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Entretenimento

O Tom Perturbador de “Cinquenta Tons de Cinza”

Estreando no Brasil em 1090 salas, o filme mantém os mesmos traços de um relacionamento abusivo do livro de E.L. James e dá uma sujada no BDSM.

Anastasia Steele: "Por que eu ia querer fazer isso?"

Christian Grey: "Pra me satisfazer."

Essa conversa rola logo na primeira metade da versão cinematográfica de Cinquenta Tons de Cinza. Da trilogia de livros escritos por E.L. James, você provavelmente se cansou de ver a mulherada lendo no metrô e possivelmente não aguenta mais ver algo relacionado ao filme que estreou nesta quinta (12) em 1090 salas nacionais, segundo a assessoria da Universal Pictures.

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O momento em que o diálogo acima acontece é quando Anastasia Steele, a estudante de literatura inglesa e virgem, vê Christian Grey, executivo bilionário e "misterioso", se assumindo como dominador e mostrando seu "Quarto Vermelho da Dor". A resposta de Grey também dá o tom de como vai ser o relacionamento entre os dois personagens durante as quase duas horas de filme. No filme Cinquenta Tons de Cinza, Christian Grey continua o mesmo cara controlador, manipulador, intimidador e stalker que ele é nos livros.

Atenção: a partir de agora o texto terá várias revelações sobre o enredo do filme.

Se você conseguiu viver em uma bolha feliz desde 2012 e nunca ouviu falar na trama, é muito simples: uma moça inocente em questão vai entrevistar um bilionário a pedido da amiga jornalista. Eles se interessam um pelo outro e logo a estudante descobre que o magnata é adepto do tal do BDSM, acrônimo para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo – ou seja, práticas eróticas em que dor, prazer, hierarquia de poder (como pessoas dominadoras e pessoas submissas) fazem parte. Grey gosta de infligir dor às suas parceiras, e quer que Steele seja sua submissa, entregando-a um contrato que estabelece o que ele pode fazer com ela durante as chamadas sessões, nome dado à ação propriamente dita.

As primeiras críticas de Cinquenta Tons de Cinza saíram na quarta-feira, e em geral tiravam sarro do que classificaram como um "pornô politicamente correto". Lembro que, quando o livro virou febre, houve reclamações de que a narrativa era suja demais. No caso do filme, a crítica é que ele não chega nem perto do que foi Ninfomaníaca (2013), do Lars von Trier. Achei engraçado isso. E talvez não tenha sido tão ruim perder a cabine de imprensa nesse caso. Foi uma experiência bem interessante ver a reação das pessoas na pré-estreia que rolou na virada de quarta pra quinta. Peguei ingresso pra essa sessão num cinema em São Caetano, no ABC paulista, e a sala estava praticamente lotada. Chuto que 85% das pessoas lá eram mulheres: jovens, maduras, casadas, com grupo de amigas. Minha impressão foi que todas estavam pra ver o bonitão Christian Grey, interpretado por Jamie Dornan, seduzir a Anastasia Steele de Dakota Johnson.

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O grande mérito do filme é fazer a história ser mais suportável do que no livro, que começou como uma fanfiction de Crepúsculo na internet e teve que alterar o nome das personagens e o título pra que fosse devidamente publicado pela editora. Quando anunciaram que a estreia estava próxima, eu, que já havia lido o primeiro livro, tinha um pingo de esperança de que a equipe daria um belo tapa no roteiro e a diretora Sam Taylor-Johnson fizesse o milagre de melhorar tudo de errado que tinha na história. Acabou que eu fui tão inocente quanto Anastasia Steele.

Por acaso descobri onde você trabalha, nada demais.

São vários os momentos na trilogia literária em que o personagem se mostra um babaca machista e abusivo. E vários desses momentos estão no filme, fielmente representados. Por exemplo, ele descobre onde Anastasia mora, onde ela trabalha, onde ela está e tudo isso sem precisar perguntar a ninguém, quase como se ele tivesse grampeado o telefone dela. Ele fica puto quando ela avisa que vai visitar a própria mãe em outra cidade. E passa o filme todo tentando convencê-la de que ela vai gostar de ser submissa, porque isso dá prazer a ele, enquanto tudo que ela mostra querer é um relacionamento baunilha (como são chamados os namoros convencionais pela turminha do BDSM).

