​O que você estava fazendo na noite dos ataques do PCC?
Todas as artes por Juliana Lucato/VICE

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​O que você estava fazendo na noite dos ataques do PCC?

Histórias de uma sexta-feira incomum para o proletariado juvenil, que ainda assim tentou dar uns amassos e curtir uma noitada gótica.

Há dez anos, São Paulo parou. Pânico na Zona Sul. Pânico em SP. Caos mental geral. Na noite de 12 de maio de 2006, sexta-feira, a maior organização criminosa da história do Brasil, o PCC, pôs em prática um ataque simultâneo a dezenas de alvos pela cidade e motins por cadeias em todo o estado. 59 agentes policiais foram mortos. A retaliação veio com força total, de farda ou capuz, e, nos dias seguintes, centenas de civis morreram por arma de fogo. Este bangue-bangue urbano moderno virou São Paulo do avesso, e, guardadas as devidas proporções, deixou uma marca profunda na psiqué coletiva da cidade, à lá 11 de setembro. Aproveitamos a ocasião de uma década dos Crimes de Maio para relembrar, com uma série de matérias em todos os nossos sites, a fatídica semana, um trauma social que até hoje tem imensa influencia na públis paulista, das favelas ao Jardins, passando pelo Palácio dos Bandeirantes.

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O proletariado juvenil sempre clamou por ela: a sexta-feira. Que belo dia pra dar uns amassos, curtir uma noitada gótica nada suave, tomar aquela breja com os amigos depois do trabalho. No fatídico dia 12 de maio de 2006, jovens continuavam sendo jovens na cidade de São Paulo. Mas, durante aquela semana, boatos de um possível ataque do PCC na noite de sexta-feira já contaminavam escolas, comércios e ambientes de trabalho. Granadas, delegacias explodidas, carros e ônibus incendiados com pessoas dentro. O imaginário social ia a milhão – e parte dele realmente aconteceu. Medo, caos, horror. A polícia estava nas ruas assim como o clima de terror, devidamente instaurado em diversas partes da cidade com o tal toque de recolher. Por isso perguntamos a algumas pessoas: o que você estava fazendo na noite dos ataques do PCC em 12 de maio de 2006? Relembre esse peculiar recorte de 10 anos atrás, quando éramos felizes usando o Orkut, as coisas não viralizavam na internet tão rápido e não tínhamos dinheiro para colocar crédito no celular e fazer ligações desesperadas.

EU TRABALHEI PRA VOCÊS TOMAREM BREJA NO DIA SEGUINTE

"Eu trabalhava em uma multinacional de bebidas. Lá, o acesso à internet era restrito e smartphones eram ainda eram um sonho (incrível, não?). Logo cedo começaram rumores de ataques do PCC programados para a noite. Se não me engano, a semana já era tensa e carregada de boatos. Não sei bem o que aconteceu naquela época para viralizar, mas sei que logo o pessoal do trabalho estava em pânico.

Foi como um plano de guerra: parecia que o mundo ia acabar no fim da tarde. Começaram a ligar para os vendedores da rua para anteciparem as visitas e encerrarem as vendas mais cedo. O pessoal foi correndo pra casa, às pressas.

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Eu fiquei lá, com outras pessoas, fazendo minhas atividades. Afinal, alguém tinha que fazer.

O pessoal que ia embora colocava mais medo ainda. Os vendedores voltavam da rua falando coisas como 'vão queimar carros que estiverem nas ruas com pessoas dentro se for preciso', 'vão sair metralhando bases', 'ouvi dizer que eles vão jogar até granada'.

Sobrou pouca gente no prédio. Olhei para meu chefe e falei: 'E aí, você ouviu o pessoal? É sério isso'. Ele disse que seria melhor não arriscar. Depois pensou um pouco e falou pra mim e pra outras pessoas: 'Eu preciso ir, mas vocês ficam para encerrar, faturar e enviar para carregamento'. Eu perguntei por que todos não podiam embora já que, aparentemente, o mundo ia acabar. Já estava meio nervoso, o horário estava avançando e eu claramente não queria ficar ali e pagar pra ver. 'Pode ser que acabe, mas se não acabar a galera vai precisar de cerveja amanhã, entende?', ele respondeu rindo e indo embora.

Ficamos. Não foi o fim do mundo. No dia seguinte vocês todos tomaram cerveja graças a nossa heroica e (até agora) anônima atitude."

Felipe Seabra, 33, coordenador de operações

OS MOTOBOYS ZUAVAM E A GALERA ACHAVA QUE ERA TIRO

"Eu trabalhava numa rádio na época e, se não me engano, já estava rolando uns ataques e tal. A primeira coisa que me impressionou foi como a boataria pegou dentro de um meio de comunicação, saca? Todo mundo caiu que nem pato e o clima de aflição estava sinistro.

