Manuel Fúria e as canções infinitamente perfeitas
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Entrevista

Manuel Fúria e as canções infinitamente perfeitas

Diz que não é obcecado pela busca da "canção perfeita", mas, no entanto, lançou um disco carregado delas. "Viva Fúria" é um clássico instantâneo. Manuel é o escritor de canções que, algures a meio da última década, mudou o rumo da música feita em Portugal

Há cerca de quatro meses, Manuel Fúria voltou aos discos. Depois de uma série de anos em que, com a sua editora Amor Fúria, se cimentou como um dos maiores responsáveis pelo actual panorama da música feita em Portugal, a partir de 2013, o músico - de infância e parte da adolescência vivida em Santo Tirso - "desapareceu". Um desaparecimento apenas mediático, todavia, como sublinha numa conversa com a VICE, durante um almoço ali para os lados das Amoreiras, no meio de uma Lisboa que, tanto o inspira, como o faz querer, por vezes, voltar às origens e ao conforto da casa familiar.

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Foi lá, na casa da família, que gravou Viva Fúria com os seus Náufragos. Foi lá que passou um Verão a ouvir e a redescobrir música na colecção gigantesca de vinil do pai e a fazer as suas canções. Cada vez mais perto da perfeição, ainda que garanta que é algo que não persegue. A "canção pop perfeita". O disco está, no entanto, pejado delas. Como o está de referências. Sem pudores, sem tentativas de esconder o que quer que seja. "Sou um ladrão", canta em "Canção Infinita", talvez uma das melhores canções feitas em Portugal nas últimas duas décadas. Talvez, não. É mesmo.

Nestes quatro meses, Manuel Fúria tem andado pelo País a tocar, a voltar à linha da frente de que se resguardou por via dos trabalhos de produção, dos projectos menos visíveis, daquilo que o manteve ocupado durante os cinco anos em que o tínhamos como "desaparecido". Não estava, nem nunca mais estará. Viva Fúria, sabemo-lo agora depois de audições infinitas, é um clássico.

No dia 13 de Julho, Manuel Fúria e os Náufragos atracam a sua jangada carregada de pérolas no Parque das Nações, para tocarem no Super Bock Super Rock. Até lá, fiquem com o que o músico nos contou, entre uma salada de quinoa e duas cervejas.

VICE: Entre Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo (2013) e Viva Fúria, parece que passaste de estar em todo o lado, para quase desapareceres. O que é que aconteceu entretanto e de que forma é que isso se reflectiu neste novo disco?

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Manuel Fúria: Passou uma eternidade, é verdade. Entre 2013 e agora aconteceram muitas coisas na minha vida. Essa eventual quebra de algum mediatismo de que estás a falar é algo que tem a ver directamente com a falta de trabalho editado. Não editei mais nenhum disco e os discos são sempre um pretexto para estas coisas, para entrevistas, para tocar, para aparecer. E, na verdade, a única coisa que fiz entre 2013 e 2014, para além dos discos de outros projectos que íamos editando na Amor Fúria, foi um disco com quatro canções - Quatro Canções e Outros Tantos lugares Comuns - que ofereci num concerto e nem sequer dei a jornalistas, ou enviei à imprensa. Não teve qualquer espécie de visibilidade. Depois, em 2015, fiz parte da construção do disco dos Capitães da Areia, A Viagem dos Capitães da Areia a Bordo do Apolo 70, que foi um projecto que nos consumiu esse ano todo… mas que nos deu um gozo enorme fazer.

Ou seja, na realidade, nunca estiveste parado…

Não. Para mim não houve qualquer pausa. Continuei com os meus ensaios regulares, continuei a trabalhar em música, fiz a direcção musical de uma peça de teatro em Castelo Branco… Não sinto que esse tempo se reflicta neste Viva Fúria, na medida em que não é um disco que tenha sido feito depois desse tempo, mas sim durante esse tempo. São canções que foram sendo feitas aqui e ali e que depois concretizávamos em alturas no Verão, em que estávamos todos juntos no sítio onde gravámos, numa quinta no Minho… a trabalhar mais em banda, digamos assim.

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É, por isso o produto de uma tentativa minha de voltar a um sítio onde me sinto confortável. O Lírios do Campo, apesar de tudo, é um bocado um desvio, uma tentativa de trabalhar com muita gente, de ter instrumentos que não são do cânone do pop rock, criar aquela coisa de banda irlandesa, como os Pogues, ou os Waterboys, ou aquilo que os Arcade Fire também fazem um bocado, uma grande banda, com muita gente e muitos instrumentos. Esse disco serviu para isso, para algo hiper conceptual. Este disco não é tanto isso, é voltar a um modo de fazer as coisas mais parecido com o contexto d' Os Golpes. Quatro ou cinco músicos que fazem coisas juntas sobre as minhas canções. É estar no meu território, que é o pop rock, que me sai mais intuitivamente.