Falando especificamente da pegada que poderia ser hardcore em Cinquenta Tons, realmente o que o filme mostra é um BDSM gourmet: esteticamente atraente (o quarto do cara é bem decorado, vai), com sessões de spanking muito suaves comparadas ao que acontece de verdade — a não ser no final. Mas isso fica pra depois. O curioso é que o termo BDSM nunca é realmente citado. Christian não faz questão de explicar o que é esse universo, ele só joga o contrato na mão da coitada da Anastasia e pede pra ela pesquisar por conta própria. Na história inteira, o máximo que você ouve falar é em sadomasoquismo.

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Por estudar o BDSM há quase dois anos, sei que resumir toda a vivência à apenas "SM" e reduzir a prática a "sexo violento" é uma limitação perigosa e injusta. Primeiro porque não é preciso engatar uma transa pra que aconteça uma sessão BDSM. Segundo que nem só de apanhar e bater é feita essa cultura. Terceiro que, ao contrário do que a história dá a entender, nem todo mundo é adepto às práticas porque tem traumas a superar. E quarto, não é obrigação das mulheres serem submissas nesse meio –o número de mulheres e homens dominadores é bem proporcional.

Existem sim muitos dominadores otários —mas isso não é uma exclusividade do meio kinky. E a razão pela qual a comunidade BDSM não curte o livro e provavelmente está odiando o filme é porque ele destrói tudo que a prática exige: responsabilidade, consensualidade, negociação, cuidado pós-sessão (também chamado de aftercare), sobriedade (várias vezes Christian inicia sessões sado depois de beber com Anastasia). A trama chama abuso de "amor" e joga a culpa dos problemas no BDSM. Inclusive Christian enxerga a necessidade de aftercare da Anastasia somente como sofrência.

Uma das sessões de Anastasia.

E aí chega o triste final. Depois de muita discussão, falta de acordo, Christian fazendo tudo da cabeça dele e Anastasia sendo mostrada extremamente desconfortável 90% do tempo, a moça pede pra que ele faça "exatamente o que ele quer fazer com ela", assim ela poderá entender aonde ele quer chegar com tudo isso. Durante todas as cenas de sexo do filme, ouvi a galera do meu lado e atrás de mim dando risada, gritinhos e comentando coisas do tipo "como eu queria alguém fazendo isso comigo", ou "eu aqui correndo atrás de um babaca quando existe Christian Grey". Mas os últimos minutos fizeram todo mundo ficar quieto pela primeira vez nessas uma hora e 50 minutos de história.

Christian pede pra que Anastasia se debruce numa espécie de divã. Ele pega o cinto e avisa que vai dar seis açoitadas na bunda dela e ela vai contar cada uma. Essa é a hora em que o spanking em si finalmente se assemelha à intensidade das práticas reais de BDSM. Mas em Cinquenta Tons de Cinza é também a hora em que Anastasia, e provavelmente uma boa parcela da plateia, percebe que essa vida não é pra ela. Ninguém riu no cinema, ou fez um comentário engraçadinho. A personagem começa a chorar de horror. Curiosamente ela não usa sua safeword (palavra-chave pra que ele pare de bater nela). É nessa hora que cai a ficha: ela não quer apanhar. Quando termina, ela veste a roupa e vai embora, e o filme acaba desse jeitinho. A galera começou a gritar, indignada. "Como assim isso é o final?!".

Na saída do cinema, tentei prestar atenção nos comentários do pessoal que ia embora. Uma menina atrás de mim falou para a amiga que a acompanhava: "eu tô sem estrutura psicológica pra esse final, me respeita". Quase concordei, também fiquei meio sem estrutura depois de tudo que eu vi. Quase certeza de que não foi pelos mesmos motivos.