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Vice Blog

Teremos saudade do Minhocão

Uma trolha horrível demais para simplesmente ir embora.

Não se iluda, o bicho é fotogênico.

O Elevado Costa e Silva (ou Minhocão para os mais chegados) divide sentimentos e uma cidade ao meio. Trata-se de uma trolha de 3,4 quilômetros de concreto que aterrissou em 1971 numa das regiões onde São Paulo era mais Buenos Aires, com seus prédios de arquitetura humanizada, portarias com maçaneta dourada e arvorezinhas pelo passeio, transformando tudo numa merda feia.

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Sob o revestimento cinza e as estalactites de gotas de água podre que pendem do teto, o trambolho esconde uma lenda urbana paulistana: a de que o então prefeito biônico Paulo Maluf – hoje alçado a uma dupla condição conflitante: padrinho político e procurado pela Interpol -  teria tocado a obra pra facilitar seu próprio trajeto de casa até o trabalho. Engenheiro de formação, Maluf ama obras faraônicas. Não à toa, tirou da sua Caixa de Pandora urbanista as Marginais Tietê e Pinheiros, a Avenida Faria Lima, a Radial Leste e uma longa lista de viadutos e pontes – das quais ele muito se orgulha e usa, sem moderação, como argumento político.

No dia 31 de julho deste ano, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, sancionou o Plano Diretor Estratégico, um documento que direciona a vida urbanística da maior cidade da América do Sul. De acordo com esse registro, nossa querida e dicotômica serpente de cimento poderá desfrutar de diversos futuros: ter o tráfego de veículos motorizados interrompido, virar borboleta e abrigar um jardim suspenso ou até mesmo chegar às últimas consequências e sofrer uma demolição.

A classe média paulistana esclarecida, com suas bicicletas de instituição financeira, hortas domésticas de produtos orgânicos e senso estético e arquitetônico forjado no eixo Berlim-Nova York, curtiu a notícia. Mas entre alguns moradores cujas janelas ficam a cinco metros da construção, comerciantes da região, taxistas, motoboys e outros seres que dependem ou simplesmente aprenderam a conviver com a minhoca, a acolhida não foi tão efusiva. Por chocante que seja, o Minhocão desperta paixões.

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Há 44 anos capitaneando uma loja de antiguidades nas redondezas, Dona Cecília tem 85 anos e diz – de maneira austera – que o problema ali são os desabrigados que se espalham embaixo do Elevado, e não a obra em si. “De uma maneira suave, vou dizer que eles são moradores de rua. Mas tenho vontade de chamá-los de uma palavra feia, que começa com V e termina com O”, fala. Seriam, então, vagabundos?

A soleira do negócio da Dona Cecília vive infestada de mendigos. A população de rua cresceu no local depois da investida do poder público na região da Luz, onde funciona o que o povo de São Paulo chama de “Cracolândia”: uma zona semiautônoma onde viciados de baixa renda tentam sobreviver a si mesmos, escondidos sob cobertores que protegem suas peles invariavelmente escuras.

Para a Dona Cecília, Haddad é um “moleque” que cria ciclovias em vez de “pintar as paredes” da cidade. Depois de proferir alguns preconceitos, como “São Paulo não é mais São Paulo, é ‘Sum Paulo’”, nos despedimos de uma dessas criaturas que crescem à sombra do Elevado. Ela mandou beijinhos com os lábios para a nossa equipe. Ficamos com medo.

Seguimos pela calçada sob a velha minhoca, tropeçando em viciados, lixo, poças d’água, curtindo o glamour da urbanidade da locomotiva do Brasil.

Depois de tocar insistentemente a campainha de diversos prédios pelo caminho, alguém nos atendeu. Desconfiada, Cida conversou com a gente no hall de entrada de um edifício antigo na Avenida São João. Há 35 anos na área, trabalha como síndica e possui imóveis pela região. Tentou passar uma temporada morando no Jardim São Paulo, Zona Norte da cidade, mas disse que lá é calmo demais. Ela gosta do agito do Centro, apesar de abominar o som alto dos eventos que ocasionalmente acontecem ali. Pedimos para conhecer o seu apartamento. Ela resistiu por 30 segundos, mas acabou nos levando até lá. “Eu, como boa administradora que sou, faria uma ciclovia, derrubaria o Minhocão e reflorestaria as praças”, opina. “Com a construção do parque, o penico que é aqui em baixo passaria lá pra cima.” Quando perguntamos sobre o uso de drogas entre os moradores de rua, a Cida se exalta. “Puxam um fumo danado. Acabei de voltar da Europa. Isso aqui tá pior que Amsterdã.”

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Nesse momento, a impressão que dá é a de que está todo mundo cagando para a existência ou não do Minhocão. O pessoal parece mais ligado na falta de medidas higienistas por parte da prefeitura. Afinal, ninguém quer mendigos morando na calçada de casa. Barulho, trânsito e poluição tudo bem. Para a Cida, “a demolição adiantaria; o parque, não.”

Não é o que aconteceu em Nova Iorque, quando dois moradores de Manhattan passaram a defender que um viaduto ferroviário fora de funcionamento abrigasse uma área de lazer. Anos depois, o projeto foi abraçado pela prefeitura e virou o High Line, um parque suspenso bonitão pelo qual os nova-iorquinos piram. Em São Paulo, a Associação Parque Minhocão vira e mexe está na área colhendo assinaturas para que a ideia ganhe força. Mas é bastante questionável o que a prefeitura de São Paulo julga como lazer e sua maneira de investir e manter esses espaços. Quando prometeram a tal revitalização da Praça Roosevelt, ninguém imaginou que ganharíamos uma praça de concreto, sem banheiros ou bebedouros.

Com a má fama, o Minhocão costuma atrapalhar o pessoal dos negócios. Dois corretores imobiliários que preferem não ser identificados contaram à VICE que o valor de imóveis novos subiria pelo menos 30% com a demolição do viaduto. O trânsito do horário de pico na Rua Amaral Gurgel, embaixo do Elevado, também afasta a freguesia. “Mas a ideia do jardim suspenso ficaria linda. E ainda valorizaria a área”, opinou um deles.

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De segunda a sábado, o Elevado tem suas vias fechadas às 21h e recebe skatistas, ciclistas, gente passeando com cachorro e até mesmo quem está a fim de fumar um beck sem ser abordado pela polícia. Às 6h30 ele reabre e volta a ser tapete para os automóveis. Aos domingos e feriados, está sempre fechado e costuma abrigar intervenções artísticas e quem queira passear por ali.

Em 2010, a APPM realizou mil entrevistas pela cidade para saber a opinião das pessoas sobre o assunto. A confusão continua: a maioria é contra a demolição, mas torna-se favorável a partir do momento em que exista um projeto para melhorar a área, como a construção de ciclovias, implementação de linha ferroviária e calçadas mais largas.

Construído para desafogar o trânsito do Centro, o Minhocão ainda é uma incógnita. Melhora ou piora o trânsito? Deixa a cidade mais feia ou mais prática? Luiza Erundina, Marta Suplicy e Gilberto Kassab tentaram demoli-lo durante suas gestões na prefeitura. Nada aconteceu. Agora está aí o Plano Diretor. Façam suas apostas.

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