"Julgo que também passou a noção de que é possível fazermos coisas sem ter autorização de pessoas sentadas no décimo andar da Torre das Amoreiras".

Neste entretanto, parece que houve uma espécie de revolução na música em Portugal, com muitas bandas a cantarem em português - um pouco na sequência do que vocês começaram a fazer por volta de meados da primeira década deste século -, com muitas bandas a surgirem um pouco por todo o País. Sentes-te um bocadinho responsável por isto? Há um legado "Fúria", seja por causa da tua música em nome próprio, seja por causa d' Os Golpes, ou da Amor Fúria?

Sinto que sim. Não sou o único responsável, obviamente, mas sinto que sou um dos grandes responsáveis. Ainda estamos muito em cima do acontecimento, como costuma dizer-se (risos) e ter uma distância crítica sobre as coisas não é fácil e corro até o risco de estar enganado. Mas, acho que as coisas que sobraram e que influenciaram outras bandas e outros artistas, estão ligadas em primeiro lugar a esse despudor em cantar em português e isso passar a ser uma coisa normal e não uma coisa exótica, estranha, ou um mero exercício de estilo. Faz parte, um tipo pensa em português, insulta em português, portanto tem de ser normal que cante em português.

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Por outro lado, julgo que também passou a noção de que é possível fazermos coisas sem ter autorização de pessoas sentadas no décimo andar da Torre das Amoreiras e que julgam que mandam nisto. Podemos fazer coisas juntos se tivermos um mínimo de afinidades musicais e estéticas. Hoje em dia, isso vê-se muito. Na altura em que começámos não se via tanto.

"Faz parte. Um tipo pensa em português, insulta em português, portanto, tem de ser normal que cante em português" - Manuel Fúria

Sim, para além de que vocês construíram um corpo de trabalho, editaram discos. Quando tinhas 16 anos provavelmente não tinhas um punhado de discos cantados em português que te pudessem de certa forma influenciar…

De coisas contemporâneas não. Havia os Ornatos e os da Weasel, mas pouco mais… As minhas influências sempre foram muito mais anglo-saxónicas, claro.

Neste Viva Fúria quiseste de alguma forma espelhar essa tua cultura musical?

Não de uma forma propositada. Foi o que foi. Não tinha aqui nenhum lado conceptual que servisse de premissa a este disco. No Lírios do Campo havia uma espécie de escultura e tínhamos de trabalhar de forma a chegar a essa imagem que estava definida. Havia uma ideia e todos tinham de trabalhar para ela. Aqui não foi assim. As canções foram feitas uma a uma e depois no fim, se calhar, acabei por perceber que havia uma ou duas grandes ideias e que as canções faziam sentido umas com as outras e que, por um lado, o disco até pode eventualmente ter uma leitura mais conceptual. Há referências em todo o lado e o disco está pejado delas, mas não foi de propósito. Acho que faz parte.

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Estou a falar de mim, mas acredito que com outros músicos aconteça o mesmo, "vamos fazer uma coisa parecida com não sei quem", ou "vamos meter aqui uma malha à tal banda", no meu caso será uma malha à Smiths, ou à New Order sei lá… Aqui comecei a achar graça a essa forma de construir as coisas e comecei a assumir isso. Na canção que fecha o disco ["Canção Infinita"], que foi feita depois de todas as outras estarem prontas e já durante a gravação, comecei a pensar e a reflectir, a identificar algumas ideias fortes que fizeram parte de todo o processo e falo sobre isso…

Essa música é aquilo que defino como "canção pop perfeita". Aliás, na verdade, parece-me que Viva Fúria é um tratado de canções pop perfeitas, com ecos de Smiths, dos Cure dos 80s, dos inevitáveis Red House Painters, ou do Nick Drake. Tens em ti essa vontade, ou essa preocupação, de procurar a "canção pop perfeita"?

Não. Não tenho. A verdade é que não tenho mesmo. Vou fazendo. Não ando à procura da canção perfeita, não tenho essa obsessão, nem nunca tive. Quero dizer coisas, consigo fazê-lo através dos códigos da canção pop rock…

E na condição de ouvinte?

Também não. Até gosto muito de canções pouco perfeitas (risos).

Fez-te bem gravar o disco na tua terra? De alguma forma no conceito do Lírios preconizavas esse regresso, essa fuga da cidade. Há algum tipo de nostalgia associada a esta decisão?

