexplicável, é aqui que eles continuam a buscá-la.

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