Quando era miúdo via os astronautas um pouco como emigrantes cósmicos que ligam para a Terrinha a dar as novidades à família. E em vez de mostrarem carrões amarelos ou as últimas modas vindas da França, presenteavam-nos — primos pobrezinhos e saloios — com novas possibilidades de existência, enquanto, de pernas para o ar, mostravam o quão divertido poderia ser o simples acto de beber sumo de laranja em gravidade zero ou o quão entusiasmante se tornava perseguir um feijão-verde que bailava, apetitoso e provocante, pelo habitáculo espacial.
Os meus olhos brilhavam com essas novas possibilidades, e a minha mente vagueava, contra a minha vontade, para uma única imagem: a minha pila em gravidade zero, dentro dos boxers, cândida e inocente, tal e qual uma criança no ventre materno. Cheguei a tentar simular (nu) a cena nas aulas de natação, mas não era a mesma coisa. As miúdas não percebiam e o Décio (instrutor brasileiro que ostentava um golfinho mal desenhado no ombro) fez queixa à minha mãe. Eram gestos frustrados de um miúdo que sabia nunca poder vir a ser astronauta. Porquê? Porque, simplesmente, não se é astronauta porque se quer. Nasce-se astronauta ou nasce-se outra coisa qualquer desinteressante.
A criança que acaba por se tornar astronauta não é aquela que, de ranho a escorrer do nariz, afirma que quer ser bombeiro ou biólogo marinho. A criança predestinada a ser astronauta vive embrionicamente a um canto da humanidade, num estado adormecido de fixeza e, enquanto a levam a um poste de uma C+S qualquer, observa o firmamento, sabendo que este planeta é uma mera etapa. Sentindo, no fundo da sua alma, que os seus órgãos sexuais terão, um dia, a oportunidade de triunfar em gravidade zero, enquanto todos os outros putos serão bafejados pelo malogrado destino dos galeões de desespero: os call-centers e as caixas de supermercado.
Infelizmente — e apesar de me terem levado inúmeras vezes ao poste e de toda a minha infância ter sido passada longe das miúdas de aparelho e das pessoas influentes dos matrecos —, não sou astronauta. Sou um Peter Pan numa combinação de fato de treino e bota para a chuva — como vós. A minha vida é, e sempre será, uma bodega. Por muito que os tentáculos do sistema me tentem inflamar o ego com produtos e serviços espetaculares e “únicos”, nunca serei mais do que um mero valete de copas num baralho de cartas enfiado numa gaveta bafienta. Por muito que procure o significado para a minha vida nos arquivos da Wikipédia, nunca serei mais do que um mero figurante num documentário sobre o convento de Mafra. Por muito que me vista de forma diferente, para me sentir diferente, o mundo sempre me há-de consagrar como igual. Sim, porque tudo cá em baixo, na Terra, está esgotado.
Já não há mais nada a explorar, a descobrir, a ser. Tudo parece perdido, mastigado, repetido, reformulado, perto do fim. Quem estiver mesmo atento, poderá até exclamar, e com toda a razão, que as coisas estão mais nicadas para cacilda.
Mas, no meio deste desespero, lá no alto, longe das frivolidades de uma rotina nojenta, o astronauta arrasta a humanidade para uma possibilidade de futuro, como uma pequena sereia de bronze, de mamas ao léu, amarrada à proa de um navio cósmico que galga as ondas do destino.
A todos os astronautas: desejo-vos uma vida longa e próspera.
A todos os outros: lamento.