Entramos pra uma reunião de pauta lá na ex-firma, que ficava no 21º andar de um prédio na Avenida Paulista, e o papo era que iam atacar bancos, faculdades, e ônibus. De repente, o chefe de redação entra na sala praticamente agachado, como se um míssil fosse atingir bem o nosso andar. A cena chegou a ser ridícula. Ele falou: 'galera, vamos vazar AGORA pra casa porque o bicho tá pegando e eles vão atacar o Bradesco aqui embaixo. Já atacaram o Itaú. Para tudo e vamos embora'.

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Depois disso, lembro de pegar o maior trânsito da vida e a galera descendo dos ônibus e indo a pé pra casa. Os motoboys passavam zoando. Manja quando a moto já tá ligada e eles apertam o botão da ignição e dá aquele pipoco? Aí era uma puta gritaria quando rolava esses barulhos porque a galera achava que era tiro. Cheguei em casa depois de mil horas e ouvi o coronel da polícia falando groselha na TV."

Marcel Campos, 32, radialista e videomaker

A NOITADA GÓTICA FOI, Ó, UMA BOSTA

"Combinei de ir para o Madame Satã com uma mina com quem tinha ficado algumas vezes. Eu passaria na casa dela — uma casona que ela dividia com a irmã, que nunca estava lá —, na Vila das Mercês, e de lá partiríamos para uma noitada gótica que eu tinha muita esperança que não fosse nada suave. Pois bem, peguei o ônibus e fui até lá. Cheguei por volta das 21h ou 22h. Era a típica rua do subúrbio paulistano numa sexta à noite, com a rapaziada do bairro bem de rua, zanzando para lá e para cá. Toquei a campainha e esperei. Nada. Toquei de novo. Também nada. Reparei que a luz da sala estava ligada, então resolvi esperar um pouco mais. Outro toque. Silêncio. O povo na rua já estava começando a olhar estranho. Resolvi caçar um orelhão (eu até tinha um celular, mas naquela época fazer uma ligação era um luxo) e tentei ligar a cobrar na casa dela, mas ninguém atendia. Liguei mil vezes e nada. Engraçado que, na época, a minha autoestima me blindou completamente de achar que tinha tomado um cano; com certeza ela só devia ter ido logo ali fazer alguma coisa e já já voltava.

Já havia passado da meia-noite, e as chances de pegar um ônibus diminuíam. Mas algo me impedia de ir embora por que certamente "ela já já pinta aí". Fiquei sentado na calçada mais um hora, enquanto a rua esvaziava e só uns cinco ou seis muito de quebrada continuavam de bolinho na esquina.

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Demorou mais uma outra hora para eu perceber que tinha azedado de verdade o rolê, mas aí já era tarde porque tinha um tempo que eu não via passar ônibus. Então desci até um posto de gasolina na Tancredo Neves para pelo menos beber uma breja. Tinha uns policiais no posto, que, pra mim, pareciam estar bem suaves. Perguntei se eles sabiam se dava para pegar ônibus intermunicipal àquela hora, e eles até deram uma informação, mas não lembro por que achei confusa e perigosa, então considerei melhor ficar ali sentado no posto mesmo bebendo minha latinha.

Peguei outra, e conclui que "vai que ela aparece? Melhor voltar lá e tentar de novo". Toquei a campainha, etc. Mesma luz ligada, mesmo silêncio, mesmos manos na calçada, porém agora realmente me encarando. Sei que uma hora eu simplesmente sentei na sarjeta, coloquei a cabeça entre as pernas e dormi pra esperar os ônibus voltarem a passar. Eu não sei se eu sonhei ou se rolou de os manos atacarem algo na minha direção, que caiu perto mas não o suficiente para fazer com que eu me mexesse (ou eu me fingi de dormindão? Sei lá). E a partir disso eu só lembro de chegar em casa com aquele solzinho bom do começo da manhã e minha mãe perguntar onde eu tava. Respondi que 'vixe, história comprida', liguei a TV e vi que há poucos quarteirões da rua que foi minha cama na madrugada estava uma das primeiras bases policiais atacadas pelo PCC."

Djalma Barbosa*, 30, designer de interiores

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PARABÉNS COM SORVETE

"Lembro do que aconteceu do ponto de vista de uma criança privilegiada que estudou em escola particular na zona oeste. Eu tinha 11 anos, era facilmente impressionável, e todo mundo estava, obviamente, absolutamente histérico. Da minha sala de 30 alunos, 10 foram à aula (inclusive eu). Nem o menino que morava na rua da escola foi, por medo dos pais. Todo mundo tinha certeza que o PCC ia colar lá, o que é bem engraçado pensando hoje em dia. A aula acabou ficando comprometida, e a gente meio que só falou sobre os ataques o dia inteiro. Além disso, só lembro de três dias depois, no meu aniversário de 12 anos, que eu e meus pais não conseguimos encontrar uma loja aberta pra comprar um bolinho e acabamos cantando parabéns pra mim com sorvete que tinha em casa."

