ualquer chance que eu tenha de utilizar mal a língua inglesa me deixa satisfeita. Naturezas-mortas, que em inglês é “Still lifes”, deveria ser errado, mas não é. Soa um pouco como título de programa de TV a cabo. E ao invés de reler Susan Sontag ou Roland Barthes, que escreveram ótimos livros sobre fotografia, só quero que vocês saibam que conheço seus livros e que eles estão aqui em algum lugar. Mas li inúmeros ensaios e artigos importantes sobre fotografia, ou pelo menos alguns, e sei uma coisa ou outra sobre o assunto. Sei que, basicamente, a fotografia começou com fotos de corpos nus e com fotos de corpos sem vida. Interessante, não? Acho que o cinema começou com um espirro para que a maçã nunca caia muito longe da árvore. Estou um pouco decepcionada com o fato de ninguém ter oferecido à Vice uma foto de um vômito na calçada, o que em minha opinião seria um belo exemplo de natureza-morta. Foi difícil resistir à tentação de oferecer as minhas próprias fotos para essa edição. Bolinhas de infusão de chá com pequenos ursos penduradas em suas correntes sobre a beira de uma xícara ultradecorada. Na verdade, não vários ursos e xícaras, mas apenas uma. Tenho uma foto exatamente assim. Convenhamos, todo mundo adora as coisas que possui. Estou aqui no mausoléu da Eileen repleta de amor pelas coisas ao meu redor.
Lençóis vermelhos, um quadro grande, o cartão-postal da Shirley Temple fumando. Uma casa é sem dúvida um pequeno museu de porcarias, e quando olho para essas naturezas mortas (essas aqui publicadas) penso nos corpos mortos que esses fotógrafos nos ofereceram. Acho que penso que cada foto é uma espécie de cadáver, e uma espécie de sepultura também. Parece que algumas das primeiras naturezas-mortas foram pintadas em sepulturas, e aquelas pequenas imagens supostamente transportavam o objeto para a vida após a morte do falecido. Não sei se eram despachadas primeiro ou, sei lá, chegariam depois de você já estar lá, mas de qualquer forma seria legal. Imagina ficar sentado numa colina não sei onde e, de repente, chega uma garrafa de vinho, um revólver ou um alaúde. Seria bom se nós mesmos pudéssemos decidir o que fica e o que vai, senão as pessoas teriam que interpretar nossas vontades e talvez as coisas de que apenas fingimos gostar se tornariam nossos brinquedos para a eternidade. Então, acho que a moral da história é que devemos sempre ser honestos em relação ao que gostamos. Políticos, claro, merecem posar ao lado de suas mentiras para sempre. Quer dizer, qualquer um cuja profissão seja mentir—donos de banco, executivos de petroleiras—com certeza preferiria nem morrer. Mas essa alternativa não está disponível.
As pessoas gostam de colocar caveiras em naturezas-mortas porque, claro, uma caveira supostamente te mantém honesto. O que um animal peludo significava? Um peixe? Tudo tinha significado nas primeiras naturezas-mortas e todas as coisas significativas dançavam atrás de Deus, porque todas as pinturas eram religiosas. Então, primeiro as pinturas eram um meio de transportar coisas e depois as coisas eram avisos. Parece cada vez mais que o cristianismo foi um grande erro. Ainda é. Aquele homem na cruz não seria uma natureza-morta? Qual a mensagem ali? As pessoas parecem saber. Está na hora do ar-condicionado funcionar novamente. O seu é que nem o meu, funciona quando quer? Quando ele acha que está fresco aqui dentro, ele para, mas ainda está quente. Coisas são boas para coisas. Nada no meu apartamento parece se importar, apenas eu. Supostamente, a natureza-morta tomou a dianteira quando a religião e o Estado foram substituídos pelas classes médias. Sabe quando foi isso? O mundo passou a ser controlado por pessoas que queriam ter um monte de coisas, e que iriam aonde precisassem ir para consegui-las. Os holandeses inventaram a querida Nova York e é por isso que ela é desse jeito—cheia de pessoas que querem coisas. Eles eram as estrelas do momento, juntavam coisas de todas as partes do mundo e as empilhavam em prateleiras, em barcos, e as levavam para outro lugar.
