Um manual de introdução ao meme mais famoso da China
Crédito: via wxcha.com /Alex Pasternack

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Tecnologia

Um manual de introdução ao meme mais famoso da China

Ofensivo e sequencial como um GIF, o 'biaoqing' revela como a linguagem visual da internet varia de acordo com nossos lugares de nascimento.

Não faz muito tempo, biólogos descobriram que a linguagem humana, assim como o canto dos pássaros, usa algo chamado adaptação acústica para se adequar ao meio no qual está inserida. Climas úmidos e quentes, por exemplo, engolem consoantes e alongam as vogais. É o que, segundo os cientistas, transforma o inglês anguloso da Inglaterra na fala arrastada do sul dos Estados Unidos. A linguagem visual da internet passa por processo semelhante: os memes variam de acordo com nosso local de nascimento.

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Na China, aqueles versados na língua da internet acumulam pastas e mais pastas de 表情 (biǎo qíng), termo traduzido como "expressão facial". No mundo digital, a palavra biaoqing designa qualquer imagem que adicione uma camada de significado visual a conversas online: na sua concepção mais abrangente, o termo se refere a quase todo tipo de imagem, de emoticons a GIFs. Na maioria das vezes, porém, o termo é utilizado para designar uma figura publicada em chats ou fóruns, como podemos ver no exemplo abaixo:

Embora eles compartilhem semelhanças com memes do Reddit e do 4chan, os biaoqing se tornaram uma forma de comunicação particular à internet chinesa. Possuem suas próprias tradições e convenções. Como qualquer meme maduro, os biaoqing são um vernáculo visual de viés popular e evolução constante que revela e cataloga as vivências do público digital chinês, uma espécie de Pedra de Roseta capaz de identificar e interpretar referências culturais. Os biaoqing já foram também utilizados de forma bélica, desempenhando um papel essencial durante um recente confronto memístico entre a China e Taiwan, rivais de longa data.

Embora a reputação da internet chinesa seja obscurecida pela sombra da censura lançada pelo Grande Firewall (uma referência à Grande Muralha da China), os biaoqing revelam pessoas divertidas, apaixonadas e assertivas. Essas imagens não são apenas um estoque de referências pop; juntas, elas representam uma prática que tem muito a dizer tanto sobre a cultura chinesa quanto sobre nossa própria cultura.

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Apresento-lhes, portanto, meu guia de introdução aos biaoqing.

ANATOMIA

Grande parte dos biaoqing é composto por uma imagem (ou animação) e uma legenda. O texto faz a parte braçal do trabalho semântico; o elemento visual indica o tom do meme, geralmente de forma exagerada.

Três variações do mesmo biaoqing, cada um com uma mensagem diferente. Da esquerda para a direita: "Vai se foder, meu coração tá em pedacinhos". "Eu me rendo, suas poses são incríveis demais". "Isso é muito assustador".

Os biaoqing se alimentam da rica mídia chinesa, transformando-a em ícones prenhes de significado. Os biaoqing mais literais são feitos a partir de imagens retiradas de séries icônicas, como a adaptação para TV de Jornada ao Oeste, transmitida em 1986, e a amada comédia histórica Huan Zhu Ge Ge. Vídeos e fotos de líderes chineses, atuais ou históricos — Mao Tsé-Tung, Jiang Zemin e o atual presidente Xi Jiping — também são utilizados, muitas vezes de forma hilária.

Dada a proximidade geográfica e cultural entre a China e o Japão, não é de se surpreender que a cultura otaku (conhecida na China como "ACG", sigla para Anime, Comics e Games) seja extremamente popular na China, especialmente entre jovens nascidos durante ou após a década de 90. Logo, muitos biaoqing são protagonizados por personagens de animes e mangás.

Mas a maioria dos biaoqing se assemelha aos pandas retratados acima: uma mistura sintética e icônica de fontes fotográficas e ilustrações toscas. A ideia de transformar figuras conhecidas em expressões faciais minimalistas surgiu como uma resposta chinesa às rage faces e, desde então, essas imagens deram origem à toda uma nova categoria de memes. Além do Yao Ming sorridente, um meme de origem americana, e o onipresente doge, outros personagens populares na época da conclusão dessa matéria incluem:

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Da esquerda para a direita:

Esses rostos padronizados costumam ser associados a legendas, mas a verdadeira mágica acontece quando os biaqing são transpostos em diferentes corpos e paisagens para representar uma vasta gama de emoções e situações.

Os biaoqing seguem a mesma estética grosseira de seus antepassados popularizados pelas Rage Comics — seus criadores costumam recortar e colar imagens de forma rudimentar, ignorando os pequenos detalhes. Quando compartilhados em apps que reduzem a qualidade das imagens, os biaoqing são comprimidos repetidamente, processo que os deixa cada vez mais bizarros. Como um zine que se embaça a medida em que é copiado, os biaoqing se deterioram com o uso.

Um adendo: embora seus dias de ouro tenham chegado ao fim, as rage faces ainda são muito populares na China. Na verdade, a Baozoumanhua (chinês para Rage Comic), uma empresa localizada em Xi'an, construiu um pequeno império midiático ao redor do conceito, produzindo desde vídeos que ensinam história chinesa com rage faces a uma série de vídeos de comédia apresentada por um âncora que veste uma máscara de rage face. O vídeo mais popular da série tem mais de 42 milhões de visualizações no Youku, uma plataforma chinesa.