Luisa Jubilut, 21, jornalista

A PM APONTOU ARMAS PRA MIM

"Na época, eu morava em Itaquera, zona leste, e trabalhava numa editora que ficava no bairro da Bela Vista. Na rua do trabalho, tinha uma base policial e vi que a coisa estava frenética. Tinha muita viatura passando em alta velocidade e as pessoas comentando sobre ataques. Depois vimos em sites de notícias e comunidades do Orkut o que estava pegando. Liguei pra casa e minha mãe disse que Itaquera tinha um clima tenso, mas até a parte da tarde nenhum busão tinha pegado fogo. De toda forma, ela me recomendou a ficar pelo Centro. Pedi refúgio na casa de um amigo que mora perto do Poupatempo da Sé e fiquei por lá.

Ali, havia uma base da Polícia Militar e era meu caminho. Quando passei, dois policiais apontaram as armas pra mim. Levantei as mãos e segui andando devagar, falando em voz alta que eu estava voltando do trabalho. Eles continuaram apontando as armas e não disseram uma palavra. Fiquei com um medo absurdo de tomar um tiro porque eu já tinha visto nas comunidades do Orkut que a polícia tinha matado algumas pessoas em São Mateus, Itaquera e São Miguel."

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Junior Rocha, 30, analista de testes de software

ARRUMANDO DESCULPAS PRA DAR UNS AMASSOS

"Eu tinha 15 anos na época, então não fazia muita ideia do que estava acontecendo (não que agora eu faça). Só me lembro de que todo mundo começou a falar de um tal de Marcola do crime organizado, que estava sendo transferido de presídio. Na escola, começaram a passar o recado de sala em sala de que quem não ia de carro deveria ficar lá dentro até que alguém pudesse buscar, porque o PCC tinha anunciado toque de recolher. Eu morava em Ermelino Matarazzo, um bairro da periferia da zona leste de São Paulo que não é muito barra pesada – na verdade a maioria das ruas parece uma cidade do interior. Então, por que o PCC ia querer zoar esse lugar? Me lembro de pensar nisso e de ter muito certo na minha cabeça de que essa história de toque de recolher era exagero de velho superprotetor.

Eu saía todos os dias da escola e ia para a banca de jornal da minha mãe, onde eu trabalhava na parte da tarde. Fui andando sozinha e me assustei um pouco quando vi vários comércios fechados no caminho. Quando cheguei na banca, minha mãe estava com as portas fechadas me esperando em pânico. 'Filha, hoje tá tendo toque de recolher. Fiquei sabendo que vão explodir a delegacia de Ermelino, eu vou ficar no Okinawa.' Okinawa era a loja de materiais de construção que ficava do lado da banca que tinha uns japas gente boa que sempre salvavam a gente quando dava vontade de ir ao banheiro.

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'Puts, mãe, posso ficar no Anderson, então?', falei. Anderson era meu namorado que morava atravessando a rua. Acontece que ele trabalhava numa fábrica em Guarulhos e ainda não tinha chegado em casa. A mãe dele me recebeu desesperada. 'Ai, já liguei no celular do Anderson cinco vezes. Só dá caixa postal', falou. Tentei acalmá-la, só pensando por que raios o PCC ia querer matar um operador de empilhadeira e por que raios o Anderson estava com o celular desligado.

Meia hora depois ele chegou em casa, sem fazer a menor ideia do que estava acontecendo. Meu cunhado, que era metido a sabe-tudo, falou que o toque de recolher era às 16h e que a ordem era matar todo mundo que estivesse na rua. Eu continuava duvidando, mas achando ótimo passar a tarde toda dando uns amassos no quarto em vez de trabalhar. E foi o que fizemos: botamos um DVD alugado no final de semana e esquecemos do mundo por algumas horas.

Acontece que a noite chegou e eu e minha mãe precisávamos voltar pra casa, que ficava a algumas quadras dali, mas justamente na rua da delegacia que supostamente seria atacada. Era absolutamente proibido dormir na casa dele, mas lembro de insistir com ela no telefone pra que deixasse só daquela vez (vai que cola?). Não rolou. Eu morava sozinha com a minha mãe e não tínhamos carro, então, o dono do Okinawa levou a gente pra casa no comecinho da noite. Resolvi encarar o Jornal Nacional pra ter assunto no dia seguinte e lembro de ver ônibus pegando fogo e algo sobre uma bomba no aeroporto, que até hoje não sei se era verdade. No dia seguinte, crime ocorre, nada acontece, vida que segue."

Ana Maria Madeira, 25, jornalista

*O nome foi trocado a pedido do entrevistado.

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