O Evangelho Segundo Eu Mesmo
Fotos por Pablo de Sousa.

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O Evangelho Segundo Eu Mesmo

Há dois anos fui figurante do espetáculo da Paixão de Cristo em Fazenda Nova, cidade-teatro do agreste de Pernambuco, e foi ouro.

Meninos e meninas, eu vi Cristo ser crucificado, o vi ressuscitar iluminado por detrás de uma pedra cenográfica, ajoelhei aos seus pés para aprender a rezar o Pai Nosso, comprei tapetes no Templo de Jerusalém, me virei contra o profeta e o condenei no julgamento de Pilatos. Na ocasião, gritei a plenos pulmões pela soltura do assassino cruel e impiedoso Barrabás, que fugiu em minha direção comemorando com pulinhos de alegria. Caminhei pelo deserto, acompanhei os bastidores do bacanal de Herodes, vi de perto o sangue de Jesus. Há dois anos, eu estava no espetáculo da Paixão de Cristo, no agreste pernambucano. Mais precisamente, em Nova Jerusalém, localizada em Fazenda Nova, a 180 quilômetros da ensolarada Recife. A cidade-teatro, segundo os organizadores do espetáculo, é a maior do mundo. O trajeto até lá é feito em meio à vegetação seca e ao gado definhando na esburacada BR-232, e a chegada ao burgo, no município do Brejo da Madre de Deus, é marcada pela venda de pitomba e pelas palmas, espécie de cacto, espalhadas pela beira da estrada.

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É aqui que Pilatos lava suas mãos. Foto: Pablo de Sousa

Nove dias de apresentações, mais de 70 mil visitantes, 550 atores e figurantes, mais de três milhões de espectadores, 800 peças de figurinos, 100 mil metros quadrados e mais de 400 profissionais na produção. A peça, que é toda dublada, tem nove cenas, interpretadas cada uma em um palco diferente, e começa com as tentações de Jesus, interpretado há quatro anos pelo ator pernambucano José Barbosa. O ator, agora com 35 anos, viveu o Nazareno desde 2012. Neste ano, ele será Judas, e o Bom Samaritano será vivido por Igor Rickli.

Da sedução até a ressurreição, passamos pelos grandes hits da Bíblia, como a quebradeira do Templo de Jerusalém, a Última Ceia, com uma pausa cênica que imita o quadro de Leonardo da Vinci, o julgamento de Pilatos, a captura, a Via Crucis, o suicídio de Judas… uma pausa para esse momento.

Os ladrões Gestas e Dimas a caminho da crucificação. Foto: Pablo de Sousa

O público está alvoroçado com a aproximação da morte do traidor de Jesus; nisso, uma espectadora, não muito preocupada, decide ligar para um familiar ("Oi, Aline, tô aqui no enforcamento de Judas. Peraí, que alguém vai falar com você") e passa o celular para uma criança, que repete suas frases num tom infantilizado: "Oiiiii, Aline. Por que não veio? Tá bonito". Lá no palco, o ator Júlio Rocha, que passa por um processo de escurecimento da sua barba grisalha antes de cada apresentação, faz sua última cena da noite com os pés balançando sob o corpo mole. Aplausos ávidos para o suicídio de um homem. É nessas horas que vemos de perto como somos mórbidos. "É um personagem que marca e exige muito preparo – físico, inclusive", afirma Júlio Rocha, que fica pendurado pelas costas para realizar o feito. Em 2005, uma falha o derrubou, e a queda só não teve maior gravidade porque alguns colchões são escondidos no cenário.

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Os atores "globais" são também um ponto forte para o sucesso do espetáculo. A façanha começou em 1997 com o ainda jovem Fábio Assunção no papel do Nazareno. No ano em que eu colei, ainda teve o Marcos Pasquim no papel do boêmio Herodes. O ator foi arisco e preferiu nos evitar. Quando nos cruzávamos pelos corredores ou nos afters, nos olhava com a desconfiança de uma felina mãe diante dos filhotes.