E faziam pinturas dessas coisas. E, na verdade, esse momento nunca acabou. Eles pintavam mercados, e o mais engraçado é que se você fosse um pintor e não estivesse sendo pago para fazer o retrato de algum ricaço, você provavelmente iria pintar algumas coisas e vender no mercado, então o lugar onde tudo isso estava acontecendo acabava sendo pintado também—confunde a cabeça. É uma espécie primitiva de vídeo caseiro, muito menos estúpido do que as pessoas que vi com câmeras no parque Yellowstone esperando pacientemente um gêiser jorrar água para então ficarem lá de pé pacientemente filmando a cena. O que significa quando alguém tira fotos da sua própria tralha amada, ou de alguma coisa notável do mundo. Sabe, acho que o segredo do capitalismo e de tudo o que ele representa, assim como um cachorro correndo atrás do próprio rabo, é que no fim das contas as coisas que você ama e possui acabam virando objeto de devoção. Adoro a estátua de David Armstrong, de um grande homem pelado segurando outro carinha pelado.
É uma espécie de deus. É a igreja de David. Que um boneco de neve esteja condenado, que uma pilha de chicletes mastigados lembre um cérebro, que um buraco em uma árvore antiga seja assimétrico e lembre uma árvore falante de conto de fadas ou uma buceta, que o pior tipo de diorama falso com pequenas árvores e instruções sombrias, que essa pilha de coisas tenha sido algum dia a ambição de alguém, agora abandonada para apodrecer no lugar certo ou errado, e tenha sido vista por mais alguém… é curioso que uma imagem de uma pessoa, normalmente de uma mulher, é em geral uma coisa—distorcida, revirada. E presidentes rapidamente se tornam figuras de papelão ou máscaras. Presidentes, assim como mulheres, podem ser coisas. Na verdade, hoje eu estava pensando—não tem nada a ver, mas vou compartilhar assim mesmo—, se a internet era inicialmente parte de um sistema de defesa militar dos EUA e a ideia era que não houvesse nada acima desse sistema (como o Pentágono ou a Casa Branca) para que não se tornasse um alvo, então, esse sistema, a rede, foi desenvolvido para que a informação viajasse nela em todas as direções de maneira que a “liderança” não pudesse ser localizada com exatidão… então a presidência está se tornando uma espécie de monarquia às avessas, na qual se elege alguém para “tomar posse” de um poder que é falso, porque é claro que são as corporações que mandam no mundo, não o governo, então, não temos como saber o que a BP está fazendo, e com certeza o presidente norte-americano também não, de maneira que sujeitos como George Bush ou Ronald Reagan eram perfeitos, enquanto um cara como Barack Obama é cheio de falhas, antiquado porque pensa que é alguém, e as pessoas querem que ele seja alguém, mas em vez disso ele está em uma posição em que é apenas uma pilha de coisas, como uma cópia de si mesmo. A presidência não é um emprego duro. Não é nem um emprego.
A posição do artista só vai melhorar quando a possibilidade de dizer a verdade, de fazer o bem para o mundo de forma grandiosa, tenha pelo menos sido descartada, e os pequenos esforços locais de religiosos e artistas passarem a ser reconhecidos como as únicas coisas restantes, isto é, continuamente erguer algo novo e colocá-lo na posição dos mortos, como um pequeno altar ou santuário para que, talvez, cada uma dessas naturezas-mortas esteja viva da melhor maneira possível. Cada uma delas vive, ainda que não se mova. Estou achando que o artista, aqui o fotógrafo, vai até ela e a arruma. E não é que eu seja louca por vômito, é que seu significado é muito verdadeiro. Para muitas pessoas que vêm aqui, que vão a um lugar qualquer e correm feito loucos por aí, tende a ser sua mensagem para o mundo. É um tipo de fala. É a maneira sofisticada deles de fazer alguma coisa, de deixar algo aqui para todos, mesmo que seja apenas uma pilha de comida semidigerida e goró. É o que eles têm. Pelo menos eles não morreram.
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POR EILEEN MYLES