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Música

Discos: Micha Vanony

Demasiado actual para se assumir como arte retro e demasiado veludosa para se enquadrar no parâmetro vanguardista.

Advenir

Mental Groove Records

Em plena alvorada de 2000, alguém dado a hypes, e certamente francês, se lembrou que a marca registada

 french beat

 poderia fazer valer alguma atenção internacional. A ousadia ganhou forma, granjeou louros e desde logo apadrinhou bons e maus exemplos, onde os Air foram necessariamente o expoente maior. Pelo caminho, surgiram acréscimos colaterais de gente como Alex Gopher, St. Germain ou Sebastian Tellier e a onda ainda chegou a pegar gente como os Daft Punk. Na ressaca desse período, agora turvo, têm surgido alguns produtores em escala menor de exposição, mas em franca ascensão criativa. Micha Vanony é só uma de muitas faces dessa beatífica geração Bandcamp. Como tantos outros, tem esta espécie de vida dupla sustentável: paga as contas com a vida de académico de artes e, quando o tempo lhe permite, deixa-se embrenhar na criação musical.

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Até que ponto uma face influencia a outra, seria uma pergunta provavelmente relevante numa entrevista; todavia, se o mesmo nível de paixão enquanto músico se aplicar ao ensino, podemos começar a esquecer o professor Keating do

Clube dos Poetas Mortos

 como modelo idílico para toda uma turma. Mas sim, comecemos por paixão, pois

Advenir

 transporta em si uma toada de sensualidade suficientemente forte para não ser referida. Qualquer garanhão requintado ou casal em retiro nupcioso escutaria este álbum quase religiosamente, ao despertar. Tem um certo

je ne sais quoi

, diria alguém ao pôr o cabelo para trás em frente ao espelho. Na realidade, a música de Vanony apresenta-se como dispersa no melhor sentido da expressão. Enquanto outros optam por engomar bem o ritmo de forma a vestir a melodia com uma sofisticação algo rígida, ele prefere ver essas mesmas roupagens espalhadas por um decadente, mas glamoroso, quarto de hotel banhado por néons. Além disso, o próprio é residente em Monte Carlo e não deixa de ser curioso a forma como consegue sugerir, a partir de uma visão algo irónica até, imagens luxuosas de casinos, praias e iates em modo câmara lenta. Vidas difíceis, portanto. Paralelamente, a sensação de dispersão sente-se no modo como constrói polaroids instrumentais garridas por elementos reconhecíveis ao jazz, funk e lounge pop. A fluidez e liberdade da orgânica do hip hop orientam as coordenadas e, a certa altura, é legítimo reconhecer um ou outro eco de Flying Lotus, Daedelus, Madlib ou até de Vincent Gallo (e convenhamos que isso só abona em seu favor).

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Distante do conceito normal de disco de canções, desenrola-se antes como objecto designado à escuta contínua, sem pausas ou picanços pontuais. O resultado situa-se num desfile agradável de temas, cujos títulos revelam um tipo com um sentido de humor condimentado por um toque nonsense existencialista. Ainda que se assumam mais como exercícios sonoros, felizmente não se perdem no acto ou, pior, num pretensiosismo em direcção ao vazio; pelo contrário, mantêm-se bem à tona da realidade quando assim tem de ser. Nada disto compromete, no entanto, as ilusões, os delírios e as charadas que tão bem surgem durante a escuta de

Advenir

. Diga-se, aliás, que boa parte da obra vive precisamente dessa atmosfera surreal e simultaneamente sedutora. Por outro lado — e há que referir isto — existe uma incerteza temporal que a perfila demasiado actual para se assumir como arte retro e demasiado veludosa para se enquadrar no parâmetro vanguardista.

Para álbum de estreia, Vanony cumpre mais que o exigido, demonstrando truques e manhas dignos de um James Bond que certo dia trocou o smoking por um casaco de cabedal em segunda mão.