Barkley L. Hendricks pintou os negros como realmente somos
Brilliantly Endowed (Self Portrait) por Barkley L. Hendricks.

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Barkley L. Hendricks pintou os negros como realmente somos

Relembrando o incrível legado de um dos maiores artistas dos EUA, que capturou a essência de cada pessoa que pintou.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.

Semana passada, a notícia de que o artista de 72 anos Barkley L. Hendricks tinha morrido se espalhou pelo mundo das artes. Hendricks era mais conhecido por suas pinturas pós-modernas e realistas de temas negros altamente estilizados. Sozinho, ele mudou as possibilidades de representação retratando as pessoas que conhecia e via: pais, mães, filhos, filhas, tios, tias e sobrinhos negros. Hoje você vê a influência dele em gente como Rashid Johnson, Kahinde Wiley, Mickalene Thomas e Jordan Casteel. E seu trabalho pode ser visto em alguns dos maiores museus dos EUA: Whitney, Studio Museum no Harlem, no Tate Modern e no recentemente inaugurado National Museum of African American History and Culture.

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Não lembro a primeira imagem de Hendricks que vi, porque vejo as pessoas que ele pintava todos os dias. Por exemplo, meu avô, parte da geração Hendricks, tem um afro grande que lembra o autorretrato do pintor de 1969 Icon for My Man Superman (Superman never saved any black people – Bobby Seale).

Mas lembro do sentimento de validação que tive quando me envolvi pela primeira vez com seu trabalho. Nada que eu tinha visto em telas ou museus antes misturava pop e abstração com um vernáculo negro estilizado como ele fez. É essa qualidade única dele que continua a escapar a muitos artistas negros contemporâneos elogiados pelo mundo da arte branca.

Visite um museu hoje e veja as pinturas de temas negros. Raramente os trabalhos são simplesmente sobre eles e suas almas. Em vez disso, simbolismo e idealismo consomem muita da representação de corpos negros. É difícil ver os desejos dessas figuras quando racismo, o olhar branco, os EUA e "a luta" as tornam tudo menos elas mesmas.

Esse fenômeno fala de como a mera representação foi equivocadamente construída como liberação. Infelizmente, "diversidade" num museu às vezes falha em realmente libertar a imagem negra. Você vê isso na arena da arte que busca desesperadamente uma "inclusão" totalmente informada pelo liberalismo branco. Aqui, o corpo negro foi reduzido a uma série de problemas que precisam ser consertados. Esse tipo de visibilidade pode ser uma armadilha, porque ignora a diferença entre retratar pessoas do cotidiano e suas cópias simbólicas convenientes.

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Hendricks confrontou essas noções cansativas do corpo negro. Não há vítimas ou celebridades entre seu elenco de ícones comuns, que enraízam a imagem negra na vida real. Há, por exemplo, o fotorrealismo de North Philly Niggah (William Corbett), um irmão ferozmente chique do gueto, que mostra sua sensibilidade usando um casaco longo com detalhes em pele e uma camisa pink por baixo. Olhando pinturas como essa, fica claro que Hendricks era um mestre moderno que nos pintou.

Icon for My Man Superman (Superman never saved any black people – Bobby Seale) por Barkley L. Hendricks.

Nascido na Filadélfia, Pensilvânia, em 1945, Hendricks cresceu em North Philly e recebeu seu bacharelado em artes na Universidade de Yale, onde estudou obras clássicas de artistas como Rembrandt Harmenszoon van Rijn e Michelangelo Merisi da Caravaggio. Nos anos 60, numa viagem para a Galeria Nacional de Londres, ele ficou profundamente impressionado pelo Retrato de Agostino Pallavicini, de 1921, de Anthony Van Dyck. Mas isso também o fez imaginar por que as pessoas negras que ele via e conhecia não estavam nos museus.

Então ele pegou sua câmera, que ele chamava de seu "livro de rascunho", e começou a fazer fotos de sua família, amigos e estudantes de New Haven, Connecticut, onde ele dava aulas de pintura em estúdio. Depois ele convidava seus temas para seu estúdio ou usava as fotos para fazer os retratos.

Foi nessa época que o movimento black power inspirou o poeta e dramaturgo Amiri Baraka a fundar o Movimento de Artes Negras (BAM em inglês), que pedia a criação de imagens positivas de nacionalismo negro. O BAM era uma medida corretiva para o racismo branco e uma homenagem à história negra a que Hendricks resistiu. Brilliantly Endowed (Self Portrait) é um exemplo de como Hendricks usava sua tela para desafiar a política da respeitabilidade, conquistando elogios da crítica. No nu em acrílico de 1972, Hendricks está diante de um fundo negro, com um palito de dentes na boca, a mão na coxa, usando uma boina, meias e tênis, com o pau exposto. Apesar dos pedidos por imagens edificantes da comunidade negra para combater o racismo, Hendricks reconhecia que era hora do corpo negro significar outra coisa. Com pinturas como Brilliantly Endowed, Hendricks confrontou a política de respeitabilidade da era empoderando os temas para serem apenas eles mesmos.