Marcos Pasquim de barba postiça interpretando Herodes e o esfarrapado Jesus. Foto: Pablo de Sousa

Carlos Casagrande lavou as mãos no papel de Pilatos. O ator explica a grandiosidade do prefeito da Judeia. "O diretor até diz, 'tem que ter a quarta parede, você não vê o público', mas no meu personagem especificamente eu posso ver, porque ele tá diante do público". E defende o homem que puniu o Altíssimo. "Perceba na voz que eu falo duro com todo mundo e com ele (Jesus) eu falo mais doce. Eu imagino que ele sentiu que o cara era poderoso." Este ano o papel será encenado por Humberto Martins. Temos também Carol Castro, no papel da impura Madalena. Em 2008, num ensaio para a revista Playboy, a atriz protagonizou uma polêmica religiosa. Duas fotos, uma com um terço na mão e outra ao lado de uma cruz, causaram a ira de alguns religiosos que pediram a retirada da edição das bancas. "Essa história pra mim morreu. Já tem tanto tempo e realmente não tinha a menor intenção. Eu estava ali encarnando as mulheres de Jorge Amado. Até agora eu não vi nenhuma analogia, nem comparação com a minha personagem", completa. Ao final da apresentação, quando Jeová ressurge, fogos de artifício colorem o céu e fazem tremer a fina parede do quarto da pousada inibindo a voz de William Bonner na TV. Sim, há um anexo com uma pousada e pacotes de hospedagem de dois dias com direito a ser figurante no rolê. Você, além de interpretar um hebreu, ainda convive harmoniosamente com atores famosos, religiosos e atores menos famosos e uns aspones também.

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Ôôôôôôô! O Jesus voltou!!! Foto: Pablo de Sousa

O clima dos atores na Pousada da Paixão durante o dia é de quase-férias. Piscina e sol ao lado dos hóspedes que volta e meia aproveitam a deixa para uma foto ou um papo oportuno. Um apóstolo me contou - aposto que agora você está difamando Judas - que certa noite, lá pelas tantas, Madalena, Maria (a mãe de Jesus) e outros homens se sentaram em roda no Horto, lugar onde Jesus foi capturado, para bebericar um pouco de uísque e ouvir o Filho de Deus, ou José Barbosa, tocar seu violão. Pilatos não foi convidado.

Os hóspedes gastam uma moeda alta pra viver na Galileia. O pacote de dois dias num quarto duplo custa R$ 2963,00 com refeição completa e ainda você curte a farra de ser figurante no espetáculo. Quando eu colei lá, a concentração dos hóspedes-atores era pela manhã. Cena por cena feita sob o sol agrestino até a hora do almoço. Insolação? Quase tive. 32 pessoas dispostas e conhecer, condenar e pedir perdão a Jesus Cristo numa figuração bem esquizofrênica. A parada é séria. Mulheres tiram o esmalte, os anéis e as que têm os cabelos tingidos são obrigadas a usar véus. "Não tinha tintura de cabelo na época", explica um dos monitores.

Na primeira cena a gente aprende a rezar o Pai Nosso. Na segunda somos compradores do Templo de Jerusalém e olhamos enviesados para o Todo Poderoso. Na verdade o consideramos meio black block nesse momento. Ele colou com uns brothers e destruiu e arregaçou as barraquinhas de artesanato e tapetes na porta da casa de Deus. Na terceira vez que aparecemos damos uma moral pra Barrabás e crucificamos o barbudo. Aí é ladeira abaixo. Acompanhamos a Via Crucis, assistimos ele dar seu último suspiro e ficamos arrependidos quando ele ressuscita. Os outros figurantes são moradores da região, os hóspedes clareiam um pouco a massa e tentam agir naturalmente com uma espécie de túnica surrada, chinelo de couro e um chapéu de fariseu de gosto questionável na cabeça. A experiência é cansativa, mas válida. Para correr um conselho: levante um pouco a barra da roupa e ao se ajoelhar, cuidado com os pedregulhos.

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Figurantes no escadão antes de entrarem em cena. Foto: Pablo de Sousa

O local me causou um mix de sabores. É um pouco tosco por ser dublado, pela história já ser bastante batida, mas não deixa de surpreender. A história começou em 1951 com o comerciante Epaminondas Mendonça. Ele, doido ou um visionário, começou a encenar o Drama do Calvário pelas ruas de Fazenda Nova inspirado nos moradores de Oberammergau, na Alemanha. Participava a família e mais alguns poucos entusiastas.

O cara tentou fazer da sua cidadezinha um pólo turístico na Semana Santa. As peças eram mambembes, sem atores profissionais, figurino, apenas com boa vontade dos participantes. Plinio Pacheco, genro do criador, deu um upgrade na história com uma ideia bem maluca, construir uma cidade-teatro que reproduzisse a Jerusalém dos tempos de Cristo. Em 1963 começou a construção dos cenários, que ainda hoje são megalomaniacamente aumentados.