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HABITAT NATURAL

A tradução mais aproximada do termo biaoqing é a palavra "emoticon". Isso porque os biaoqing são descendentes diretos dos emoticons customizados nascidos em fóruns online, muitos dos quais ainda fazem sucesso na internet chinesa.

"A internet chinesa" existe dentro de um sistema político, cultural e infraestrutural próprio. Um exemplo: o Grande Firewall da China, um conjunto de restrições técnicas e legais criadas pelo governo chinês, controla tudo que é dito na internet e proíbe o acesso a certos sites. No momento da conclusão desse artigo, esse firewall bloqueava o Google, o Twitter, o Facebook e subsidiárias como o Instagram e o Youtube. Os sites permitidos, tanto nacionais quanto estrangeiros, são obrigados a hospedar seus servidores chineses dentro da China e a seguir as regras de censura locais.

O Grande Firewall pode ser a barreira mais visível, mas a linguagem e até mesmo o fuso horário são empecilhos ainda maiores. O GFW pode ser — e é — burlado com ferramentas VPN, mas o Twitter não é nada atraente quando você dorme durante as horas de pico e perde as melhores piadas. Um efeito colateral do GFW — ou talvez seu maior objetivo — é a abertura de oportunidades para empresas de tecnologia locais, que são incentivadas a criar plataformas voltadas para o público chinês.

Conforme essas novas plataformas de comunicação — entre elas o QQ (um sucessor do ICQ), o Weibo (a versão chinesa do Twitter) e o WeChat — ganharam popularidade, os biaoqing se adaptaram a esse novos ambientes. Os novos biaoqing tendem a ser maiores do que suas versões anteriores, tanto fisicamente quanto em tamanho de arquivo, mas eles ainda se restringem às limitações dessas novas plataformas: falta de suporte de GIFs, telas pequenas e a necessidade de minimizar o consumo de dados móveis.

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ORIGEM E REPRODUÇÃO

Assim como acontece com os GIFs, os biaoqing aparecem naturalmente ao longo de diálogos na internet — uma pessoa compartilha um para enfatizar seu humor, e um destinatário ou leitor o salva para uso futuro. Aqueles mais envolvidos em fandoms fazem questão de colecionar ou até mesmo de criar suas próprias versões baseadas em diferentes séries, celebridades e filmes. Em sua variante mais simples, essa nova versão pode significar uma nova legenda em uma imagem preexistente. Já aqueles com mais habilidade criam GIFs e screencaps a partir de vídeos, inventando novas expressões e criando novos memes cheios de referências.

Para um internauta americano, os biaoqing podem parecer estranhamente sem graça. Pheona Chen, uma pesquisadora que se mudou para Pequim a fim de estudar os fandoms chineses, diz que tudo se resume à infraestrutura digital e ao potencial de inovação:

Nem todas plataformas chinesas suportam GIFs: não dá para postar GIFs no WeChat Moments, por exemplo, e o Weibo não permite o uso de GIFs em comentários [embora eles sejam permitidos nos posts originais]. Os biaoqing são facilmente modificáveis. As legendas dos biaoqing são sempre atualizadas com novas frases e gírias, e as imagens são ainda mais variadas. Cada fandom, seja ele de uma celebridade, série ou filme, cria e utiliza seu próprio arquivo de biaoqing. Às vezes, quando um filme popular é lançado, nós trocamos todos nossos biaoqing por novos.

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Guerra de Memes

Em janeiro de 2016, a expectativa em torno das próximas eleições taiwanesas deu origem a uma guerra de memes entre China e Taiwan. O motivo foi a polêmica questão da soberania taiwanesa. O estopim foi os comentários de uma cantora de Kpop e seu subsequente pedido de desculpas; o campo de batalha, por sua vez, foi a página do Facebook de um ator chinês. Ambos os lados usaram linguagem grosseira e memes ofensivos. Na internet chinesa, o conflito ficou conhecido como 表情包大战: "A Grande Guerra Biaoqing".

Como é de praxe em conflitos não-violentos, ambos os lados se declararam vitoriosos. No continente, blog após blog anunciava que os biaoqing taiwaneses eram ultrapassadas e ridiculamente mal-feitos. Enquanto isso, a cobertura taiwanesa do conflito ignorava esses ataques, focando no nacionalismo intolerante dos chineses e apontando a ironia de um patriotismo que precisa burlar as leis de seu próprio país (que proíbem o acesso ao Facebook) para ser expressado.

Para um observador imparcial, entretanto, o resultado é bem claro: os chineses ganharam a Guerra de Biaoqing, sobretudo porque eles eram os únicos combatentes. As regras e tradições do biaoqing, tão entranhadas na internet chinesa, nunca chegaram à Taiwan. Uma guerra de biaoqing é tão unilateral quanto uma competição internacional de futebol americano.

Em termos biológicos: o isolamento causado pelo Grande Firewall resultou em plataformas separadas, ecossistemas digitais desconectados e, por fim, em uma nova espécie de meme. Mesmo se o bloqueio técnico e legislativo que separa a internet chinesa da nossa desaparecesse da noite para o dia, as barreiras culturais e lingüísticas ainda dificultariam qualquer diálogo. Ano passado, Obama anunciou um projeto que irá ensinar mandarim a um milhão de crianças americanas com o objetivo de facilitar as futuras negociações entre os EUA e a China — talvez fazer um milhão de biaoqing seja um bom dever de casa.

Tradução: Ananda Pieratti