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Milhões de Festa

Barcelos é passado, agora que volte a rotina

Começa agora um jejum de 365 dias sem Milhões. Que passe rápido.

No rescaldo do último dia, damos graças por não termos de trabalhar à segunda-feira e por podermos dar-nos ao luxo de apagar durante um dia inteiro assim que vislumbramos um colchão, sob pena de vos chegarmos atrasados. Perdoem, somos humanos. Mas não nos sai da cabeça que o sabor deste ano foi diferente do dos anteriores. Há que dar a mão à palmatória, e admitir que a edição deste ano do Milhões de Festa foi atípica — talvez a falta de tropicalismo assuma a maior parte das culpas, talvez o hype, talvez a idade, talvez a crise ou o mau tempo.

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Ainda assim, com chuva ou sem chuva, com sol ou sem sol, festa é festa e o Milhões dela continua a ser a maior loa que se poderá tecer ao Verão, um ritual melómano imperdível e que não falha na missão anual de nos encher de felicidade e de recordações. É a elas que nos agarramos para lembrar, por exemplo, um dos melhores concertos de todo o festival, o de Zombie Zombie. Era visível que o trio francês tinha muito amor dentro deles, e não só o mostraram com o distribuíram com a ajuda do

french touch

, recriado organicamente com sintetizadores e duas baterias que exploram o clímax até aos limites da impossibilidade. E mesmo que a atmosfera fosse negra, quase tensa por vezes, toda a gente se entregou sem freios à sua música aveludada.

A malta de Dirty Beaches dançou ao nosso lado do início ao fim do concerto. Foi uma espécie de catarse física, necessária, já que momentos antes eles próprios haviam assinado um dos concertos mais intrigantes e desconcertantes da última noite. De Taiwan passámos, então, para Espanha, de onde vieram dois rapazes atrevidos, os Siesta, que fazem da bateria o centro da sua actuação ao mesmo tempo que se repartem por entre instrumentos e maquinarias diabólicas.

Ainda assim, todo o calor e amor estavam guardados para explodir em êxtase em reacção à energética actuação dos Orange Goblin. Momentos antes do concerto infiltrámo-nos no backstage (abre rasurado) para beber finos à pala (fecha rasurado) porque sabíamos que eles estavam a ter uma tour complicada, com falhas de material, pneus rebentados e até substituições forçadas de membros. Estavam, portanto, desanimados com o destino, mas quis este que viessem ao sítio certo renovar o alinhamento de chacras. À pancada de hard rock adulto e encorpado, o público respondeu em apoteose, libertando-se completamente das inibições e acarinhando a banda com o maior moshpit desta edição. Até nós tivemos de descer até lá, distribuir porrada e pegar no tipo vestido à Chester, a mascote dos Cheetos (para aqueles que diziam “tigre”, cultivem-se), para o fazer saltar à altura do palco.

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A grande surpresa do festival estava reservada para o espectáculo montado por, e em torno de, Óscar Silva, vulgo Jibóia, que já dias antes tinha mostrado do que era feito com Adorno e Papaya. Estamos habituados a que se faça rodear de synths e samples e pedais mil, naquela que costuma ser uma interpretação solitária saída de uma qualquer loja do Martim Moniz. O mais que se lhe havia visto aventurar era com Ana Miró, a exótica Sequin, que lhe complementa as falhas vocais e de presença de palco. Ainda o concerto, o último do palco Milhões, não tinha começado e a presença em palco do Henrique, dos saudosos SAUR, em missão de ajudante técnico, motivava que o megafone mais famoso do festival puxasse do público alguns gritos em honra de Alverca. Sente-se ali já algum quentinho familiar e suspeita-se do que se segue, quando entra em cena uma mescla de gente imensa.

A experiência da cobra reúne aos dois elementos originais as participações dos Cangarra, do Zé Pedro e do Gonçalo Duarte dos Equations, do Luís Lucena de Lydia’s Sleep e até do Fábio Costa, o formoso DJ Quesadilla (e acho que nos está a faltar alguém, mas não é por mal). E aquela família procede ao desmontar e reconstruir dos sons étnicos e desgarrados originais, e transfigurá-los num rock imenso suportado por duas baterias e pelas três cordas. Cheira a chamuça, mas não a feira. Abana-se a anca e a cabeça inadvertidamente, sem nexo, enquanto nos apercebemos do quão bem estruturadas são as faixas e nos maravilhamos com esta interpretação exponenciada ao máximo, louvando o Óscar por montar e apresentar tamanho espectáculo.

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Quem também vimos curtir e abanar-se todo com as malhas da jibóia foi Mykki Blanco, mesmo antes de assaltar o palco VICE com uma festa que se faz com 20 por cento de hip-hop e 80 por cento de performance. Esta pele em que habita Mykki Blanco é cativante que chegue para ficarmos no mínimo cinco minutos e fazer parte de uma histeria colectiva que se instalou em menos de nada. Sem a chuva que tinha ameaçado estragar o dia, a noite acabou por ser a melhor despedida. Adivinhando o rugir dos seguranças de volta ao parque de campismo, para que nos levantássemos de manhã, decidimos apostar no recinto até ao sol raiar, munidos de uma bebida e outros fortificadores energéticos e curtir até ao fim o som de El G, cheio de beats coloridos e veraneantes. A névoa é maior, as dores também, por isso perdoem-nos se falharmos na exactidão com que o relembramos, ou a forma menos usual como dançámos.

E agora, depois de tudo e com os corpos exaustos e as mentes repletas, olhamos o relógio e desejamos que o tempo volte para trás e que a geografia se volte a centrar em Barcelos. Mas não podemos mesmo, não vai dar, nem para nós nem para as centenas de campistas que ontem de manhã (ou tarde) puseram a casa às costas e deixaram a cidade do galo. Nos próximos rescaldos pode ser que alguém descubra a razão para este Milhões de Festa ter deixado um sabor diferente na língua. Por agora, deixamos que a névoa e o pó assentem, que os corpos recuperem, que a sanidade volte devagar — tal como a rotina. Sabemos que vem aí a depressão pós-Milhões e sabemos que voltaremos a agarrar-nos em memórias e histórias e desventuras e amor, para procurar fotos em que possamos aparecer (ou esperar que não) e aguentar mais um ano.

Que passe rápido.

Fotografia por André Vitor Tavares