Plinio ficou famoso por fazer a condução do público com um cavalo e um megafone, ambos representados na estátua colocada no meio do terreno de Nova Jerusalém. Faleceu em 2002, junto com o estilo Brancaleone, mas o megafone continua e hoje é empunhado pelo seu filho Robson Pacheco. Os figurinos estão sob a responsabilidade de sua neta Marina e a direção é mantida desde 1996 por Carlos Reis, um dos crucificados mais experientes do teatro, de 1969 até 1977 interpretou o Altíssimo neste mesmo terreno.

Estátua em homenagem a Plínio Pacheco. Foto: Pablo de Sousa

O ex-Jesus já foi visto cantando "Papel Machê", do João Bosco, à beira da piscina para o deleite de meia dúzia de senhoras. Horas antes ele tinha ressuscitado, claro. O ator morria e voltava a viver durante mais de uma semana e tinha que lidar com muitas provações, tentações e outros problemas mundanos e extraterrenos, mas se você pensa que o pior momento é morrer junto dos ladrões Gestas e Dimas, "primeiro Vida Loka da história", está enganado. O obstáculo maior é se equilibrar na cruz com os braços praticamente soltos e com o pé esquerdo apoiado sob o direito por longos minutos. Nesse momento pré-morte, formigas devoram seu sangue doce composto por anilina, açúcar e café. "Além da barba e do cabelo, preciso manter meu corpo muito bem preparado para este personagem", comenta o homem que agora vai trair Jesus pela Galileia.

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Do lado de fora um mundo paralelo é criado para o evento. Barracas de comida, roupas, badulaques cristãos e até cachaça, ou melhor, Cachaça da Paixão, que tem dois rótulos diferentes com fotos do espetáculo. Ela está ali escondida entre o Pau do Índio, a Xoxota da Índia e a Amansa Sogra. A aguardente custa R$ 10. No primeiro dia da apresentação, lá em 2013, vendeu 36 exemplares entre xoxotas, paus, amansadores e canas católicas.

À noite, depois do cronograma, poucos atores e hóspedes saem de Nova Jerusalém. Os muros altos escondem uma vida agitada de sábado. A rua principal lotada de gente tomando cerveja no latão, dançando forró e enfrentando o eterno entra-ou-não-entra na porta da Arena Botijinha, onde se apresentam o grupo Brasas do Forró. Há ali uma cidade que mantém seus hábitos, mas há também quem se beneficie da cidade-teatro. A maioria dos figurantes é da gente simples como Euflozina Maria Maranhão, de 75 anos. Já fez todas as cenas nos 30 anos em que atua no espetáculo. "Quando a gente é mais novo, fazia tudinho, mas agora já não dá mais não", explica a senhora da pele escura do sol, que trabalhou toda a juventude no roçado.

O público paga de R$ 50 a 100 para passar por uma das 19 catracas eletrônicas da entrada e se acomodar em frente à primeira cena. De um ato para o outro uma mensagem de voz surge dos alto-falantes pedindo para que os visitantes não corram, mas é logo rebatida por uma mulher afoita. "Que não corra o quê? Eu corro sim, 'as perna é minha'".

Por ano mais de 75 000 pessoas assistem ao espetáculo. Foto: Pablo de Sousa

Zanzando pelos aposentos, José Valciano Dias Clemente, de 57 anos, é mais conhecido por Pindoba. Sem rodeios ele dispara no melhor estilo Professor Raimundo à Dona Bella. "Você sabe o que é uma pindoba?" Pindoba é o nome de um palmito típico do nordeste. Pindoba, o palhaço, perambula pelos corredores da pousada com seu gatinho de pano chamado Pit Stop e também é um dos monitores dos hóspedes durante a figuração. Na vida real encara a vida de funcionário da área da saúde, mas sonha em ter um cirquinho de lona só seu. "A Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, em Pernambuco, é um evento como o Carnaval e o São João no estado. São obrigatórios", explica o local José Barbosa, que ainda garoto viu o espetáculo uma única vez com o coral da igreja católica que frequentava em Limoeiro, cidade também do agreste pernambucano. Um santo de casa que, segundo relatos, curou cegos, aleijados, andou na água, transformou água e vinho, mantém o sotaque local e agora virou Judas Escariotes, o traidor.

O astro. Foto: Pablo de Sousa