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Como um jovem negro queer, procurando desesperadamente por representações de pessoas que tinham feito as pazes com essas identidades existindo radicalmente no mundo, uma pintura de Hendricks que realmente me marcou foi George Jules Taylor. Hendricks pintou o estudante gay em 1972. No retrato, Taylor usa uma touca azul-bebê, e uma blusa de gola rolê cinza sob um conjunto de jaqueta e calça jeans. Nos ombros ele usa uma capa. Ele está com as mãos na cintura, seus pés descalços aparentam dançar. Taylor parece flutuar sobre tudo – a identidade negra e a identidade gay – contra um fundo azulado que destaca seu corpo. Seus olhos, atrás de óculos de armação dourada, encaram diretamente o espectador, subvertendo o olhar consumista e fetichista. É um retrato sublime de individualismo interseccional, que confunde os limites do realismo e mostra quem Taylor é o capturando num momento de transcendência. Da primeira vez que vi esse retrato, juro por Deus, eu queria ser aquela imagem.

George Jules Taylor , por Barkley L. Hendricks.

Por quase cinco décadas, contra fundos monocromáticos de estilo pop, Hendricks desenvolveu uma obra que nos anos 70 ficou conhecida como "realismo cool". Suas pinturas – Lawdy mama (1969), Sir Charles, Alias Willie Harris (1972) e What's Going On (1974), entre outras – do nosso povo, falam da realidade da experiência negra, indo contra a mercantilização.

Em 1984, seus retratos tinham saído de moda como a pintura em geral. Por quase duas décadas, ele não produziu nenhum retrato a óleo. Em vez disso, ele ensinou e desenvolveu corpos de trabalho que incluem fotografia, desenho e pequenos estudos plein air. Mas fico imaginando o que ele teria feito da era Reagan. Ou dos anos 90, quando o crack, o hip hop e a hipermercantilização do cool negro consumiram as comunidades negras.

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O curador Trevor Schoonmaker o encorajou a voltar a pintar nos anos 2000, comissionando um novo trabalho para o New Museum. Em 2008, Schoonmaker organizou a primeira retrospectiva abrangente itinerante do artista, Barkley L. Hendricks: Birth of the Cool, apresentando quase 60 retratos em tamanho grande.

Em março passado, ele apresentou o que se tornaria sua última exposição solo, Barkley L. Hendricks, na Jack Shainman Gallery. A exposição mostrava um retorno incrível dos retratos em larga escala, que lembravam seus trabalhos iniciais e davam uma ideia do que ele pensava sobre o Black Lives Matter e a violência policial contra crianças, mulheres e homens negros. Em Crosshair Study, pequenas telas em formato de diamante mostram um tema negro usando um moletom cinza, com um ponto de laser vermelho no meio da testa. Abaixo da cena, Hendricks pintou: "I No Can Breathe".

Antes da inauguração da Barkley L. Hendricks, falei com o artista para o site de arte e cultura da VICE, o Creators. Não citei Hendricks diretamente na matéria porque assim que a entrevista começou, estávamos brigando. Como as obras na exposição eram seu trabalho mais político até então, achei que ele finalmente queria falar sobre o contexto social em que pintava. "O que inspirou essa exposição?", perguntei a ele. "É uma continuidade do que venho fazendo há 40 anos", ele respondeu, parecendo irritado. "Não é questão do que inspirou essa exposição. Pinto porque gosto de pintar." Ri de nervoso comigo mesmo e tentei de novo: "Você pode descrever a situação a que essas pinturas estão respondendo?". Ele respondeu perguntando se eu estava familiarizado com violência policial. Eu disse que sim, e ele disse "Bom, então deveria ser óbvio".

Nos dez minutos seguintes a entrevista continuou assim, com Hendricks cada vez mais agitado. Eu já estava admitindo a derrota e agradecendo pelo tempo dele quando Hendricks disse, quase num sussurro, "Você focou muito na política e não na arte". Foi uma lição que mudou para sempre o modo como enxergo arte.

As obras de Hendricks estão atualmente na exposição Regarding the Figure no Studio Museum do Harlem. No meio do ano, várias telas dele estarão no Tate Modern numa grande pesquisa da arte negra intitulada Soul of a Nation: Art in the Age of Black Power .

Tradução: Marina Schnoor

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