Na verdade foi até mais por questões práticas. No entanto, ainda assim, não deixa de ser um privilégio poder ter gravado como nós gravámos. Quem gravou o disco foram os Salto, que são meus amigos e ir com amigos meus, com o resto da banda, para casa dos meus pais durante 10 dias é um privilégio e uma espécie de contraponto ao normal ambiente de estúdio, que considero que é um ambiente hostil… seria impossível existir a "Canção Infinita" se estivéssemos em estúdio. Aconteceu, porque estávamos lá e dissemos mete a gravar e não havia um técnico a olhar para o relógio, ou com vontade de ir almoçar, não estávamos naquele ambiente de aquário, claustrofóbico, sem janelas…

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E depois, há outra coisa. O facto de estarmos ali, naquelas circunstâncias, com aquelas possibilidades, numa sala rodeados de milhares de discos de vinil [o pai de Manuel Fúria é um dos maiores coleccionadores de discos do País]… há uma canção no disco, chamada "A Porta e o Cordeiro" - que é uma coisa mais lenta, mais Low talvez - e, antes de a gravarmos, sem metrónomo, sem edição nenhuma, tudo de seguida, fiz questão de parar um bocado e de meter toda a gente durante 10 minutos a ouvir duas canções dos Red House Painters. Oito gajos, sentados, calados, a fumar, uns a olhar para o tecto, outros a olhar lá para fora…

"Tenho uma disciplina semanal. Há três ou quatro dias por semana em que estou sentado ao piano, ou à guitarra, a trabalhar criativamente".

É o teu lado melómano…

Sim, mas esse lado até existiu mais não durante a gravação, mas no Verão anterior em que estivemos lá trabalhar nas canções. Aí é que eu volta e meia pegava num álbum e dizia "tens que tocar mais assim", ou "agora vamos fazer um break igual ao do "In Between Days" [dos The Cure], por exemplo…"isso está fixe, mas faz mais assim" e ia buscar um disco dos Fleetwood Mac, com uma linha qualquer de guitarra de que me lembrava. E é isto. Como disse numa entrevista ao Público, é como ter o Spotify em casa antes de haver Spotify. Queres ouvir e ouves. é um privilégio.

Tens algum método tipo Nick Cave, das 9 às 5, para escrever canções?

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Não. Não tenho uma disciplina diária nesse sentido, das 9 às 5. Tenho uma disciplina semanal. Há três ou quatro dias por semana em que estou sentado ao piano, ou à guitarra, a trabalhar criativamente, mas o modo como as canções depois acabam por acontecer não responde a um método. Não há um método "Manuel Fúria" (risos). Há canções feitas de uma forma, outras de outra forma. Há um padrão comum, no entanto, que é o facto de as canções nunca começarem com letra, começam com sons e com música.


Vê também: "O rock de ginga na anca dos The Twist Connection"


Mudando de assunto, tens dois filhos e, no clima de incerteza global em que vivemos, ainda tens esperança num Mundo decente para eles, ou achas que isto pode descambar para alguma coisa pior?

Acho. Acho que pode descambar. Quando se tem a experiência da paternidade, a maneira de ver o Mundo muda. O teu umbigo muda de sítio. Não deixando de ser vaidoso, como sou, mas o teu centro de operações muda de lugar. Portanto, preocupo-me muito, mas, ainda assim, tenho esperança, claro que tenho e acredito na família, acredito que a família é um foco de resistência, pode ser um pequeno Estado. Acredito no poder que tem e acredito que os meus filhos, estes e os próximos que virão, vão ser pessoas fortes.

A política tem algum espaço na tua música?

Eu acho que digo coisas políticas. Quase tudo é política, a partir do momento em que entra num âmbito mais mediático, ou público, qualquer coisa pode ter políticas. Não escrevo de um modo político, na medida em que tenho pouca coisa que tenha a ver directamente com a espuma dos dias, ou seja, poderia estar a escrever coisas sobre outro contexto qualquer e ter as mesmas palavras. No entanto, são coisas escritas hoje e os dias de hoje influenciam as coisas que eu escrevo. Mas, não são coisas de intervenção, não pretendo alcançar votos para nenhum partido ou pessoa, nem que os cidadãos devem escolher assim ou assado… não deixo, todavia, de entender que pode haver leituras políticas daquilo que eu faço. Mesmo quando escolho escrever de um modo não tão ligado à espuma dos dias, isso também é uma atitude política…

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"Não sou de esquerda, nem de direita, sou de um Portugal que ainda não chegou", disseste ao Público em 2013. Já chegou?

Não. Achas? (risos). Acredito que ainda vai chegar. Não sei se no meu tempo de vida. Mas, também, para ser honesto, não me interessa.

E que País é esse?

Um País de árvores…

E lírios do campo.

Exactamente. (risos)


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